Paula Carvalho é editora-assistente da revista Quatro Cinco Um, doutoranda em história na Universidade Federal Fluminense.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de trabalhar na revista Quatro Cinco Um, trabalhei em casa por muito tempo – voltei agora ao home office por causa da quarentena –, então sempre foi muito importante para mim criar uma rotina, ainda que ela sempre mude um pouco. Há dias em que acordo mais cedo para fazer exercícios físicos, outros dias tenho aulas de árabe à tarde. Trabalhando em casa, para mim é essencial acordar e já colocar outra roupa que não o pijama para separar o “horário da cama” com o “início do batente”; atualmente, tomar banho pela manhã tem sido um bom marcador dessa divisão, uma vez que tinha o hábito de tomar banho no fim do dia. Daí como meu café da manhã – parei de tomar café, em que era viciada, hoje tomo chá preto –, para depois me sentar à frente do computador. É bom dizer que eu faço três refeições em horários próximos quase todos os dias, não pulo refeições, já fiz isso e, além de não ser saudável, não me tornar mais eficiente ou produtiva, pelo contrário. Sempre coloco um copo de água do lado do computador para beber ao longo do dia.
Meu dia precisa ser muito bem organizado porque tem muita coisa para fazer. E trabalhando em casa de novo o maior desafio é criar um espaço para o trabalho na revista e o trabalho da tese. Apesar de ser bastante disciplinada e organizada, estou tendo bastante dificuldades em criar espaços para cada uma dessas coisas, provavelmente pela forma como eu gosto de trabalhar. Odeio cumprir horários fixos, “bater ponto”, essas coisas, gosto de fazer meus próprios horários. Quando ia à redação da revista, ficava mais fácil separar os períodos para cada atividade, mas agora elas se misturaram muito e o trabalho da revista acaba tomando muito do meu tempo. Ou então, eu acabo fazendo várias coisas ao mesmo tempo, dividindo minha atenção: “ah agora que está tranquilo na revista, vou escrever uma página da tese”, por exemplo. Não tem dado muito certo, porque fico muito desgastada e sinto que não prestei atenção em nada. Por isso, passei a adotar um horário fixo para o trabalho, para ver se consigo organizar melhor o meu dia e não me sentir tão cansada. Mesmo assim, estou conseguindo escrever para a minha tese, mas não no ritmo de que gostaria.
Sinto falta também dos respiros mentais que os deslocamentos me proporcionavam: casa-trabalho; trabalho-casa; trabalho-aula de árabe; aula de árabe-casa. É cansativo fazer uma hora e meia de árabe e, logo em seguida, editar um texto para a revista, por exemplo. Antes da quarentena, depois da aula de árabe, eu só voltaria a trabalhar em algum texto no dia seguinte.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com certeza, as manhãs são os piores horários que eu sinto para escrever. Atualmente, só flui mesmo depois das 11 horas, e, quando flui, flui, tenho até dificuldade em parar, mas paro para manter horários mais diurnos e poupar meu corpo. Tenho uma facilidade em trocar a noite pelo dia quando estou escrevendo. De noite as coisas ficam mais calmas e não tem tanta agitação em volta, com menos interrupções (mensagens, ligações) e menos barulho (fui ficando muito sensível a barulhos). Minha dissertação foi praticamente escrita comigo indo dormir umas 3h da manhã. Eu recebia bolsa, trabalhava em casa e podia seguir esses horários malucos. Também assistia aulas na faculdade, tinha compromissos acadêmicos, então não me sentia isolada. Hoje já não poderia – nem quero – seguir esse ritmo.
Sobre me preparar para a escrita, depende do que preciso escrever. Eu digo que meu trabalho é escrever, mas não me considero escritora. Minha primeira formação foi em jornalismo e você é condicionado a escrever não importa as circunstâncias. Trabalhei, por exemplo, na Folha Online, da Folha de S. Paulo. Era tudo muito rápido e dinâmico, a pressão enorme, não tinha essa de ter trava na hora de escrever. Se o chefe falava para escrever uma matéria sobre X, você tinha que entregar alguma coisa, senão era seu emprego que entrava em risco. Com isso, fui condicionada a escrever, por exemplo, cinco parágrafos em dez minutos em uma redação barulhenta, com uma TV do lado, gente andando para cima e para baixo. Você aprende também que a escrita é feita de padrões, modelos. A partir do momento que você consegue desconstruir um texto, entender o que você precisa dizer, a escrita flui melhor. E esse modelo de matéria de internet que eu publicava não exigia tanto de mim, o que significa que eu não precisava criar grandes raciocínios ou me mostrar muito. O mesmo não funciona para resenhas de livros e textos mais complexos ou mais longos; daí, gosto de ter tempo para “ruminar pensamentos”. Agora, se preciso escrever algum texto novo, em um formato no qual não estou familiarizada, gosto especialmente de procurar textos nos formatos pedidos, ler uns dois ou três para entender qual é a estrutura. Com o padrão da estrutura claro, tudo fica mais fácil.
