Paulo Roberto Sodré é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal do Espírito Santo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Moro em um apartamento na Cidade Alta, no centro da ilha de Vitória, no Espírito Santo, com janelas ainda generosas para o Nascente, que, dia a dia, me apresentam o fluxo do rio Santa Maria em direção ao mar. Sempre que acordo, e logo depois de uma breve reflexão sobre as horas pela frente, abro as persianas e confiro o humor do clima. Dependendo da luminosidade e do frescor do dia, opto por leituras de textos teóricos/críticos ou literários/artísticos (gosto de ler fotografias, canções, filmes, desenhos e pinturas) ou por escritura (ou desenho, vez ou outra), após o café da manhã frugal e a busca de notícias nas plataformas digitais.
Sim, faltam exercícios físicos matutinos… uma lástima. Ainda não fui capaz de mantê-los na rotina de leitor-escritor (e desenhador).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Qualquer hora me é agradável para o trabalho, desde que a manhã comece com um café forte, e a tarde se inicie depois de cerca de 50 minutos de sesta (sábio costume herdado de meu falecido pai, comerciante de secos e molhados, em Alto Lage, subúrbio de Cariacica, cidade que integra a Grande Vitória, onde passei boa parte da juventude). Garantidas essas condições básicas, parto para a leitura ou para a escrita sem entraves, sem indisposição, sem mau-humor.
Em que pese essa disponibilidade para qualquer hora do dia, há um quê de sedutor no turno da tarde, por volta das 15h (especialmente depois de março e antes de outubro, temporada em que o clima na ilha costuma ser mais ameno), quando o dia parece mais maduro e, por isso, mais propício à percepção de frases, histórias, versos, personagens, ritmos…
Se o projeto em execução implica a poesia, por exemplo, procuro nessas horas ouvir preliminarmente o que me soa próximo à atmosfera dos textos a serem produzidos. Então, aciono o Youtube (antes era o CD player e, muito antes ainda, a vitrola) e inicio o trabalho, atento aos concertos para alaúde ou fagote, às modas de Chiquinha Gonzaga, aos cantos comunitários dos Guaranis ou aos afro-sambas de Powell, ao piano de Keith Jarrett ou ao bandolim de Hamilton de Holanda, à voz de Olivia Hime ou de Zé Ibarra, ou aos sons de chuva ou cachoeira com detalhes de aves em algum recanto do planeta… Tudo isso justaposto ao fundo realista de ruídos do porto de Vitória e das avenidas principais da cidade, que correm ora leves, ora impacientes, lá em baixo à beira do rio.
A noite, como a manhã, geralmente atua como estação de preparatórios (busca de fontes, seleção de textos ou imagens para citações, intertextos etc.) e revisões ou, ao menos, de releituras, raramente de produção propriamente dita. Claro está que, apesar dessa nitidez de protocolo e método para escrever, gosto de ligar o notebook a qualquer hora para lançar notas, corrigir ideias, ajustar sintaxe, expurgar deslizes de toda ordem, quando a vontade e a necessidade fazem vista grossa àquelas preferências e ditam sua urgência exigente. Nesse estado criativo, até as madrugadas, sempre defendidas e preservadas rigorosamente para o indispensável descanso, entram em cena, não sem resmungos e muxoxos compreensíveis.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha atuação ainda como docente universitário me distrai de uma almejada meta profissional de escrita criativa diária. Isso se deve ao fato de a preparação de cursos, artigos, palestras e aulas, que me apraz muito, acabar por disseminar na agenda uma série de objetivos e atividades que, por razões evidentes, me leva a deixar a meta em segundo plano.
De toda maneira, e embora a invenção de textos literários me acompanhe com frequência, gosto de começar a escrever a partir de um projeto pensado e delineado ao longo de dias e meses: tema, gênero predominante e linguagem são considerados preliminar e mentalmente até um ou outro poema inaugurais chegarem aos primeiros rascunhos. Tendo isso como norte, a demarcação de tempo, mesmo no tumulto das atividades docentes, ganha razão de ser e disciplina. Isso significa que em determinado período do dia ou da semana só me interessará a execução desse trabalho.
