Paulo Salvetti é ator, educador e escritor, autor de “Cara Marfiza”, (Reformatório, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Manhã, eu gosto com cheiro de pão, café e livro. Tenho os dias de escrita matinal e os outros. Independente do propósito, já tomo café lendo. Tenho a impressão de que, logo cedo, a leitura acontece mais intensa porque a aceleração do dia ainda não encheu a cabeça de metas, sempre prontas para disputar espaços. Se puder escrever de manhã, em geral, também direciono essa leitura. Escolho algo inspirador para a poética do que eu estou produzindo. Romances costumam ser mais frequentes, mas vale tudo: literatura, filosofia ou notícias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Prefiro as manhãs, mas como também sou professor, várias delas são ocupadas. Então, valorizo uma dormidinha depois do almoço para fazer a tarde render. Acho os pequenos rituais importantes. Gosto, por exemplo, de me alongar um pouco e fazer uns exercícios de respiração. Depois coloco uma playlist preparada com cuidado para cada projeto. Em geral são músicas instrumentais, porque a poesia das letras confunde meu foco. Ouvir sempre as mesmas músicas me ajuda a retomar a ambiência do projeto, e, então, releio o já escrito. No caso de ser um romance, dois ou três capítulos, ou o texto todo, caso seja um conto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A rotina varia muito em cada projeto. Quando eu estava escrevendo “Cara Marfiza,” fiquei mais de um ano e meio escrevendo todos os dias por pelo menos três horas. A possibilidade de me dedicar diariamente altera o meu registro, porque amplia a qualidade da imersão e me deixa mais conectado e poroso para que os vários outros momentos do dia contribuam para o avançar das ideias e para a resolução dos entraves. A priori, penso que meta de escrita é algo muito produtivista para o modo como eu encaro minha literatura. Mas já usei essa estratégia em alguns momentos em casos nos quais a meta era disparadora de uma experimentação de estilo em relação ao ritmo/fluxo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
“Cara Marfiza,” foi meu primeiro romance. Ele partiu de um exercício de escrita. Tive a intenção de me investigar enquanto escritor a partir de uma ideia ainda insipiente. O próprio exercício de escrita foi me apontando uma história e uma pesquisa correlata. A partir desses apontamentos, organizei os caminhos para estudo e pesquisa. Levou um tempo até encontrar uma voz narrativa com consistência, primeiro tópico da investigação. Como se tratava de uma narração em primeira pessoa, de uma senhora de mais de 70 anos, notei que precisava delinear essa identidade em definições sintáticas e lexicais, entre outras. Quando encontrei algo instigante, segui nesse fluxo. Por isso, digo que projeto de pesquisa e escrita estiveram fundidos de tal modo a não haver distinções entre as fases. No meu projeto atual, para um novo romance, as coisas estão diferentes. Tenho lido muito e desenhado estratégias ainda imaginárias. Fiz já alguns esboços na busca das novas vozes narrativas, mas não me lancei para o exercício fluido de escrever esses rascunhos de pensamentos. Estou me preparando para isso acontecer no segundo semestre deste ano de 2020.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como meu anseio no primeiro romance era a investigação, eu segui sem medo e esvaziando expectativas. Claro, na medida do avanço do projeto, me questionei se havia qualidade real, ou se tratava de apenas uma experimentação para estudos. No caminho, tive a sorte de encontrar parceiros que, além de me incentivar, me deram respostas positivas sobre a produção. Não tive grandes problemas de ansiedade para terminar logo ou de longas procrastinações, talvez porque criei comigo um esquema de trabalho divertido e estimulante. Noto que há escritores que apostam na inspiração como propulsora da escrita. Eu sou do grupo que acredita na inspiração como parte inerente ao trabalho incessante de tentativa e erro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso incansáveis vezes. Na verdade, a minha parte preferida é a da reescrita. Eu tenho trabalho com mapas narrativos: crio um quadro do enredo e desenho a história, cada vez mais detalhada em relação aos acontecimentos. Então crio condições criativas para fazer esses acontecimentos fluírem e, nesse fluir, tudo vai se alterando e vou refazendo os mapas sempre que necessário. Mas é quando me afundo na reescrita que vejo a literatura realmente ganhando corpo. Claro, no avançar o romance, eu fui me dando conta de estratégias específicas de como e por onde contar, de tal modo a precisar reescrever cada vez menos. Mas esse menos ainda é muito, porque às vezes uma descoberta em dado momento me exige voltar e rever tudo e assim sucessivamente. Sobre compartilhar com leitores, para mim é fundamental saber a opinião de pessoas que são profissionalmente ligadas à literatura e de pessoas que são leitoras por prazer. Além disso, eu também contratei em “Cara Marfiza,” uma leitura crítica que foi muito importante para minha revisão final.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Só escrevo no computador. Tenho a impressão de que caneta e papel não acompanham a velocidade dos meus pensamentos. E, como sou um viciado em reescrever, repensar as palavras, reordenar a frase, o computador facilita demais essas operações. Os mapas, eu costumo fazer manualmente. Nesse caso, uso uma folha grande pendurada na parede sobre a qual vou ordenando post-its. Essa foi uma dica dada por Andrea Del Fuego que me ajudou demais a jogar com subversões da linearidade narrativa.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Em “Cara Marfiza,” e no meu próximo romance, o disparador central tem conexão com histórias da minha família que, por algum motivo peculiar, ficam fermentando meu cérebro. Nos dois casos, eu parto de uma tese e vou fazendo um jogo de revirar fatos reais para que, no avesso, comecem a promover outras narrativas. Para engrossar esse caldo de cozimento, certamente a leitura é o principal hábito. O tempo todo estou lendo alguma coisa, principalmente literatura, sociologia e filosofia. Quando imerso na escrita, a escolha pelas leituras fica mais criteriosa, porque o mundo todo passa a cercar uma história no momento em que se está dando corpo para ela. Também adoro cinema e música, outros campos friccionadores da criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Os meus textos anteriores são pequenos contos em estilo relato poético e alguma dramaturgia. Recentemente voltei para esses textos e notei que, embora tivessem propostas interessantes, ainda eram muito imaturos esteticamente. Durante o processo de escrita de “Cara Marfiza,” aprendi demais. Nesse tempo, também fiz oficinas literárias que me proporcionaram olhar para o texto por uma perspectiva mais profissional. Tem um conjunto de regras, que inclui coisas simples como questionar adjetivos, advérbios, artigos, assim como buscar desenvolver os acontecimentos em ação, que mudam um texto de categoria. Por isso, o que eu diria para mim é o que eu fui dizendo ao longo desses aprendizados. Entendo que, como escritor, estou sempre em formação. Ano passado, em exemplo, fiz parte do CLIPE, da Casa das Rosas, e me deparei como mais outras séries de problematizações que têm me ajudado a adensar meu texto de hoje.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu sou um artista multilinguagens, porque circulo pela literatura, pelo teatro e ainda flerto com cinema e artes visuais. Por isso, tenho dezenas de projetos fervilhando por aqui. Em literatura, por enquanto estou bem satisfeito com o projeto que estou começando. É uma história cada vez mais importante para mim, e isso me deixa pilhado para fazê-la surgir. Sobre uma leitura que não existe, acho que, diante de tantas coisas incríveis para serem lidas, nem consigo ter essa presunção. Talvez, nesse caso das utopias, eu fico com aquela casinha no sítio, com tempo para ler o dia inteiro, alternado com a plantação de cogumelos orgânicos. Nada além.