Já para a pesquisa acadêmica não tenho como começar a escrever sem ter “matéria-prima”. Gosto de ler tudo que for possível antes e fazer fichamentos que se assemelham a cópias do livro, em que faço marcações por tema, faço grifos, comentários em várias cores diferentes. É um processo chato e que demora. Mas facilita muito na hora de escrever mesmo. Em meio a esse processo, escrevo em algum papel, em tópicos, o que precisa ter nos capítulos, por exemplo. Estrutura, nesse ponto, é tudo para mim. Não consigo começar nada sem ter essa estrutura em mente, não necessariamente eu sei onde vou parar, mas tem um caminho que posso seguir. E eu fico perdida até descobrir qual o nome do capítulo ou do subcapítulo, e a epígrafe. Até sair o nome certo, fico escrevendo que nem barata tonta. Aquele branco lá em cima da página me dá uma angústia, é como se estivesse sem norte. O nome certo e a epígrafe certa são os meus guias, dão ritmo à história. E eu gosto de “contar uma história”, mesmo na pesquisa acadêmica. Não sei escrever de outro modo. E uma história bem contada precisa de começo, meio e fim, de ritmo, de uma linguagem clara, de uma cadência própria. Já me disseram que meu mestrado tem um sabor literário, que até se esquece que é uma pesquisa acadêmica, apesar de ser um texto denso. Vejo isso como um elogio.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente, estou tentando escrever um pouco a cada dia, por causa de trabalhos fora da pesquisa, mas eu não gosto. Gosto de escrever tudo de uma vez. Tenho uma relação não tão saudável com a escrita nesse sentido. É fácil trocar o dia pela noite, esqueço que preciso comer, deixo de lado outros compromissos, dou uma sumida, durmo mal, só escrever importa.
Tento criar metas no momento em que estou escrevendo, mas, em geral, elas são muito ambiciosas e não consigo terminar tudo no dia que gostaria. Eu me cobro muito, então também estou aprendendo que tudo bem não atingir as metas autoimpostas por mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Estou tentando melhorar minha relação com a escrita acadêmica (a jornalística acaba logo, em três horas, tendo lido o necessário e estruturado o texto na cabeça, ainda que goste de “ruminar” por uns dias antes de escrever, fazendo anotações e tudo mais). Foi uma das coisas que prometi a mim mesma no doutorado. Falo que eu escrevo “de vomitada”. Tendo reunido todo o material necessário para começar a escrever, tendo montado uma pré-estrutura e depois de passar um ou dois angustiada sem saber direito para que direção ir, descubro os nomes que devem ser dados e aí começa o trabalho de parto. A escrita flui, às vezes jorra, ideias esparsas anotadas tanto em pedaços de papel avulso quanto no próprio computador começam a se concatenar. Faço no próprio arquivo em que estou escrevendo uma colagem das citações e fatos que precisam estar no texto; daí, vou apagando à medida que vou escrevendo. Nisso, outras ideias vão surgindo ou vou lembrando de outras coisas e continuo anotando no mesmo arquivo. Eu costumo escrever já na ordem que vai ficar no final, não volto muito, inclusive já vou colocando as notas de rodapé junto com a escrita do corpo do texto. Nesse ponto, meu processo é bem linear.