Muitas vezes, consigo driblar a vontade e adiar esse período mais intenso de dedicação para os recessos acadêmicos e as férias trabalhistas; quando essa estratégia não funciona, concilio as exigências docentes com as criativas, dando preferência, decerto, àquelas (meu efetivo [e inestimável] ganha-pão). A razão disso é que tenho dificuldade de levar dois ou mais entusiasmos concomitantemente… Gosto de curtir cada um a seu tempo, evitando ceder à pressa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Uma das vantagens da docência voltada para os estudos literários é que isso me permite um estado constante de descoberta, de sensibilização e de pesquisa. Assim, em geral, o tema e seu respectivo projeto são disparados com leituras de reconhecido(a)s, esquecido(a)s ou desconhecido(a)s autores e autoras recolhido(a)s diretamente em suas obras ou em meio ao exame de textos teóricos ou críticos para preparação das atividades acadêmicas.
Encontro nos textos teóricos ainda, para além das indicações ou citações parciais e integrais de obras literárias, os conceitos filosóficos, antropológicos ou historiográficos que despertam constantemente reflexões variadas e, por conseguinte, motivos e assuntos para um plano criativo.
Assim veio o Senhor Branco ou o indesejado das gentes (2006), poemas resultantes do contato, em diferentes instantes, com O sétimo selo, de Ingmar Bergman, “Momento num café” e “Consoada”, de Manuel Bandeira, e com o ensaio precioso Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira, de Davi Arrigucci Júnior. Cada uma dessas leituras me ajudou, em distintos períodos, a amadurecer uma questão que sempre me acompanha: o jogo invisível da morte.
Como sou do tipo desconfiado, procuro colocar as ideias em espera, arrefecendo seus arroubos e maturando suas possibilidades. Algumas sobrevivem; outras, teimosas, se reinventam.
Eleito o tema – a homoafetividade, o amor embaraçado, a fugacidade do tempo e a viagem interior preponderam –, prefiro sempre partir diretamente para uma primeira versão do projeto, experimentando sua relevância, pertinência, adequação, viabilidade, efeito. Esses “filtros” (fundamentais para mim) me ajudam a perceber qual é de fato a importância ou a consistência do conceito que, inicialmente ponderado, acaba de se apresentar no notebook (e, anteriormente, nos papeis avulsos [nunca gostei de cadernos ou encadernações afins]).
Quando produzi De Ulisses a Telêmaco e outras epístolas (1998), o objetivo inicial era fazer apenas o poema “De Ulisses a Telêmaco”, para uma publicação autônoma em alguma coletânea ou revista. No entanto, ao concluir os cinco poemas que o compõem (aprecio muito os “poemas em cascata”, quando o tema não consegue se restringir a um poema curto, extensão que prefiro), o fio do assunto (o lamento de um Ulisses, pai e modelo da heterossexualidade ocidental, em relação a seu filho, apagado e distante herdeiro de sua figura fulgurante) puxou a possibilidade irresistível de imaginar outras vozes paternas, mas agora se queixando da grandeza dos filhos que os eclipsa.
Acabei por perceber aí um veio interessante para outros poemas. Nesse sentido, vieram Pietro Bernardoni, pai de Francisco de Assis; João de Portugal e seu filho Dom Sebastião e o bíblico Jessé, pai do pastor Davi, entre outros, configurando um inesperado projeto e uma imprevista publicação: por acaso, esse texto foi lido pelo falecido historiador e poeta Miguel Depes Tallon, que o quis para uma publicação pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em uma coleção voltada para a literatura.
