Paulo José Cunha é jornalista, escritor e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa da forma mais prosaica possível: sou eu quem prepara o café lá de casa. Sempre tomamos café juntos, eu e minha mulher, ouvindo o rádio e falando mal do governo, seja que governo for. Aí vamos trabalhar, cada um para um lado ou, às vezes, quando é dia de minhas aulas, eu e ela vamos juntos pra UnB, onde ela trabalha na Secom-UnB.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Minha rotina é não ter qualquer rotina. Sou caótico. Às vezes a produção ocorre num dia só, como se fosse um jorro. Outras vezes vem de gota em gota. Gosto mesmo é quando, ainda que esteja num sufoco, consigo embalar num texto e vou do início ao fim, sem respirar. Infelizmente, as atividades do dia-a-dia não me permitem trabalhar assim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo basicamente poesia, crônica e análises políticas. Ou seja: nenhuma dessas atividades exige mergulho nas profundezas de uma novela ou, ainda mais fundo, de um romance. Por isso, costumo anotar os insights, que vão dormir num arquivo de pendrive, semanalmente copiados para outro arquivo, no computador de casa. Mas só os relativos a poemas. Ou seja: a poesia exige preparação e planejamento. As demais atividades fluem e se realizam ao sabor do fluxo de ideias. No máximo, sei onde quero chegar. E vou engrenando as marchas até chegar lá. Poesia, não. Poesia exige poema, e poema não é coisa que se faça de qualquer forma. Dá um trabalho danado.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou jornalista. Estou acostumado com deadlines apertados. Gosto de uma imagem do cartunista Jaguar. Ele diz que não há maior incentivo à criação do que os dentes do cachorro preto. Explicando: segundo ele, quando recebe uma encomenda, é como se alguém soltasse um cachorro preto muito longe da casa dele. Mas o cachorro, bom farejador, vai encontrá-lo inevitavelmente quando o prazo terminar. Por isso, nos primeiros dias, ele não dá bola pro cachorro, até que começa a ouvir um latido aqui e outro ali. Por fim, um dia, se depara com ele babando e exibindo os dentes, parado na porta do escritório de trabalho, pronto pra atacar. Aí sabe que não tem alternativa e completa o serviço, pra não ser comido pelo bicho.
Comigo acontece algo parecido. Mas aprendi também uma coisa que tem me ajudado muito, principalmente a espantar a angústia de não ter ideias para completar um trabalho até se aproximarem os dias finais para a entrega. É que a gente supõe que o tempo está passando e não está fazendo nada, e por isso se angustia, esquecendo-se de que o inconsciente, enquanto não fazemos objetivamente coisa alguma, na verdade está trabalhando em busca das “soluções”. E lá na última hora elas pulam do inconsciente para o racional, o que nos permite terminar o trabalho aos 45 do segundo tempo! Tive um professor, padre Florêncio, que dizia, em relação aos problemas de Química que não conseguíamos resolver: “Vá dormir. De manhã você enfrenta o problema e vai ver como a solução vem rápido, porque durante a noite seu inconsciente vai continuar trabalhando em busca da solução, embora você nem perceba”. E isso é verdade, tiro por mim. Vale para problemas de química, de texto ou até de família.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou fundamentalmente um revisador. Para mim, escrever é reescrever. Nunca me contento com a primeira versão de um texto. Sigo a recomendação do Mário Quintana que, diante de uma moça que lhe perguntou como era possível realizar aqueles poemas lindos de um jato só, “de primeira”, como se diz, ele respondeu: “Ah, minha moça. Para eles parecerem que saem de primeira eu os reescrevo uma 50 vezes…”
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antigamente fazia tudo à mão. Gastava um monte de folhas, entre um cigarro e um trago em alguma coisa. Larguei o cigarro há mais de vinte anos, comecei a fumar cachimbo. Hoje, parei de escrever tomando alguma coisa, no máximo um chimarrão. Larguei cigarro e cachimbo. Depois, passei para a máquina de escrever. Ia reescrevendo até, no final, o texto estar como eu gosto, tendo ao lado uma pilha de laudas que terminavam na cesta do lixo. Hoje, uso o computador, onde escrevo e reescrevo até “afinar” o poema, deixá-lo enxuto de tudo o que não seja poesia. Só então me dou por satisfeito. Único problema é que não tenho, como outrora, uma espécie de roteiro da coisa, do início ao fim, o que me permitia perceber de que forma as coisas se organizaram até chegarem à forma final. Mas, é a vida!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A maioria das ideias que tenho vêm quando caminho. Por isso sou um caminhante impenitente. Quer me deixar vazio de ideias é só me impedir de caminhar. Outro hábito é não forçar a barra em momento algum. Sabe aquele arquivo do pendrive? Vez ou outra dou uma passada nele e uma daquelas ideias, um daqueles insights que anotei, pisca pra mim, me convida, e aí começo a desenvolver. Às vezes, completo de um sopro; outras, avanço um pouco e deixo pra lá. Vez ou outra volto, paro. Às vezes concluo, outras vezes fica por aí até eu me irritar e apagar, por perceber que daquele mato não vai mesmo sair coelho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tornei-me um pouco mais racional na redação, e isso não me parece muito bom. Prefiro quando as ideias saem de qualquer jeito, meio sujinhas, mas autênticas. Esses filtros que o tempo vai criando na gente não são bons para a criação poética. Há que rompê-los, deixar as palavras seguirem seu galope e dizerem o que a gente precisa saber. Tenho um poema que diz exatamente isso. Vou transcrevê-lo aqui:
Un coup de dés jamais n’abolira le hasard
Escrevo
pra saber o que dizer,
na esperança,
acredito,
de que o galope das palavras
diga
o a ser dito.
Não colho palavras: cavo.
E não me iludo, por inútil.
Assim, sem rumo,
no escuro,
apenas escancaro a porta.
E que o verbo
ache seu prumo.
Nada disso, minto:
palavra alguma revela
exatamente o que sinto.
Sem pretender a clareza,
escrevo na claridade,
pois as palavras mais claras
são de todas as melhores
pra esconder a verdade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto mais urgente é sempre o próximo. Em perspectiva tenho sempre uns dez projetos à frente. E cada um vai se realizando à proporção em que consigo concluí-los. Como sou multimídia, dou-me ao direito de escrever ou produzir documentários, ou fazer analises críticas, ou fazer crônicas, ou fazer comentários políticos. A ordem é aleatória. Mas sinto que, agindo assim, consigo arejar as ideias e por isso nunca me sinto cansado de fazer sempre a mesma coisa. Tem funcionado.