Paula Gomes é escritora, doutora em cinema pela Unicamp, autora de “Ninguém morre sem ser anunciado”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa aos trancos e barrancos. É preciso certo esforço, uma postura ativa de minha parte, para ser alguém minimamente funcional e agradável pela manhã. Já tentei adotar melhores hábitos matinais, como correr e meditar, mas acabei abandonando porque, por mais que estivesse sentindo algum benefício de humor e disposição, agravou minha dificuldade para dormir. Deitava na cama nervosa por ter me comprometido com atividades logo cedo. Percebi que quando a gente atinge certa idade, a saúde mental vira um cobertor curto: você tenta arrumar de um lado e estraga do outro.
Acabei achando mais fácil e simples deixar a manhã correr livremente, como se ela fosse uma onça faminta e eu uma observadora externa empoleirada em cima de uma árvore, torcendo para ela não me ver. Tomo meu café e vou enrolando até ele fazer efeito (20 minutos, é o que dizem), passando o olho pelo email, umas notícias, sem grandes metas de produtividade.
Pensando na minha produção literária de 2019, 2020, lembro de ter escrito linhas aproveitáveis lá pelas às 10, 11 horas. Nunca antes disso. E, mesmo que tivesse escrito alguma coisa antes das 10, acho que não me comprometeria muito com essas primeiras linhas. De manhã tem muito dia pela frente, muita água pra rolar, muita frase na fila.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A inspiração para escrever costuma chegar só a partir das cinco da tarde. Não dura muito, também. Vai até umas oito da noite, no máximo. Como eu sei que logo acaba, procuro escrever o máximo que consigo, da forma que for vindo (geralmente bem caótica, com muitos erros de digitação e sem nenhuma pontuação). Não volto pra corrigir nada. Não quero perder tempo. O fluxo de pensamentos vem muito rápido, em uma velocidade maior do que a que eu consigo digitar. Minhas mãos estão sempre atrasadas, tentando correr atrás do pensamento. Quando essa dinâmica começa a se inverter, e são as ideias que vão ficando atrás das mãos — em um trotezinho que não se sabe mais se está correndo ou andando, com a mão na cintura, o rosto vermelho —, paro de escrever. Volto tudo e começo a corrigir o texto, adicionando pontuação, cortando, reescrevendo. Quando fico cansada até pra fazer esse trabalho mais braçal, paro de vez. Levanto e vou fazer outra coisa.
(Noto que estou respondendo essa entrevista às 18:05, fato que pode ser coincidência, mas também pode corroborar tudo que disse aí em cima.)
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu entendo e não entendo essa questão da meta diária. Acho que tem esse lado positivo, de emular uma instância externa (algo como um chefe), para te mobilizar a fazer as coisas. Por outro lado, tem dias que a escrita não flui e toda resistência em relação a isso é inútil. Você pode até escrever, no sentido de colocar uma palavra depois da outra até atingir sua “meta diária”, seja lá qual for ela, mas se no outro dia você olhar para aquilo e sentir que nada se aproveita, do que adiantou, além de deixar a porta aberta e um cafezinho na mesa para a síndrome do impostor entrar, se sentar no sofá, reparar bem a bagunça?
Claro que é preciso tentar escrever todos os dias, a inspiração, como um bom carro velho, pega no tranco às vezes. Mas tem dias que não tem cristo que faça pegar. Paciência. Talvez amanhã. Por isso, acho mais razoável colocar metas semanais, mensais, bimestrais, qualquer intervalo de tempo maior do que um dia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A relação pesquisa – escrita pode ser, certamente conturbada. Eu aplico o mesmo método que uso na pesquisa acadêmica: pesquiso um pouco, escrevo um pouco. Muito tempo de pesquisa sufoca, pouca pesquisa gera angústia. Vou tentando equilibrar esses momentos.
A pesquisa, pra mim, é um cercadinho que abriga e contém a história, evitando que ela saía desabalada e se perca por aí. Quando eu começo a escrever, faço um cercadinho simples e acho que está bom. Depois de um tempo, bato o olho e vejo que está meio precário, torto, capenga. Paro de escrever e vou lá arrumar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lendo a sua pergunta, pensei: “Caramba, é muita coisa pra lidar. Como eu lido com isso? Eu lido com isso? Como eu fui me meter nessa, uma criança tão alegre, com tanto potencial…” Vou tentar responder em tópicos, para dar um ar de que eu sei o que estou fazendo:
Procrastinação: me acalenta pensar que é um mal de nosso tempo. Que não há absolutamente nada a ser feito quanto a isso. É maior do que eu. O problema está na estrutura, grandes corporações, empresas de tecnologia, neoliberalismo. O mundo está acabando, já viu esse vídeo aqui do macaco que adotou dois patinhos filhotes?
Medo de não corresponder às expectativas: “expectativa” é vesícula, o apêndice, os quatro sisos. Em algum momento da história teve lá sua funcionalidade e o corpo, nostálgico, apegado, não joga fora, mesmo sabendo que um dia ela vai se voltar contra ele e matá-lo. Eu não lido muito bem com coisas que querem me matar. Sofro com as expectativas dos outros sobre mim; com as minhas expectativas sobre mim; e com as expectativas que eu acho que os outros tem sobre mim. Me disseram que imaginar os outros pelados ajuda. Tentei várias vezes, e continuo tentando. Pra isso não funciona.
