Patrícia Lino é poeta e professora universitária de literaturas e cinema luso-brasileiros na UCLA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo sempre muito cedo. Há uma rotina: preparar-me e preparar o café, correr as notícias do dia, ler ou escrever com o café ao lado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De manhã, antes de sair para caminhar ou ensinar. O ritual consiste em aceitar que não há ritual nenhum. Penso constante e obsessivamente no que quero escrever. Escrevo, eventualmente, o que pensei de modo repetitivo, circular e exigente. Escrever parte do questionamento do processo primeiro de pensar. É outro modo de pensar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. A meta, diária ou não, adapta-se ao tipo de texto que estou a escrever. O processo de escrever um poema é completamente diferente do processo de escrever um ensaio. Há, por exemplo, uma enorme diferença entre a versão oral de um ensaio a ser apresentado num colóquio e a versão escrita de um ensaio a ser publicado; e que ensaio? E que poema? O dia ou a falta de horas suficientes num dia adaptam-se a cada um dos organismos (um ou outro poema, um ou outro ensaio…).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Lento, obsessivo, metódico e mental. A vertigem do início é evitada, no meu caso, pela certeza e conveniência do que quero escrever. Se há certeza e conveniência, começar não é difícil. É difícil, porém, parar de ler. Mas, ao contrário do que ouço, começar a escrever não me impede de continuar a ler ou vice-versa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Desconheço um truque. Aceitar as travas da escrita e ir caminhar, dormir o suficiente, ver um/a amigo/a, cozinhar. Aceitar que não há truque.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Inúmeras vezes. Nunca estão prontos. É difícil, talvez impossível, escrever um ensaio que realmente acabe. Ou um poema. Posso, aliás, pensar em vários textos, ensaísticos e poéticos, que venho reescrevendo — e às vezes voltando a publicar — ao longo dos anos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Começo sempre a escrever à mão, nos cadernos. Mais tarde, assim que posso antecipar a estrutura do texto, no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Do que leio, vejo, toco e observo nos/as outros/as. Acima de tudo, ler; ler tudo o que posso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mudança não é grande. Diria a mim mesma o que digo a mim mesma até hoje e que parte desta enorme contradição: há tempo para escrever tudo e não há tempo para escrever nada.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma análise dos vários períodos da poesia contemporânea interdisciplinar brasileira a partir de um conjunto alargado de exercícios ou ensaios visuais (algo que já comecei, mas não tive tempo de organizar ou concluir). Um ensaio sobre o uso e a reinvenção da linguagem na poesia de Manoel de Barros como um projeto pós-colonial. Um poema mais longo do que o de Felipe Ehrenberg.
Gostaria de ler um ensaio preciso, rigoroso e completo sobre o trabalho performático de várias mulheres na América Latina entre os anos 70 e os dias de hoje. Manuais, teses, ensaios ou listas de leitura portuguesas escritos a partir de uma perspectiva anti-colonial; que incitassem pelo menos ao debate.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não concebo uma sem a outra e não trabalho sem combinar as duas. Isto pode ser aplicado a qualquer tipo de texto (poema, ensaio, resenha, livro). Apesar de planear tudo com muita clareza, o processo de escrita é um processo que existe de si para si e, por isso, se transforma com tanta rapidez e tão constantemente. O centro do plano poderá prevalecer sobre tudo isto, mas o processo da escrita cresce por dentro dele. As ideias acompanham espontaneamente a cabeça e a mão.
A primeira e a última frases não são certamente as mais difíceis. O mais difícil será encontrar a consistência do texto como um todo, um organismo vivo em que primeira e última frases se encontrem e em que, de preferência, a primeira seja questionada a partir das seguintes. Escrever é, mais do que qualquer outra coisa, pensar e imaginar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Trabalho e desenvolvo sempre vários projetos ao mesmo tempo e vou saltando de um para outro ao longo da semana e do próprio dia. Transito, também, de uma linguagem para outra — escrevo, depois pinto, escrevo de novo, depois leio. É um caos organizado.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Mais do que qualquer outra coisa, querer entender as outras pessoas, os objetos, a linguagem, as múltiplas potencialidades e possibilidades da linguagem, a articulação de várias formas de expressão a partir do verbo. Correr o risco de aprender as regras para desfazê-las, destrui-las, adaptá-las. Essencialmente, entender.
