Paulo da Luz Moreira é professor associado da Universidade de Oklahoma.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa normalmente às sete da manhã. Preparo o café da manhã dos meus filhos, o almoço que eles levam e deixo os dois nos respectivos colégios. Às 8h30 estou pronto para começar a escrever até a hora do almoço.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não sinto que haja um horário específico que seja melhor para trabalhar. Por conveniência da minha vida pessoal e profissional, costumo escrever entre 8h30 e 15h30 e depois entre 21h e mais ou menos meia-noite. Tento escrever diariamente no mínimo a metade desse tempo. E pelo menos uma vez por semana passo uma noite inteira escrevendo até as três ou quatro da madrugada. Meu ritual de preparação para a escrita é simples: coloco música instrumental nos fones de ouvido e leio pelo menos trinta minutos na língua em que vou escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mas tenho períodos concentrados para conseguir terminar certos projetos dentro do prazo. Normalmente não tenho uma meta de escrita diária que seja mensurada em páginas escritas. Mesmo porque há páginas que a gente escreve em quinze minutos e páginas que a gente escreve em três dias. No meu horário de trabalho, há dias em que acabo usando bastante tempo lendo e tomando notas do que escrevendo. Acho importante frisar que escrevo poesia, prosa ficcional e ensaios de crítica ou pesquisa e por isso mantenho essas três frentes vivas na minha cabeça o tempo todo. Trabalho em cada uma delas todas as semanas, mesmo que seja por pouco tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não compilo notas e depois começo a escrever, nessa ordem. Vivo um constante vai e vem entre a pesquisa e a escrita. Uma ideia me leva a uma leitura (ou releitura) e depois à escrita. Aí a escrita em si vai indicando caminhos mais específicos de pesquisa, principalmente à medida em que reviso os textos e vou percebendo lacunas que precisam ser preenchidas. Além disso, as notas compiladas a partir de uma leitura com um objetivo específico podem acabar sendo usadas para outros textos, até textos de natureza completamente diferente. O que pesquisei para escrever um ensaio pode ser usado em um poema, por exemplo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sinceramente, minha escrita nunca trava. Eu em geral não procrastino no sentido próprio da palavra, porque quando me canso de um determinado projeto imediatamente dou um pulo até um outro. Por isso é que, apesar de trabalhar muito e escrever razoavelmente rápido, as coisas acabam saindo devagar, bem aos poucos. Tenho certeza que nunca vou corresponder às minhas expectativas e que o que eu escrever será, na melhor das hipóteses, aquilo que William Faulkner chamava de um esplêndido fracasso. Mas sinto que cada fracasso é um pouco melhor que o anterior.
Tenho alguns projetos longos e eles são sempre mais complicados, mas, como são importantes para mim, eu vou tocando projetos menores que depois fornecem partes para um projeto maior, avançando, assim, aos poucos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos no mínimo umas dez vezes. Mas isso não significa que termino primeiro o texto inteiro para só então começar a revisar propriamente. Se escrevi três páginas num dia, no dia seguinte vou reler e revisar aquelas três páginas antes de começar a escrever a quarta. E assim vou, sucessivamente, até completar o texto inteiro. Aí ainda reviso o texto algumas vezes, até que eu consiga lê-lo do começo ao fim sem mudar praticamente nada – esse é o sinal que cheguei ao final do processo. Antes de enviar o texto para publicação posso ainda mostrar para uma ou duas pessoas próximas. Já tentei criar um grupo que lia os textos uns dos outros e oferecia críticas construtivas, mas as pessoas infelizmente não se interessaram.
No caso de textos acadêmicos, sei que eles vão ser lidos e criticados por outros especialistas antes de serem publicados. Em geral não tenho problemas com esse tipo de revisão porque entrego textos já bem polidos, mas confesso que não gosto muito desse tipo de revisão. Isso porque acho que muitos revisores são excessivamente narcisistas e parecem só ficarem satisfeitos com textos que repitam as ideias e o estilo deles mesmos. Acho que o estilo de cada um é uma espécie de marca do temperamento criativo – você pode melhorar dentro dele, mas não pode abandoná-lo completamente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo quase sempre no computador. Mas escrevo à mão pedaços de rascunhos, fragmentos e notas, que vou coletando em dois cadernos diferentes que sempre tenho comigo. Um desses cadernos é pautado, pequeno e bem leve – ele serve para ficção, poesia e memória. Nos cadernos pautados – tenho dezenas deles guardados – estão primeiras versões de partes de tudo o que escrevi. O outro caderno não tem pauta e um pouco maior – este serve exclusivamente para pesquisa, abrigando as notas de leituras que faço. Ambos são leves porque carrego os dois comigo o tempo todo. Leio e anoto na fila do banco, no carro esperando meus filhos na saída da escola, estudando num café; toda hora e em todo lugar. A razão do segundo caderno ser maior é a seguinte: eu gosto de desenhar e escrever e situar num par de páginas abertas na minha frente as notas todas que tomei sobre um determinado assunto ou leitura. Isso me ajuda a organizar as minhas notas e ideias de maneira “panorâmica” e mais produtiva. Em casa tenho até um caderno com folhas imensas onde tento reunir várias coisas de cadernos menores sobre um assunto em comum. Algo desses cadernos também acaba chegando ao computador quando vou escrever algo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm do meu próprio passado e das várias leituras que fiz. Algumas vezes encontro coisas interessantes em programas especiais da NPR, a radio pública estadunidense, que trazem assuntos, histórias e linguagem interessantes. Fora isso pouca coisa de fonte oral hoje em dia, infelizmente. Certas revistas e até jornais oferecem às vezes coisas que me interessam. Essas são as minhas fontes.
