Patrícia Claudine Hoffmann é poeta, autora de “Matadouro Imperfeito” (Editora Letradágua).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A rotina que tenho é a de dar aulas, ou seja, a do meu trabalho enquanto professora. De segunda à sexta acordo às seis da manhã e vou para a escola onde leciono até às quatro e meia da tarde (não leciono mais no período noturno há um ano). A partir daí, fico mais disponível para a poesia, no que diz respeito à escrita, já que imaginar podemos em qualquer tempo e espaço. Escrever não, pois requer aquele instante da entrega. Já aos finais de semana gosto de dormir tarde e acordar cedo para escrever, para as leituras livres, uma ou outra pesquisa… As manhãs de sábado e domingo são importantes. São bálsamos para mim! Porque a respiração criativa é ampliada nos pulmões do tempo, porque há espaço para a escrita, pelo campo que se abre – muito mais nesses dias – para a recepção e emissão da poesia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor à noite ou ao amanhecer porque preciso do silêncio. Gosto muito do amanhecer, entre cinco e sete horas. Há um arejamento de mundo. O hálito do planeta é fresco. Se há um ritual que posso citar é o do silêncio mesmo, sem o qual não consigo escrever de jeito nenhum. Não consigo criar no caos de ruídos, no barulho, em meio ao que me distrai ou me retira do centro interno.
Mas há lampejos de criação durante todo o dia, noite, no meio do sonho; Anoto sempre que consigo. No trânsito, entre uma aula e outra, uma olhada para as árvores – por sorte desde o ano passado leciono em uma área rural – , uma olhada para o céu, uma borboleta que passa, o trem, a chuva, um pássaro dando rasantes, um cavalo sem escolha, enfim, há noções de poesia ensinadas e aprendidas também junto aos alunos, porque a poesia está sempre a sondar e nunca me sinto sozinha dela. Basta ligarmos o radar dos sentidos. Ela está.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há períodos em que sim, todos os dias. Períodos de maratona poética espontânea (Risos). Mas não cultivo metas de produção, nem diária nem mensal, nada disso, não há uma formalidade quanto ao quanto nem quanto ao quando escrevo. O que há é uma urgência da poesia, da vida externa para a vida interna. Mas daí até se cristalizar em palavra, não há regras nem prazos. Escrevo na medida em que posso e às vezes, na medida em que não posso. Claro que eu gostaria de ter mais tempo livre, mas a poesia se adapta como água às circunstâncias, sinto que ela contorna os obstáculos, corre entre as pedras e não deixa de seguir seu curso. Há intervalos de meses sem escrever também, o que não deixa de ser gestação. É quando cedo aos cansaços imensos. Mas a urgência permanece. Chega a dar um vazio que parece definitivo. Depois tudo acorda e recomeça. Vibra em novo tom. E se vez ou outra me é solicitado algum texto com data marcada para entrega, nunca faço sem a angústia da pressão. Estou querendo mudar isso. Alcançar um estágio de antecipação… (Risos)
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A vida, o existir, esse estar no mundo catando respostas; poder observar o interno, o externo das coisas e não coisas, a natureza, as flexões do tempo na memória, acho que isso vai dando algumas “coordenadas”, se assim posso dizer, para o meu processo de escrita. Nem sempre faço uso de pesquisa inicial para escrever. Muitas vezes, a pesquisa vem depois da escrita, e em outros momentos a pesquisa se dá na alma, para um possível lapidar sobre a palavra bruta, aquela que, por vezes, beira o inconsciente mesmo, como um “exercício”, um delírio inevitável que só depois receberá – ou não – ajustes do pensamento, de alguma porção de razão. Já em momentos distintos, a pesquisa precede o poema, quando há, naturalmente, a intenção de se escrever sobre algo em especial ou algo que contribua para a construção de unidades temáticas. Às vezes é difícil começar a escrever assim, com “alvo” ou tema, parece que fica um pouco truncado mas, de repente, as palavras vão tomando seus lugares e sua natureza… e talvez seja esse o lance da poesia: imantar as palavras com sua própria natureza. Mas nunca sem rigor. Tentando – ao máximo – não desrespeitar a beleza em sua essência, o que é sempre um desafio inédito. Então os poemas vão se fazendo, cada qual à sua maneira, no seu momento, no seu respiro. Os poemas nos ensinam a toda hora. É devagar e constante. Proporcional a quanto permitimos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu procrastino demais, principalmente quando estou cansada em todos os sentidos. Os projetos longos assustam um pouco, porque correm o risco de evaporação diante das alterações atmosfericamente poéticas, provocando quebras de tom, por exemplo. Prefiro projetos mais breves. Mesmo sabendo da pressa da poesia… há épocas em que me disperso muito e, apesar da sede de escrever, sou indisciplinada, fico esperando a hora ideal, o dia ideal, o lugar ideal para criar, só que estou aprendendo que isso é bobagem, porque a poesia não age assim, não responde a isso, pelo menos diante do que tenho experimentado. A poesia parece um relâmpago, um desconforto – mas de prazer – , então repenso sobre os adiamentos e aí retomo o fluir da escrita, sem esperar a condição ideal até porque essa condição nunca vai existir mesmo. Não adianta esperar os problemas se resolverem, o sono passar, o cansaço passar, que nada disso impede a poesia. O momento é agora. É amanhã. É ontem. O momento sabe de si. E acontece. O poeta consente a esse instante.
