Paulo Cesar Endo é professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral começo na escrivaninha após um café rápido.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando desperto é o melhor momento porque ainda estou meio aturdido por meus sonhos. Não procuro restaurá-los quando acordo, claro, mas me imantam e, inconscientemente orientam minha escrita criativa. Então prefiro escrever e criar logo ao despertar. Outras escritas, mais acadêmicas ou burocráticas, podem ficar para outros momentos do dia. Gosto das madrugadas, mas as manhãs também são aprazíveis.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Varia. Tudo depende dos afazeres, encomendas e atividades que temos que responder e que necessitam de um lugar preciso na rotina. Mas, na verdade, prefiro trabalhar por empreitada. Por exemplo, prefiro passar uma temporada lendo e escrevendo seguidamente durante dias, semanas ou meses. É o que me alegra. Infelizmente isso só é possível em situações excepcionais.
Por vezes temos uma encomenda para um artigo, um capítulo ou mesmo um livro e meu único norte é a data de entrega. Gosto da palavra deadline, porque ela indica o momento em que se inicia – tem de se iniciar – a emancipação do que escrevemos e criamos que, de certo modo, para nós, morrerá ao ser publicado. Não mais nos pertencerá. Algo parecido com o que Guimarães Rosa dizia de libertar o texto ao publicá-lo. Tenho uma fantasia secreta que é a de dormir numa biblioteca. Uma vez vi alguém que tinha um colchão no chão de sua biblioteca, não me lembro quem, é uma imagem antiga que jamais esqueci. Lia e trabalhava até cansar, acordava e voltava ao livro e aos escritos. Gosto dessa imagem. Ela sempre me pareceu aconchegante, extraordinariamente rica e repleta de possibilidades. O sono, o sonho, a escrita e as palavras ali, lado a lado. É uma bela imagem! Ela é compatível com o que Borges dizia: “Não conheço o céu, mas deve ser parecido com uma biblioteca.” A letra, o livro e o onirismo são vértices de um mesmo processo. Curiosamente eles se encontram nos escuros dos corredores das bibliotecas. Sim, é preciso que seja algo escuro para acalentar sonos e sonhos e a obscuridade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em geral é o contrário. Faço uma plano geral de ideias, conceitos, perguntas e vontades que já tenho e vou desenhando em letras um primeiro esboço. Depois tudo tende a se enriquecer com mais leituras, lembranças e experiências anteriores. Daí o texto passa para uma segunda fase, mais argumentativa, digamos. Momento alteritário em que outros autores atravessam o texto como dialogantes produzindo o espírito da conversa, do colóquio e da pesquisa. Há um terceiro momento em que suturo o texto. Quero dizer, reviso e vou calando o texto naquelas partes ainda falantes. Faço isso com notas, observações, pequenas alterações finais e um sentido mais ou menos conclusivo que o texto tem de assumir. É um momento interessante para mim, em que posso testemunhar um texto outrora tão falante, conversador e verborrágico ir se calando lentamente, ficando quieto até chegar a uma espécie de silêncio das palavras que me agrada. O momento perfeito é quando nos calamos juntos, eu e o texto. Se um ainda está verborrágico ou inquieto, o término não é calmo e nem consensual.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei bem. Hoje tudo faz parte de um mesmo universo. O que escrevi, o que estou escrevendo e o que desejo escrever. São palavras possíveis lançadas que perfazem um sentido retilíneo, curvilíneo ou aleatório, mas onde de algum modo me reconheço e me desconheço. Ler o que escrevi por vezes é uma experiência de reconhecimento e, outras vezes, de total desconhecimento. Como se já não habitássemos aquelas palavras um dia escritas por nós. Não tenho medo de não corresponder às expectativas, incluindo as minhas. Acho que escrever é um exercício de abandono disso. Terminar um texto não é, para mim, uma experiência especular, mas uma experiência de abandono de mim, das coisas e do mundo. Uma espécie de desapego radical quando termino. Paradoxalmente, esse abandono do mundo na escrita é o que permite que algo de nós permaneça para sempre no mundo: as inapagáveis palavras impressas. Antes disso, antes de me despedir, claro, leio e releio muitas vezes meus escritos, mas daí já num clima de separação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende do texto. Algumas vezes. Alguns textos volto a ler depois de publicá-los, não para mexer neles depois de prontos, mas para ver se me reconheço ainda neles ou se