Paulo Rodrigues Ferreira é escritor, professor da Universidade da Carolina do Norte.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
As minhas manhãs começam com duas ou três taças de café. Ainda há poucas semanas atrás, quando trabalhava em Nova Iorque, saía todas as manhãs a correr para apanhar o metro. Como perdia mais do que duas horas por dia em transportes, aproveitava para ler ou preparar as aulas no computador. Enchi muitos caderninhos pretos dentro do metro. Apanhar o metro em Nova Iorque é uma tortura – passa muitas horas parado, atrasa-se constantemente, fede, aquece imenso. Por isso, e motivado por Viktor Frankl, que passou por um campo de concentração e que argumentou que nem mesmo aprisionado lhe poderiam roubar a liberdade de ser quem queria em pensamento, canalizei a escrita e a leitura para essas horríveis viagens matinais. Recentemente, mudei-me para a Carolina do Norte e ainda estou a tentar ganhar uma rotina matinal. Mas o café continua a ser abundante.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não sei dizer se há uma hora do dia em que trabalhe melhor. Ensinando de manhã, terei de aproveitar outros momentos do dia para escrever. Se estiver bem em termos mentais e físicos, a noite é uma altura em que me sinto fresco. Mas ter uma bebé e ensinar de manhã roubam alguma frescura. Seja como for, sempre que quero escrever, leio umas quantas páginas do livro que trago comigo. Ler é a actividade mais inspiradora que conheço em termos criativos. Agora moro na Carolina do Norte e tem sempre muitos estudantes a correr na rua. Ao passar por eles, penso que gostaria ou deveria estar no lugar deles. A correr. A suar. A disciplinar o corpo. Quando leio, passa-se a mesma coisa. Leio e quero escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tive várias metas de escrita. Quando escrevia as teses de mestrado e de doutoramento, obrigava-me a ir de manhã ou depois de almoço para a Biblioteca Nacional de Portugal, e por lá ficava até o estabelecimento fechar. Não escrevia todos os dias. Quando se investiga – sou doutorado em história contemporânea -, há períodos em que quase só lemos e tiramos notas. Outros períodos existem em que, tendo tanta informação, somos mesmo obrigados a escrever. Durante o período da investigação, surgem também momentos em que o corpo pede para parar. Mas nunca paramos.
Em relação à ficção, também tive métodos. Já me obriguei a escrever 100, 200, 500 palavras por dia. Já escrevi a metro. Mas desiludi-me. Destruí muito do que fazia. Percebo que essa história de todos os dias ir ao papel e vomitar um montão de palavras é uma balela contada por mitómanos ou por autores de best-seller que não tem o mínimo amor à língua ou à literatura. Agora escrevo quando posso, quando quero, quando sinto que tenho algo a dizer. Escrevo quase todos os dias nos meus cadernos. Tenho um diário no qual despejo uma torrente de lixo. Não busco inspiração. Mas, trabalhando, tendo uma família, vou-me encontrando na escrita gradualmente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pela pergunta, estamos a falar de escrita científica. Há uma altura da escrita em que o olho se esgota para a investigação. Lembro-me de estar em Madrid, nos arquivos diplomáticos, e estar absolutamente cansado do que lá tinha encontrado. Tirara notas e mais notas. Umas quinze ou vinte páginas em Word com datas e comentários de diplomatas e referências a evento X ou Y. Ora, atingido o ponto de saturação, a solução é mesmo começar a escrever. E a escrita científica tem um problema, o da novidade. Eu um imberbe a escrever teses, a tentar respeitar os meus mestres, a repetir teses e a tentar dar um novo ar a tudo. Estava sempre preocupado com a questão da legibilidade do documento. Queria também ter originalidade. Julgo que escrever ficção é um acto mais livre, menos cínico, há menos pressão de agradar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Há um escritor português de que gosto muito, António Lobo Antunes, que me parece não conseguir parar de escrever. Todos os anos lança livros com mais de duzentas páginas. Melhores ou piores, todos os seus livros são de uma escrita de altíssimo nível. Gonçalo M. Tavares, outro escritor de que gostava bastante, mas que no presente acompanho menos (não por ter deixado de gostar), também parece estar sempre a produzir. Então, ao olhar para estes dois exemplos, sinto-me muito mal, pois tenho uma filha, depois estou na América (o que dá sempre muito trabalho…), antes tinha o doutoramento e o mestrado, depois quero fazer exercício físico ou ficar estendido no sofá a ler uma novela de Almada Negreiros (ou simplesmente a olhar para o telemóvel). Sinto recorrentemente que deveria estar a escrever. Estou com a mulher e penso: deveria estar a escrever. A palavra procrastinação pode ser substituída por vida. A verdade é que vivemos. Só o facto de trabalharmos e termos de descansar nos obriga a viver, isto é, a não escrever. Ainda assim, o meu grande objectivo é no futuro poder dedicar-me apenas ao amor, ao café e à escrita. Não lido nada bem com a procrastinação, mas não a evito (e ao mesmo tempo sinto que a procrastinação é inevitável).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito. Durante a escritura da tese de doutoramento, redigi diferentes versões de cada capítulo. O meu orientador fazia a simpatia de rever cada versão e dizer: isto poderia estar melhor (que é como quem diz: que trampa de capítulo me traz o senhor). Na ficção, também tendo a rever bastante. Mas depende. No site de que sou co-editor, a Enfermaria 6, muitas vezes publico textos que reli uma vez. Mostro o trabalho a poucas pessoas. Sou reservado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma relação doentia. Passo muitas horas no Iphone a saltar de aplicação em aplicação, a mirar fotografias de gente que não conheço, a espumar da boca por não ter outras vidas. Depois abro o computador. Muitas horinhas perdidas com tecnologia. Escrevo muito à mão. Sempre ando com um caderno. Se saio de casa sem um caderno, não faço mais nada sem passar por algum sítio que os venda. A mesma coisa com livros. Sair sem um livro de casa é como esquecer as calças no armário. No entanto, acabo por copiar os escritos – alguns, não todos, porque a maior parte nem se aproveita, é puro lixo – para o computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Eu não sou Lobo Antunes, Deus não me comanda a mão. Para me manter criativo preciso de ler. Preciso de ler muito, ao ponto de ficar mesmo cansado. Acompanhar-me de pessoas estimulantes também auxilia. Conhecer um professor amigo que nos fala tão bem de um livro que o vamos comprar e ler, isso é de uma beleza aterradora. A criatividade é uma coisa complexa, pois parece não ter qualquer consistência.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou imensa coisa. Quando comecei, lia muito, mas escrevia muito mal. Lia Beckett e queria ser como ele. Lia Dostoiévski e tentava imitar. Depois,forçava-me a escrever e escrever. Fumava na altura. Fumava e escrevia. Ainda tinha tempo para uma namorada não muito agradável em termos de humor. Se voltasse atrás, diria para ser menos rígido, para gostar mais do que fazia, para me concentrar naquilo que me dava prazer, mesmo dentro da escrita. Ser Beckett é imensamente chato quando se nasceu com o nome Paulo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que gostaria de ler e que ainda não existe é um livro escrito por mim, uma obra-prima que rivalize com Guerra e Paz, Os Lusíadas, D. Quixote, Crime e Castigo. Projectos tenho vários, muitos relacionados com a publicação e com a escrita. Procuro parcerias e amizades nos Estados Unidos para dar continuidade à publicação de material literário e científico. O projecto maior é ser o mundo. Não há melhor chavão.