Desse modo, um poema que nasceu das leituras da Odisseia me levou a outros que requeriam pesquisa mais pormenorizada, não planejada antes, sobre as figuras paternas de distintas temporalidades e culturas. Imaginando essas vozes, busquei símbolos e referências que pudessem compor cada poema e sugerir ambientes variados, sem perder de vista, porém, o mais importante: a melancolia dessas possíveis vozes masculinas, na verdade, atemporais em sua humanidade conflituosa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não passei, salvo melhor lembrança, exatamente ainda por alguma dessas experiências, porque “as travas da escrita” só me sucedem quando me dou conta da irrelevância do projeto; a “procrastinação” só me ocorre quando os compromissos docentes me impedem de me dedicar exclusivamente ao trabalho criativo; o “medo de não corresponder às expectativas” não me toma a atenção a ponto de estagnar o avanço da produção de um texto, e a “ansiedade de trabalhar em projetos longos” se converte muitas vezes em motivação para observar e cultivar as etapas e o que cabe a cada uma delas: a dúvida, a minuta, a desconfiança, a revisão, o projeto, a ponderação, as revisões (e mesmo assim as gralhas riem de meus tropeços).
Os efeitos negativos da escrita criativa talvez me advenham minimamente devido à duplicidade de trabalho, o docente e o literário, o que torna este uma estação de atividade opcional, de que deriva uma dimensão lúdica muito acentuada.
Curiosamente (e, porventura, previsivelmente), “o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos” têm sido vivenciados no trabalho docente. É possível que, a partir da aposentadoria, esses fantasmas, fieis perturbadores da sensibilidade, migrem de lá para o que poderá ser meu trabalho criativo exclusivo (se bem que os desenhos concorrerão, decerto, com essa exclusividade) daí em diante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Há um desafio que, imagino, todo artista experimenta a cada trabalho, seja qual for o signo de sua linguagem: o equilíbrio da sequência dos prefixos “in” e “tran” da “spiração” – como devem se lembrar, complementos da spiratio, sopro (com perdão pelo jogo de termos…). Não aprecio qualquer desses isoladamente: nem apenas inspiração (quando se dá o escrever intuitivo e entusiasmado sem a passagem pelo trabalho com a linguagem), nem somente transpiração (quando se dá o escrever cerebral sem a passagem pelo afeto inspirador, isto é, pela percepção no mundo do que vibra, enternece, arranha ou revolta a sensibilidade). Procuro escrever o que passa equilibradamente pelo que inspira e pelo ato de transpirar.
É muito comum no meu modo de trabalho – e creio que isso seja comum entre os escritores –um poema (ou outro texto) frequentar minha cabeça antes de virar grafite (prefiro-o à tinta da esferográfica) ou caracteres no Word. Nesse ínterim, ajusto mentalmente as frases em busca de versos, imagens, ritmo, rimas algumas vezes (sempre insinuadas), disposição de estrofes. Quando percebo que pode dar certo, lanço-o em uma minuta, primeiro processo de revisão. É nesse momento que constato mesmo se vale a pena escrever, ou seja, deixar o poema sobreviver no registro inicial, inspirado e transpirado. À medida que o plano criativo avança, os textos vão passando por revisão interna (sua linguagem) e externa (sua adequação ao livro: tom, sequência de partes e de poemas nessas partes).
Frequentes vezes, quando um texto surge, ele já vem como parte de um projeto a ser desenvolvido. Se o texto, contudo, vem avulsamente, guardo-o para um possível encaixe em plano vindouro (que o poema, de algum modo, já prenuncia).
Ainda que seja aconselhado desde os primeiros e antigos tratados de produção literária, tenho o defeito de, por recear demais incomodar as pessoas, evitar a demanda de leituras. Assim me comportando, os livros de poemas têm tido pouquíssimos ou, em alguns períodos, nenhum leitor durante o processo de feitura e conclusão.