E eu escrevo rápido, não necessariamente porque eu queira, mas porque passo meio mal se fico segurando muito o fluxo. Talvez tenha medo de que uma hora o fluxo vá acabar sem antes de eu ter terminado, então corro para aproveitar que ele ainda está ali. Parece que a escrita é que me controla, e não eu a ela. Meu projeto de mestrado escrevi em uma semana. Cada capítulo do mestrado foi escrito, em média, duas semanas. Não foi exatamente legal, mas entreguei o trabalho e fiquei satisfeita com o resultado final. Inclusive, meu corpo não aguenta, tenho tendinite e bursite nos dois ombros, então se fico muito tempo sem me exercitar ou parada na mesma posição escrevendo não só os ombros, mas também o pescoço e as costas ficam doloridos. Estou tentando criar uma relação mais saudável, mas também o modo de escrita pinga-pinga um pouco por dia não me satisfaz ainda. Estou tentando a chegar a um meio-termo.
Em geral, escolho uma música ou álbum para tocar, tanto para abafar o som ao redor quanto para me concentrar em uma espécie de transe. Em geral, coloco a mesma música ou álbum no repeat. Não sei direito como acontece, às vezes é num modo randômico no YouTube, outras ouvindo meu próprio arquivo de músicas. Por vezes, alguma chama a minha atenção naquele momento e a escolho para tocar em looping. Teve um capítulo inteiro do meu mestrado que escrevi sob o transe de “Mandinka”, da Sinead O’Connor; outros trabalhos escrevi sob a influência da trilha sonora do filme O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, criada pelo Yann Tiersen, ou do álbum Songs of Love and Hate, do Leonard Cohen. O primeiro capítulo do doutorado está sendo escrito ao som de cantos devocionais para Krishna, a divindade hindu (Sree Krishna Bhajangs). Na redação da revista, a trilha sonora dos filmes dos Guardiões da Galáxia sempre ajudam a me concentrar.
Aliás, não trabalho bem com orientador ou editor em cima de mim, me cobrando. Eu já me cobro muito e sou bastante disciplinada para isso, é difícil eu furar prazos. Preciso ser deixada livre para poder seguir o meu processo. Se tem alguém em cima, sinto que a pessoa não confia em mim e isso atrapalha meu processo. A sorte é que sempre tive orientadores que me deram espaço para produzir do meu jeito, mas também estavam presentes sempre que precisei, me enviando notas das suas leituras e ajudando a melhorar o trabalho final.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Depois que defendi o mestrado, passei a trabalhar com frilas em casa, então vi que precisava criar uma rotina mais saudável, de trabalho mesmo, principalmente para dar conta do doutorado, que eu comparo a uma maratona em relação ao mestrado, que vejo como uma prova de 200 metros rasos. Não dá para queimar todo o fôlego na largada no doutorado. Eu me vejo como uma atleta treinando para essas provas e preciso estar em forma para dar conta de cruzar a faixa de chegada.
Por vários fatores, as crises que não tive no mestrado estou tendo no doutorado. Tive um problema pessoal no primeiro semestre do doutorado (meu pai teve um problema de saúde grave), até cogitei em trancar, mas acabei dando um jeito de continuar e assisti a uma disciplina em Niterói, onde fica a UFF; a outra conseguir assistir na USP, que fica em São Paulo, onde eu moro. Com isso, tive dificuldade em retornar ao ritmo que tive no mestrado. Passei o primeiro ano dedicada a assistir apenas duas disciplinas, que formam a carga horária do doutorado da UFF. Demorei um ano e meio mais ou menos para voltar a me apaixonar pela minha pesquisa, que eu fazia de um modo arrastado. Depois que eu terminei de ler o romance Bússola, do Mathias Énard (que É o tema da minha pesquisa) é que voltei a me apaixonar por ela.
Também senti muita solidão, tanto física quanto intelectual. Estava longe fisicamente da UFF, não tinha mais aulas para assistir, outras atividades acadêmicas estavam meio paradas, usava o trabalho como desculpa para fugir da pesquisa. Também é muito difícil encontrar pessoas estudando temas relacionados aos meus na área de história (viajantes europeus disfarçados de muçulmanos em terras islâmicas no século XIX, ou até mesmo sobre colonialismo desse século em espaços islamizados). Sinto muita falta de debater as questões que movem a minha pesquisa. Nos últimos anos tem sido especialmente difícil encontrar eventos, mesas ou debates com que eu consiga dialogar e debater de modo sério as questões que movem a minha pesquisa. Em geral, as pessoas ou me olham meio maravilhadas (“que lindo o que você estuda!) ou com um ponto de interrogação (“mas o que exatamente você estuda?”). Inclusive, sei que tive muita sorte em conseguir encontrar orientadores capazes e abertos a orientar um tema desses. Vários colegas meus encontram dificuldade em encontrar orientadores por estudarem países asiáticos. Essa falta de diálogo até me fez questionar a importância e a utilidade – essa palavra tão ingrata – da minha pesquisa (agora essa crise passou, inclusive deixando claras a importância e atualidade do tema na Introdução da tese, que ainda estou escrevendo). Nesse ponto, o trabalho na revista me deu uma revigorada, pois eu podia sair de casa e ver gente, pensar em outras coisas, arejar a cabeça. Às vezes, a melhor coisa para a pesquisa é você se afastar um pouco dela para poder se apaixonar de novo por ela.