Quanto às expectativas, não sei se correspondo a alguma, nem sei se há alguma, não penso nisso. Se o que escrevo pudesse ao menos corresponder à poesia, enquanto energia dotada de mistério, amor e chamamento, já seria algo bom. E se pudesse ajudar para alguma delicadeza no mundo também estaria bom. Mas como saber?
O que sei é que a poesia traz amigos queridos. Companheiros de jornada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso algumas vezes. Não sei quantas. No mínimo três. Na verdade… reviso até sentir que o texto se “contorce”. Enquanto ele fica muito calmo vou “ajustando”, por intuição mesmo. Ainda assim, depois de tempos, dou mais umas tosadas, e tem os poemas que se apagam sozinhos, se desistem depois, naturalmente se revisam e se extinguem no aspirador do tempo. Antes de publicar costumo mostrar meus textos para uma ou duas pessoas mais próximas. Um olhar externo ajuda a mandar para frente, sabe? Encoraja-nos a soltar os poemas pelo mundo. É importante. É ato de amor também. É solidário. E eu agradeço demais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Com a tecnologia me relaciono o necessário: para leitura, escrita, algumas correspondências, pesquisa e publicações poéticas.
Raramente tenho escrito à mão. Estou perdendo o hábito. Hei de reencontrá-lo, pois é do desejo. Por agora, rascunho tudo no bloco de notas do telefone, já que este está sempre perto. Depois, passo para o computador. Escrever de forma artesanal, à mão, é uma experiência ótima da qual sinto saudade. Mas nem sempre temos onde apoiar papel e caneta nessa correria diária. Passei a escrever pouquíssimo à mão. É algo que gostaria de reexercitar, até porque o ato, em si, é bastante poético. Escrevi muita carta, muito bilhete e muito poema à mão. Já, com o advento do correio eletrônico, as letras perderam o seu desenho próprio vindo de cada pulso… perderam uma certa liberdade de expressão que antes tinham. Mas a energia continua a seguir com cada palavra, independente de como é concebida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei ao certo de onde vêm. Desconfio que as ideias venham da observação. E vêm de umas memórias… e um imenso sentir, de um extrair a poesia do que nos rodeia por dentro e por fora. Talvez o hábito que eu cultive seja o de observar e sentir. Tudo está pronto para nos dizer em poesia. Por isso é importante estarmos atentos… à música que há nas coisas… e termos boas leituras, boas conectividades de alma, boas músicas, paisagens, filmes, conexão com a natureza, incluindo os animais, é claro; os animais têm muita poesia… e dialogar com o invisível também, com o silêncio; procurar o sentido que está presente em todas as coisas e escrever principalmente sobre aquilo que não sabemos, mas que a poesia nos faz saber por ela mesma, se não me foge a memória. E isso está disponível o tempo todo para nós. É uma questão de acessar. De se atirar sem medo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ah, diria para eu me atirar mais com as palavras, com a mesma coragem de um bicho no instante que antecipa o voo. Já tive muito medo disso. Diria para eu não ter medo da queda nem da dúvida, e ir convivendo com a poesia, como disse Drummond. A minha experiência mudou e isso é natural. O tempo mudou, os cenários… os olhos, a vida!
Acho que minha escrita ainda carrega excessos e faltas. Talvez já tenha carregado mais. Nunca haverá a medida exata. De tempos em tempos surgem manias na escrita mas creio que as digitais permanecem. Eu não peneirava muito. Faz tempo isso. Achava que a essência do poema poderia se perder entre os cortes. Mas vamos aprendendo… nunca cessa. Eu desconhecia a diferença entre os limites do necessário e do essencialmente desnecessário no texto. É tão fácil se perder… E há muito o que saber. Há quase tudo. A busca se dá todos os dias e noites. E fora do tempo também. Vamos aprendendo pois é infinita essa aproximação assim… mais íntima com a linguagem, não sei se é possível pular etapas. É no trato com a palavra que vamos compreendendo melhor o fazer e o viver poético. Vamos aprendendo a aprender. Todo dia. Parece algo que absorvemos em ondas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minha Conclusão de curso na faculdade de Letras, isso faz bastante tempo, foi voltada completamente para o as crianças e a poesia. O sonho de que a poesia pode alfabetizar a alma… Tive vivências enriquecedoras nesse tempo, vivências mágicas mesmo, na aplicação do projeto. E descobri que a alma das crianças já nasce alfabetizada pela poesia mas vai perdendo essa potência na vida adulta, na medida em que não é exercitada. E desde então tenho vontade de escrever um livro de poesia para crianças, mesmo sabendo que são elas as melhores poetas naturais do planeta! Do universo! Mas ainda me falta coragem… aquele impulso.
E por falar em planeta… adoraria ler um livro sobre a arte extraterrestre.