A primeira vez que passei pelo processo de submeter meus textos a amigos e colegas foi ocasionada pela participação, aos vinte e poucos anos, em uma oficina literária, promovida pela Universidade Federal do Espírito Santo e pelo Departamento Estadual de Cultura, no início dos anos de 1980, sob a regência de Deny Gomes, poeta e professora de Teoria Literária, e Neida Moraes, historiadora e romancista. Desse contato com leituras e leitores, riquíssimo e fundamental para o ofício de escritor, resultou a seleção de poemas que publiquei no primeiro livro, Interiores (1984), que contou ainda com a leitura do editor e romancista Reinaldo Santos Neves e de um exímio leitor e poeta, Oscar Gama Filho, que acabou por me presentear com um pormenorizado prefácio. O segundo, Ominho (1987), poema em prosa para crianças e jovens, teve a leitura de Francisco Aurelio Ribeiro, escritor especialista em narrativas para a infância, que indicou o livro para uma coleção da Secretaria Estadual de Cultura.
A partir do terceiro, lhecídio: gravuras de sherazade na penúltima noite (1989), um poema romanceado carregado de experimentos, as publicações vêm resultando sobretudo de premiação em concursos literários, o que significa terem contado com a leitura de uma comissão julgadora, como foi o caso de Dos olhos, das mãos, dos dentes (1992), um livro de poemas integralmente voltado para o homoerotismo.
Essa estratégia de publicação, submeter um original a uma comissão ou banca, talvez tenha me tranquilizado quanto ao desejo de leitura preliminar de alguém, uma vez que passei a produzir os livros seguintes, tendo em vista a avaliação às cegas, que prefiro, aliás. De toda maneira, opto, quando viável, por aguardar a manifestação de alguém no sentido de desejar ler o manuscrito – ou digitoscrito – que no momento esteja desenvolvendo.
Apenas recentemente, na produção da narrativa Uma leitura na chuva (2018) – excepcional na minha linha de escrita, predominantemente poética –, é que de maneira não usual acionei, além do editor Alfredo Santos Júnior, alguns amigos para observarem o andamento da elaboração dos personagens e, sobretudo, da estrutura da narração em mise en abyme. Com o retorno de diferentes leitores, pude observar a recepção inicial e ajustar a montagem dos capítulos e o enxugamento de diálogos e situações que, na revisão pós-leituras, me pareceram redundantes ou ociosas para o sentido global do livro. Esse longo projeto, iniciado em setembro de 2009 e finalizado em 2017, foi um dos mais difíceis, justamente por escapar à alçada de meus escritos mais habituais. Esse motivo me fez deixar de lado o pudor e incomodaros gentilíssimos amigos.
Apesar de não ter sido uma prática constante, por temperamento, não tenho dúvidas de que a leitura de alguém (isto é, a submissão dos textos ao juízo e aos “ouvidos do prudente, experto/ amigo, não invejoso, ou lisonjeiro”, como aconselha o quinhentista poeta horaciano português, António Ferreira, na conhecida “Carta XII, a Diogo Bernardes”) é mesmo primorosa, um norte, um farol.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Até onde me recordo, mantive o ritual do manuscrito (para depois digitá-lo) até os anos de 2010: sempre gostei muito da caligrafia dos versos, frequentemente em grafite, na folha de papel (ainda guardo papeis amarelados com rascunhos de textos, manuscritos e datiloscritos). Mas a partir daí, mais ou menos, passei a produzir minutas diretamente no computador e, mais recentemente, no celular.
Vez em quando, confesso, não resisto e volto, quase nostalgicamente, ao delicioso jogo de rascunhar a lapiseira (acompanhado de uma criteriosa borracha, úteis tecnologias também, recordemo-nos) os versos, como ocorreu no último projeto, inédito, Passagens (2019-2020), com haicais ou poemas-minuto inspirados no bandeiriano Mafuá do malungo eem dois poetas, Bith e Carlos J. Vieira (que, generosos, se propuseram a ler os poemas mínimos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como observado anteriormente, o contato diário com o estudo da Literatura Portuguesa e daquelas que a baseiam intertextualmente me propicia um repertório de leituras, de análises críticas e de teorizações que me mantém frequentemente à beira de ideias e projetos.