O que ainda me assombra são as expectativas, tanto minhas quanto dos outros. Eu estava particularmente inspirada quando escrevi meu mestrado (falo isso sem falsa modéstia, foi um trabalho árduo, difícil, bastante pessoal apesar de não parecer e tem muito suor e seriedade nele e fico muito orgulhosa de tê-lo produzido). Às vezes o leio até para me inspirar, mas por outro lado, relê-lo me causa certo pânico. Tenho muito receio de o doutorado não ficar à altura ou ficar melhor que o mestrado. Já tive que cortar a pesquisa do doutorado pela metade (eu ia estudar dois viajantes disfarçados, mas como estou trabalhando junto com a pesquisa, admiti que não daria conta de fazer uma coisa boa estudando Richard Francis Burton e Isabelle Eberhardt, foi uma escolha difícil, mas “cortei” a Eberhardt do doutorado), o que me entristeceu e me fez sentir um certo “fracasso”. Hoje acho que foi a melhor escolha e não me arrependo. Para mim, o segredo de lidar com essa ansiedade de projetos longos é me concentrar nas pequenas coisas cotidianas que podem ser feitas. Por exemplo, vou precisar me qualificar até o fim do ano. O que eu preciso fazer, então, para entregar tudo no prazo? Preciso entregar dois capítulos, então vou me concentrar em escrever o primeiro capítulo antes e, depois, o segundo. Preciso ler isso e aquilo. Hoje vou escrever isso e aquilo. No final, é você com você mesmo sentado na frente da tela do computador preenchendo aquela página em branco. Não tem como fugir disso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tenho uma relação contraditória com isso. Odeio reler os meus textos. Em geral, é uma experiência dolorosa voltar para eles. Sempre acho defeitos (por exemplo, não reli essas respostas). Ao mesmo tempo, existem alguns textos meus que eu releio quando quero me inspirar, no sentido de mostrar para mim mesma que sou capaz de escrever coisas bonitas com estofo acadêmico, que o resultado final vai ser bom. Algumas partes do meu mestrado funcionam assim para mim. E um ou outro artigo acadêmico que publiquei que vieram de dois trabalhos para a graduação de história.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Rascunho a estrutura sempre em um papel, ou no celular caso não tenha papel no momento. Mas na hora de escrever, escrever mesmo, é no computador. Porque posso apagar o que achei ruim, posso mudar parágrafos e frases de lugar com mais facilidade. Fica mais “limpo”. Meus rascunhos no papel ficam todos rabiscados, e daí meu pensamento também fica meio enevoado. Preciso de clareza, limpeza na hora de trabalhar (inclusive, a casa precisa estar limpa antes de começar a escrever, pois só volto a limpá-la depois de terminada a escrita).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Pergunta difícil! Adoraria traçar o percurso das ideias! Mas tem aquele clichê: quando você menos espera, uma ideia surge. É comum que uma ideia boa surja para mim enquanto arrumo a cama, ou estou indo até o metrô, ou enquanto estou cozinhando ou tomando banho. Ou no meio do sono. Daí acordo e tento anotar a ideia. Quando a cabeça “descansa” vem alguns insights muito bons. Faz parte do processo de ruminar pensamentos. Mas algumas ideias também podem vir enquanto escrevo. Ou então quando estou lendo um livro nada a ver, ou vendo um filme. Trabalho em uma revista literária, então leio muito. É incrível como ler um romance dá uma arejada na cabeça depois de ler tantos livros de teoria. Além de ler muitos livros sobre vários assuntos (desde feminismos a distopias juvenis até tarô), vejo muitas séries, filmes, ouço podcasts, música, tento ver peças de teatro, conversar com os amigos sempre traz boas ideias. Às vezes eles me mandam coisas inusitadas que acabo usando na pesquisa. Muitas coisas surgem das viagens que eu faço, aprendo muito com elas. O importante é manter a cabeça aberta. Uso romances de ficção e até séries de TV, quadrinhos e campanhas virtuais em algum ponto do meu doutorado. Não necessariamente como fontes, mas para discutir temas maiores e mostrar sua atualidade. A sua questão não está restrita ao seu objeto de pesquisa, ela pode ser encontrada nos lugares mais inusitados.