Tenho há muitos anos um blog chamado Às moscas, que me serve de laboratório para textos breves e primeiras versões. Ali escrevo por prazer, de forma inconsequente, para praticamente ninguém, num ambiente bem relaxado.
Tenho algumas práticas que não sei se posso chamar exatamente de hábitos. Comparo e contrasto tudo à minha volta compulsivamente, pulando o tempo todo entre culturas [geralmente, mas não sempre brasileira, mexicana e estadunidense], entre idiomas [geralmente, mas não sempre português, espanhol e inglês], e entre diferentes gêneros literários. Por exemplo, preparando um conto mexicano breve para uma aula posso encontrar um verso; traduzindo um poema dou com uma voz narrativa curiosa; anotando um texto teórico tenho uma visão mais nítida e rica de um personagem.
Uma outra prática profissional é anotar detalhadamente os textos literários sobre os quais vou escrever. Levanto todas as pedras: pesquiso cada referência, cada nome usado, cada detalhe do enredo e cada idiossincrasia estilística. Nessa hora todo e qualquer detalhe é relevante para mim. Esse primeiro estudo acaba sugerindo na minha cabeça um arcabouço teórico a ser usado no texto que vou produzir. Não gosto de usar um texto como mero pretexto para aplicar genericamente alguma teoria ou fazer afirmações gerais. E não gosto de análises que ficam só na superfície dos “fatos” narrados no enredo. As abordagens teóricas no meu caso sempre nascem da leitura detalhada dos textos primários e se organizam organicamente a partir dessa leitura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Ao longo dos anos acho que o processo em si não mudou muito, mas melhorei no uso dele. Aprendi a ser um pouco mais rápido, errando um pouco menos durante o percurso. Aprendi também a usar melhor a internet, contornando as burrices dos algoritmos de programas de busca e evitando certas fontes manjadas ou superficiais.
Se eu pudesse voltar no tempo diria ao teimoso que escrevia a minha tese entre aulas de inglês com as quais pagava as contas de uma família recém constituída que ele deveria largar aquilo imediatamente e procurar algum outro projeto para ganhar a vida no futuro. Ele, é claro, me ignoraria solenemente e continuaria escrevendo a tese do mesmo jeito! Tenho hoje clara a noção de que ser um escritor comprometido com literatura no século XXI é um péssimo negócio. E ser um pesquisador de ciências humanas no século XXI é pior ainda. Sou, aos olhos do mundo cada vez mais comandado pela lógica da administração de empresas e pelo apelo fácil da propaganda de consumo, um lixo “irreciclável”. Esse mundo contemporâneo ignora, quando não hostiliza abertamente a produção e a disseminação de qualquer conhecimento mais profundo e complexo, gestado e consolidado na leitura de centenas de páginas. Considerando todos os anos de grande esforço que dediquei a me preparar para estar onde estou, e considerando a complexidade dos assuntos com os quais eu lido (além das dores de cabeça que eu ganho com isso), em face da qualidade de vida que eu tenho hoje, não valeu a pena. Praticamente qualquer pessoa que tenha estudado quatro ou cinco anos na universidade e trabalha oito horas por dia cinco vezes por semana num escritório qualquer ganha o mesmo que eu, que estudei mais de dez anos e que trabalho mais horas e mais dias. Digo isso sem amargura: se eu vendesse sanduíches ou carimbasse atestados para poder pagar as minhas contas acho que continuaria a ler e a escrever, mesmo que fosse só para mim, mesmo que ninguém quisesse ler nada do que escrevi. Por causa da leitura e da escrita a minha vida interior é rica e tem sentido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu antes de tudo quero terminar o livro que estou escrevendo já há algum tempo sobre a ideia de América Latina. Depois quero escrever um livro sobre Machado de Assis a partir, primordialmente, dos seus contos. Depois um livro sobre o cinema contemporâneo na Argentina, no Brasil e no México. Depois um livro comparando poetas contemporâneos brasileiros, mexicanos e estadunidenses. E ainda quero escrever mais sobre Guimarães Rosa, Juan Rulfo e William Faulkner. Além disso tenho um livro de ficção (algo híbrido, entre um livro de contos e um romance) que quero terminar logo. Não sei nem se vou publicá-lo porque essas edições quase independentes que ninguém lê me parecem uma perda de tempo. Mas quem sabe? Tenho projetos para essa vida inteira e muito mais!