Exemplo disso é o livro Anotações de viagens (2010), inserto na coletânea Poemas desconcertantes (2012, disponível aqui), que reúne dois livros publicados mas esgotados (De Ulisses a Telêmaco e outras epístolas, de 1998, e Senhor Branco ou o indesejado das gentes, de 2006) e três até então inéditos (Poemas do desconcerto, de 1993; Poemas ridículos [ele passeia em beleza], de 2003, e o Anotações), que veio, por um lado, das leituras de narrativas de viagens de Camões, Garrett e Bandeira, e, por outro, da experiência pessoal de viajar sozinho pelo Brasil desde 2007, fotografando, desenhando e escrevendo.
Outro exemplo é a série “Poemas travestidos”, inserta igualmente no Poemas do desconcerto, que se originou na leitura das cantigas de amigo medievais em galego-português.
Um caso especial e mais recente de estado criativo revela o efeito não apenas das leituras, mas também de eventuais “revisitas” (raras) a livros próprios publicados e que deixaram para mim um quê de aresta, de ajuste por fazer… Costumo dizer nas palestras, em que o assunto é minha produção literária, que lhecídio: gravuras de sherazade na penúltima noitee Ominho são obras experimentais, juvenis (contava vinte e poucos anos), que tentaram radicalizar a rasura nas noções de gênero e linguagem. Assim pensando desde que os publiquei, nos anos em véspera de completar 50 anos (2012), tomei como projeto o desafio de produzir uma narrativa menos experimental para adultos e para crianças: nasceram desse propósito o Guido, a folha e o capim (2010), premiado na categoria de textos voltados para a infância, e no mencionada narrativa Uma leitura na chuva, premiado na categoria romance, em 2017.
Nesse último, como exponho no prefácio, procuro homenagear algumas narrativas que me impressionaram ao longo dos anos por distintos motivos. Retomando o protagonista de lhecídio, o poeta Eduardo, Uma leitura na chuva apresenta três partes e diversas minutas de romances ensaiadas por Eduardo. A 1ª parte trata da volta de Alessandro a Vitória, depois de vários anos, motivada pelo acidente sofrido pelo poeta, amigo dos tempos da graduação em Direito; a 2ª expõe o manuscrito do romance de Eduardo, em que se inserem seus três ensaios de narrativas, que Alessandro lê por acaso, enquanto aguarda o horário para visitar Eduardo no hospital; a 3ª apresenta a reação desesperada de Alessandro à leitura do romance inacabado do amigo, uma vez que ele é um dos personagens do livro em construção. O romance, desse modo, é estruturado como narrativa dentro de narrativa, já que o primeiro ensaio de narrativa, “Hipomênia e os cães” (alusivo a A demanda do santo graal, novela anônima do século XIII, e ao romance contemporâneo Corações migrantes, de Maryse Condé, que retoma o conflito de O morro dos ventos uivantes), o segundo, “A pedra de Carlos” (alusivo ao Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e ao “Singularidades de uma rapariga loura”, de Eça de Queirós), e o terceiro, “Um chorinho em sol menor” (alusivo ao Tenda dos milagres, de Jorge Amado, ao Barravento, de Glauber Rocha, e às Cartas portuguesas, de Gabriel-Joseph de Lavergne, visconde de Guilleragues), são os pequenos romances que Eduardo hesita em escrever, enquanto se debate, ainda, entre o amor por dois homens, Maurício e Alessandro. Outro motivo a partir do qual a narrativa é desenvolvida é o famoso autorretrato O homem ferido, óleo de Gustave Courbet, configurado em forma de postal com que Eduardo presenteia Alessandro na época da graduação. A pintura atua fortemente no enredo, haja vista que tanto Eduardo, o autor, como Alessandro, o leitor, são “feridos” em sua subjetividade e identidade, núcleo temático da narrativa recheada de citações de mestres da narrativa.