isso já se perdeu; se eu já fui embora do texto que escrevi. Não costumo mostrar o texto a outras pessoas e isso se deve, exclusivamente, à impossibilidade temporal ou espacial. Nem sempre estamos próximos das pessoas que gostaríamos que lessem e comentassem nosso textos, ou com quem gostaríamos de trabalhar juntos numa produção a quatro mãos, por exemplo. Sempre há problemas em compatibilizarmos agendas e tal. Mas acho essa possibilidade sempre muito promissora e me anima realizá-la. A única oportunidade que tive foi com a pequena biografia de Freud que Edson Sousa e eu escrevemos há alguns anos atrás, publicada em edição de bolso pela L&PM. Foi um imenso prazer e, certamente, vamos repetir a dose proximamente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador para uma primeira versão. Depois gosto de imprimir e fazer anotações, complementações e rabiscos à caneta. Finalmente volto ao computador para dar a forma final. Sempre tenho medo de perder tudo. Não me sinto seguro com as coisas guardadas em arquivos digitais, por isso gosto muito da forma livro e da imensidão dos corredores e das estantes físicas das bibliotecas. Há nelas, em todas elas, uma sensação de perenidade que me fascina. Digitalização é também sinônimo de banalização. É mais ou menos o que aconteceu com as fotos digitalizadas. A imensa maioria delas morrerão nos arquivos dos computadores, ou nas HDs sucateadas, sem jamais serem compartilhadas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que minha principal fonte, no que diz respeito ao estilo de escrita, é a literatura. Isso desde adolescente. Aprendi a escrever, estilisticamente falando, com os escritores que li e admiro em poesia e prosa. Depois vieram as exigências da escrita acadêmica. Mas, no meu caso, creio que pouca coisa mudou ou, ao menos, se houve mudança ela se incorporou ao que eu já sabia e gostava de escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Como disse, sinto que pouca coisa mudou. Algum apuro em relação às articulações entre estilo de escrita e erudição; ou alguma atenção aos interstícios entre grafia e sonoridade; ou ainda ousadias no exercício entre dizer, desdizer, mostrar e ocultar. Essas mágicas incríveis que o ato de escrever permite. Quanto à minha tese de doutorado, ela acabou sendo agraciada com prêmio Jabuti em 2006. Depois disso foi mais lida e ampliou seu público. Então acho que o que eu diria para mim sobre a tese seria: Bom trabalho garoto! Bola prá frente!
Com meus primeiro escritos-os da adolescência- se passa algo diferente. Há escritos reflexivos, pequenos poemas, pequenos ensaios. Eles me parecem um apanhado de intuições. Algumas boas até. Mas que ficaram no meio do caminho, carentes da energia que as revelariam como texto. São palavras que se chocam contra ou a favor de boas intuições, ainda carentes de boas ideias e soçobraram à deriva, no mar dos conteúdos sem forma. Nessa época ainda não conhecia os escritos do escritor fabuloso que foi Sigmund Freud. Reconhecido por Thomas Mann como um dos maiores escritores da língua alemã e ganhador do prêmio Goethe de literatura, uma das mais importantes premiações do mundo literário. Essa escrita que nunca perde seu rumo, sua inspiração e que jamais se atrapalha diante das dúvidas, das hesitações e dos obstáculos e sofrências vividas por seu autor. Ter lido Freud na adolescência, creio, teria me ajudado a encontrar alguma forma plausível para tanto conteúdo disforme.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho ambições precisas quanto a isso. Escreverei o que puder e o que quiser, mas acho que ainda não escrevi a obra que tenho secretamente idealizado. Penso numa trilogia talvez. Ela inicia com minha tese de doutorado, terá sua segunda parte com a tese de livre-docência e se esgotará com um modelo parecido com o doutoramento. Não sob a forma de coletânea, mas vertebrada por um tese que atravessaria todo os 3 livros. Pode ser que isso conclua uma parte do que penso em escrever durante esses parcos anos que constituem nossas vidas. Além, é claro, por dever de ofício, de continuar produzindo todos os artigos e capítulos que expressam preocupações políticas, metapsicológicas e de pesquisa. Escrevo também, vez ou outra, poemas. São muito raros. Talvez 3 ou 4 por ano. É uma escrita exigente e demasiado profunda para mim. Mas esses escritos nunca foram publicados. De qualquer modo adoro tê-los num arquivo secreto e saber que estão lá, como uma prece ou oração, que vez ou outra visito. São muito preciosos para mim, mas provavelmente estão predestinados ao segredo.