Há outra coisa que eu faço também que eu não vejo mais como uma distração, eu aceitei. Eu funciono a base de obsessões. Por vezes, do nada, fico obcecada com alguma obra de arte, com algum escritor, com alguma obra, música, série, personagem fictício, carta de tarô… Me dei conta de que não adianta eu lutar contra isso. Eu simplesmente preciso aceitar que é sobre essa outra coisa que quero pesquisar no momento, então paro o que estou fazendo e mergulho nessa obsessão. Às vezes ela consegue conviver com outras atividades, outras vezes só fico nisso. Entre algumas delas esteve a obra Étant donnés: 1. La chute d’eau, 2. Le gaz d’éclairage, de Marcel Duchamps, a relação entre os pintores Edgard Degas e Mary Cassatt, o momento de criação de Frankenstein de Mary Shelley, entre tantas outras. Isso, no final, só estimula a minha curiosidade e enriquece o meu repertório, mas de modo natural, não forçado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Minha escrita melhorou muito com o passar dos anos. Não sei exatamente por que, mas acho que o ponto de virada foi em 2016. As palavras começaram a se encaixar melhor no que eu escrevia, ou então eu percebia que um termo era mais “certo” que o outro. Foi ganhando outras cores e camadas. Acho que foi quando eu parei de ficar tão preocupada em seguir “padrões certos” de uma boa escrita. Na verdade, acho que cheguei em um ponto em que já havia aprendido e internalizado esses padrões que me guiaram por tanto tempo a ponto de deixá-los de lado. Já estava confortável o suficiente para criar e seguir um ritmo que era mais meu e até ter a ousadia de falar que eu desenvolvi um “estilo próprio”.
O que eu diria para mim seria o que uma amiga me disse enquanto estava escrevendo um relatório final da minha iniciação científica. Eu estava megalomaníaca, querendo colocar absolutamente tudo no relatório. Eu não teria tempo hábil para isso e o relatório ficaria gigantesco. Essa minha amiga me viu meio louca escrevendo e me deu um dos melhores conselhos sobre isso: “Tem uma hora que a gente precisa parar”. A gente precisa ter a humildade de entender que você não vai resolver todas as questões na sua pesquisa e chegar até o ponto onde se deve chegar. Isso tanto na hora de delimitar o tema quanto na hora da própria escrita. Uma boa pesquisa deve responder a certas perguntas, mas também deixar no ar ainda mais perguntas para serem respondidas no futuro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Sempre concebo vários projetos na cabeça. Não sei se conseguirei escrevê-los um dia. Dentre eles, um artigo sobre a presença de Richard F. Burton no conto O Aleph, do Jorge Luis Borges e a importância da audição em relação à visão nesse texto (no post-scriptum, o narrador dá a entender que foi Burton quem achou o verdadeiro Aleph, ouvindo-o dentro da coluna de uma mesquita no Cairo). Uma espécie de inventário de viajantes disfarçados ou simplesmente de viajantes (já pensei em criar uma minienciclopédia, um blog, uma página no Instagram…). Alguns amigos já me falaram para escrever um livro sobre as viagens que já fiz, mas é difícil. Já ensaiei algumas vezes – enviando por e-mail uma espécie de “diário de viagem” para pessoas mais próximas e publicando textos no Facebook, um ou outra crônica, um blog, ser colaboradora em um site de viagens. Tenho uma trava muito grande pra escrever sobre isso, acho que seria me expor demais. Certas viagens foram – e são – muito importantes para mim. Não me sinto confortável em compartilhar esse tipo de experiência por várias razões. Acho que nunca vou escrever sistematicamente sobre minhas viagens. Quero que elas pertençam só a mim.