Foi um trabalho difícil de se concluir justamente por sua diversidade de registros, de tempos e de pontos de vista, para além dos intertextos. O conto “Singularidades” e a carta terceira de Lavergne são retomados textualmente em algumas passagens, o que provoca um estranhamento na linguagem dividida em duas camadas distintas: a da narração (em terceira pessoa) e a do narrado que, por sua vez, é uma narração que mescla terceira e primeira pessoas.
Seja como for, não é difícil estar em contato com ideias e projetos, até porque cada um traz, frequentes vezes, embutido em si um novo. O problema é intuir, inicialmente, e depois perceber a potência de cada uma das ideias, de cada um dos projetos, e selecionar e investir neles.
Neste momento em que respondo às perguntas, experimento o processo de germinação de ideias e delineamento ou não de um novo projeto. No decorrer dos oito meses em isolamento, para evitar os efeitos da pandemia, vivenciando mais densamente o espaço interior da casa, foi inevitável recordar o irônico Viagem à roda do meu quarto, de Xavier de Maistre, de 1794, conhecida base intertextual do impagável Viagens na minha terra, de Almeida Garrett (coincidentemente estudado neste semestre nas aulas de Literatura Portuguesa, na Ufes). O primeiro, mais afeito à situação atual (porque o narrador resta em seu quarto), vem me atraindo muito para a escritura de texto semelhante, mas, desconfiado, mantenho a ideia em ponto de espera. Vamos ver se resiste a essa etapa de filtro e sobrevive para uma possível seleção e execução em projeto vindouro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Dois aspectos me vêm à mente quando penso em alterações ao longo desses trinta e seis anos de convivência com o trabalho literário criativo: o da linguagem, caudalosamente imagética nos primeiros anos e hoje (espero) mais concisa, e o da urgência, hoje acalmada, da produção e da publicação, condição que inevitavelmente nos conduz não raras vezes à precipitação e, muitas vezes, ao equívoco.
Nesses últimos anos, as ideias têm me chegado com o mesmo entusiasmo; tenho conseguido, entretanto, sossegar mais o ardor e examinar mais se de fato são relevantes, se de fato podem dizer alguma coisa importante para alguém, além de mim mesmo, e virar projetos. Com esse crivo, muito poucas sobrevivem na espera. Atualmente, há umas quatro hóspedes(inclusive uma narrativa para crianças) na pasta do notebook…
Quanto ao que eu me diria (e diria aos poetas), se pudesse voltar aos primeiros escritos: Leia mais, demore mais na leitura, escreva mentalmente ao ler, adie ao máximo a escrita em favor das leituras e só então escreva e, sobretudo, reescreva…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No livro Poemas desconcertantes (2012), publiquei um texto, “Visitação”, sobre os Guaranis e Tupiniquins que ficam nas margens da rodovia, em Aracruz, no Espírito Santo, vendendo seus artesanatos. Trata-se de uma série de sete poemas curtos que eu gostaria de desenvolver em um livro inteiramente dedicado a esse tema: os habitantes originais deste quinhão de terra “americana” no olhar de quem passa por essa rodovia, metonímia de tantas outras aqui e alhures. Trata-se de um projeto difícil, dada a complexa, além de delicada, situação desses povos. Acho-o relevante, mas não encontrei ainda o tom, a trilha, o trânsito por essa matéria tão profunda e, dados o descaso e o desrespeito com que essas comunidades em geral são tratadas, angustiante.
Não tenho esse tipo de expectativa (“Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe”). Aliás, não sou ambicioso quanto à quantidade e a um tipo específico de leitura: nunca contei quantos livros li em uma semana, mês ou ano… acho esse tipo de estatística estranho; nunca fiquei imaginando um livro inexistente, mas o ainda não descoberto, porque, ao longo de tantas eras, culturas e gerações, desconfio de que talvez (quase) todos já tenham sido escritos ou resistam oralmente: resta-nos (e isso é uma alegria) resgatá-los e conhece-los.