Ansiedade de trabalhar em projetos longos: eu me acostumei com esse tipo de trabalho que não acaba nunca depois da experiência com o mestrado e com o doutorado. A dissertação demorou 2 anos, a tese 4 anos e eu emendei uma na outra, então foram 6 anos para produzir só dois textos. Foram 6 anos vivendo a gostosa sensação de estar empacada no mesmo lugar, enquanto todos meus familiares e amigos ficavam indo de lá pra cá, fazendo coisas, conquistando espaços. Em muitos dias minha principal conquista foi mudar um parágrafo de lugar. Com a literatura é mais fácil, quando estou um pouco cansada com o peso do projeto longo, escrevo um poeminha, uma crônica, e já publico na minha página do medium. No mesmo dia já tem alguns aplausos no texto, sublinhados, um comentário. É a microdose de dopamina que preciso pra continuar com o projeto longo no dia seguinte.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei dizer ao certo. Mais do que duas e menos do que dez. Algo nesse intervalo. Eu vou revisando até algo estalar dentro de mim, um “Aleluia, irmã! Tchau para nunca mais”. Mas não é bem um estalo, é mais um sentimento que vai crescendo gradativamente dentro de mim, quando começo a ficar em dúvida se as alterações que estou fazendo estão melhorando ou estragando o texto. No começo, não há dúvidas. Você sente o texto cada vez melhor. Mas quando essa certeza vai se esvaindo, sinto que está chegando a hora de parar.
Eu costumo mostrar os textos para uma ou duas pessoas antes de publicar, sim. Deixo em aberto pra pessoa falar qualquer coisa, e depois faço umas perguntas mais especificas: se determinada parte está dando pra entender, etc. Eu gosto muito de fazer isso, ajuda o texto a amadurecer. Só não faço com uma frequência maior porque fico com a impressão de que estou incomodando os amigos, amolando. Imagino eles pensando: “Lá vem ela, com mais um texto. E não basta ler e dizer que gostei, ela quer eu comente!”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço tudo no computador. A escrita já é ofício laborioso, não me vejo criando mais uma dificuldade, mais um processo. Até porque, das vezes que tentei, não me senti mais criativa, nem achei que escrevi coisas diferentes das que escreveria se estivesse digitando. Mas pode ser que eu pense assim pela experiência (trauma) com os textos longos da escrita acadêmica. É preciso escrever muito e ficar constantemente mexendo no texto, estrutura, parágrafos, colando citações. É impossível escrever um texto acadêmico à mão, ou em máquina de escrever, ou sei lá onde, pra depois passar para o computador. Algo totalmente diferente é um poema, que acho que se beneficia muito desse processo mais artesanal, manufaturado. Acho que, no fim do dia, sou mais pesquisadora do que poeta.
Além do notebook, uso o celular para anotar ideias quando não estou em casa, ou perto do computador. Criei um grupo no whatsapp que só tem eu. Vou jogando as frases ali e depois passo para o computador. Mas, apesar de tentar “simplificar” as coisas, deixando tudo no digital, eu encontro meios de me auto-atrapalhar: vou criando milhões de arquivos sem título no word e no google docs, com ideias, frases soltas, textos inacabados. Tentativas de organização vem e vão, as pilhas de arquivos ficam.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Algumas ideias vêm pelo próprio ato de escrever mesmo. Sento e começo a digitar, sem ter muita ideia do que vou escrever, e as frases vão saindo. Mas o que mais acontece é surgir uma frase na minha cabeça, sem muita hora nem cerimônia. Curta, pronta, esquisita. Do tipo: “Cheiro forte de cloro, que é pra matar tudo mesmo, acho que foi o que ela disse.”. Parto dessa linha e vou desenrolando um conto, uma crônica, um capítulo.
Como eu disse, essas frases não respeitam nada nem ninguém. Surgem até quando o texto já está pronto e publicado. Acontece muito de eu publicar uma crônica no medium, fechar o computador e ir tomar banho. No meio do banho surge uma frase solta, que se encaixaria perfeitamente entre duas outras frases do texto, que, importante lembrar, já foi publicado. Minha cabeça está criando coisas toda hora, à minha revelia. A maioria não é utilizável, mas ela fica lá, criando, como uma máquina desregulada que você fica apertando o botão do power para ela parar e nada acontece.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No começo geralmente nossa escrita é muito derivativa. Cópias, ou, se quisermos ser mais carinhosos com nós mesmos, homenagens a escritores que gostamos. Os textos não dialogam tanto com a realidade, muito preocupados em alimentar essa relação com os outros textos. É difícil explicar, mas quando leio textos antigos meus, eles parecem não dizer nada da realidade (nenhuma das realidades possíveis), só dos livros que li, dos autores e estilos que gostava. Os textos de hoje parecem ter mais “o pé no chão”. Acho que eu diria isso a mim mesma: pare de pegar emprestado o olhar de outros escritores. Você tem o seu, ele existe, está bem ali, ó, naquele canto, esmagado embaixo de um monte de livros.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projeto que gostaria de fazer: Um livro sobre um reality show que não tem data pra acabar. Vai indo até o penúltimo participante desistir. Ou morrer.
Livro que gostaria de ler: Eu comprei em um sebo, faz muitos anos, um livro do Borges, que chama “Prólogos”. É um compilado de prólogos que o Borges escreveu para livros de outros autores. O livro é ótimo, mas quando comprei, a expectativa era de que fosse um livro só de prólogos para livros que não existiam. Nunca vou perdoar Borges por não ter escrito o livro que eu achei que ele tinha escrito.