A escrita chegou pouco depois das primeiras leituras, muito cedo. Escrevia e desenhava narrativas, depois quadrinhos e peças de teatro. Mais tarde, com doze anos, comecei a escrever poemas. Rimavam, eram sobre amor. Muito dóceis.
Acho que aos doze eu decidi.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Há várias respostas para esta pergunta. O tempo, ou a falta dele, são dificuldades.
Além disso, o processo de desenvolver um estilo próprio no ensaio não corresponde certamente ao processo de desenvolver um estilo próprio no poema. Mas, seja qual for o tipo de texto, é fundamental ler muito, tudo, e escrever bastante, todos os dias.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de um estilo próprio acaba? Existe realmente um estilo próprio ou um momento em que se diz: aqui está, encontrei um estilo próprio e parei de querer desenvolvê-lo? Não acredito nisto.
Várias autoras(es). Umas mais do que outras. A vários níveis.
Existem autoras(es) que nos permitem entender a dimensão e quantidade das várias coisas que podemos fazer e não nos influenciam a nível estilístico. Por exemplo, foi fundamental crescer sabendo que outras mulheres tinham já aberto caminho para nós. Uma delas foi Maria Velho da Costa. Acaba de deixar-nos. Uma perda irreparável para a literatura de língua portuguesa. É, por isso, muito importante trabalhar, poética ou academicamente, querendo abrir caminho para as mulheres que chegarão depois de mim. Ou, por exemplo, para quem, como eu, foi a primeira da família a chegar à Universidade.
A nível estilístico, gosto de pensar nos meus poemas como penso criticamente nos poemas dos(as) outros(as). E se tivesse que classificá-los ou descrevê-los, descrevê-los-ia como um encontro rítmico, transmedial, político, obsessivo e humorístico entre três culturas: a greco-latina, a portuguesa e a brasileira. Ou então não, José, talvez eu esteja completamente errada.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou recomendar os três últimos livros que li e reli. Gosto muito de cada um deles.
O primeiro foi Vôo da Madrugada, de Sérgio Sant’Anna, que li pela primeira vez aos 20 anos. O Sérgio é um dos meus contistas favoritos e a sua morte abalou-me muito. Comprei a edição portuguesa do Vôo há, como disse, 9 anos atrás e trouxe-a comigo para os Estados Unidos por gostar tanto dela. Há algo comum a todas as leituras que já fiz deste livro: a perplexidade, a admiração pela construção estratégica da estrutura dos contos (do homónimo, em particular) e a alegria de ler alguém que chegou a dominar, se quisermos acreditar que isto é possível, plenamente as palavras.
O segundo foi a novela gráfica Estamos todas bien da jovem espanhola Ana Penyas. Estamos todas bien foi construída a partir das memórias das agora avós e, durante a ditadura, mães das mães da geração da autora. Faz-nos pensar sobre o poder visual da memória e obriga-nos, ao mesmo tempo, a pensar na memória destas mulheres como um arquivo histórico.
O terceiro foi Inferno de Pedro Eiras. É o primeiro livro de poesia do Pedro, que já publicou tanto, sobretudo romance, teatro e ensaio, e é um dos escritores portugueses contemporâneos que mais admiro. Para mim, que não tenho muitos, o Inferno tornou-se rapidamente um dos meus livros de poesia preferidos. Tudo nele funciona organicamente: as ideias e como se vão formando muito intuitivamente umas sobre as outras, o ritmo ou a quase música, a inteligência, a delicadeza e a sabedoria com que se pensa e diz. O Inferno é político, voraz, atento e empático. E é talvez, entre as múltiplas vozes do Pedro, a mais implacável. Chegará às livrarias portuguesas no dia 11 de junho. Espero que chegue logo depois às livrarias brasileiras.