Patrícia Cabianca Gazire é escritora e psicanalista, autora de Objeto, modo de usar (Blucher, 2017).
Como você começa o dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou dorminhoca e, em geral, não saio da cama antes das oito e meia. Se desperto antes, fico bem quietinha debaixo das cobertas, com os olhos fechados, deixando os pensamentos irem e virem, até chegar o momento de me levantar. Meu quarto fica nos fundos da casa, separado dela por uma escada e um pequeno jardim, então, tenho de sair ao ar livre para tomar o café da manhã. Faço isso já com a roupa que vou vestir durante o dia. Como não tenho o hábito de tomar café preto, lá pelas dez, faço uma grande xícara de chá verde concentrado que vou tomando aos pequenos goles ao longo de toda a manhã (tem que tomar devagar, pois, o chá verde tem um gosto enjoativo, provoca náuseas).
Ligo o notebook, leio as manchetes do dia na Internet, abro alguma rede social e xereto as atualizações em literatura, política etc., checo e-mails. Depois, fecho tudo e fico apenas com os dicionários eletrônicos Larousse e Houaiss, e o Google; e inicio os trabalhos.
Levo uma vida dupla: sou escritora e psicanalista (atualmente, mais escritora do que psicanalista). Há períodos durante a semana em que me dedico ao ensino da psicanálise na universidade, com aulas teóricas e supervisão aos atendimentos de jovens médicos e psicólogos. O hábito da escrita me acompanha também aqui: faço anotações clínicas em um caderno especial para esse fim.
De dois em dois dias, saio para correr na rua, atividade que me toma toda uma hora, sempre ao final das manhãs. Sinto meus pensamentos oxigenarem e, normalmente, tenho ótimas ideias quando estou correndo. Só não escrevo porque não dá.
Nos demais períodos, escrevo em casa, em três locais diferentes: na sala, sobre o sofá; no escritório, no andar superior onde fica minha biblioteca; e no escritório, onde tenho uma impressora.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu horário de trabalho varia, posso sentar para escrever já logo de manhã, desde que na penumbra, em um ambiente aconchegante. Como voltei não faz muito tempo de uma temporada morando na França, minha casa encontra-se em total desordem, com roupas e objetos guardados em malas, como se eu ainda não tivesse chegado ou estivesse pronta para partir. Há caixas espalhadas pela sala, objetos em desuso que foram de meus avós, uma pequena vitrola vermelha usada por mim e meus irmãos na infância, CDs, DVDs, televisão, quatro jogos de sofás entulhando o caminho, uma cadeira sem encosto, um divã em desuso e quadros espalhados pelas paredes. Os livros estão guardados em três lugares distintos pela casa, mas, por incrível que pareça, quando preciso de algum, sei exatamente onde encontrá-lo. Trabalho bem rodeada por toda essa quinquilharia, acho que esse “resto” de coisas em volta ajuda a criar uma atmosfera propícia à criação. Além disso, na semana passada, uma família nova mudou-se para a casa ao lado. Não os conheço, mas já me relaciono com a voz fina de queixosa do garoto de uns quatro anos que, coitado, como sofre! Essa voz já se tornou, é claro, personagem nas minhas histórias. E tem também a companhia silenciosa da Aparecida e da Amapola, minhas duas tartarugas. São irmãs, e já fizeram de tudo, inclusive botar ovos!
Mas, às vezes, é preciso mudar de lugar para ver as coisas de outro jeito. Já escrevi em praça, sentada no chão do metrô, na chuva e mesmo andando no meio da barulheira da feira livre que tem perto de casa.
E, devo dizer, às vezes começo a escrever, esqueço o tempo e, quando me dou conta, são duas da manhã. Mas, a vida é assim, às vezes não dá para interromper a escrita, tem de ir até o fim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, uns mais, outros menos. Atualmente, estou trabalhando em um romance, então, tenho a meta de escrever uma página por dia, nem que tenha que jogar tudo no lixo quando termino. Escrever é, sobretudo, exercitar a escrita. É possível que baixe uma inspiração de algum lugar do além, mas, se não houver um corpo operário (e disposto a trabalhar) para receber esse “espírito”, nada acontece. Preciso de períodos longos, de no mínimo três horas, para a prática sistemática.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Se for um texto acadêmico, faço uma pesquisa extensa sobre o assunto, primeiro na internet e, depois, se for o caso, busco algum acervo físico específico. Começo pelo cânone, em seguida procuro quem disse o que sobre aquele assunto, em que época e em qual idioma. Faço um arquivo, separando os textos em pastas nomeadas “textos importantes”, “textos do professor x”, “textos fracos” etc.
Em geral, lá pelas tantas, conforme vou lendo, surge uma ideia que permanece e que julgo ser um bom fio condutor (se não for, jogo fora e passo para outra). Daí, faço um pequeno esquema em forma de itens do que quero abordar para não esquecer de nada. Por fim, inicio a escrita.
A escrita de ficção – prosa e poesia – não difere muito em termos de pesquisa. A diferença é que crio um personagem ou uma voz (no caso da poesia) e procuro mergulhar em uma atmosfera em que fico um pouco dentro e um pouco fora de mim, num plano fantasioso, em parte desligado do aqui-e-agora.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando travo, procuro não insistir. Às vezes, não gosto do que escrevi e sinto que é o momento de parar, ir ao cinema, mudar o cenário, ligar para algum amigo para bater papo. Se sinto que estou engessada em um mesmo formato por muito tempo, procuro alguma oficina de criação para me libertar. A última foi no fim de semana passado, uma oficina intensiva de poesia com o querido Carlito Azevedo, uma das pessoas mais criativas e dinâmicas que conheço. Ele me tirou dos eixos, propondo o abandono da voz própria para colocar voz nenhuma no lugar (!). Estou até hoje (três dias depois) meio bamba. Valeu cada minuto da conversa, viu Carlito?!
Embora eu escreva por uma necessidade pessoal, pelo próprio ato de escrever, e não para os outros ou para outro fim que não a própria literatura, é normal “encanar” e ficar se perguntando se as pessoas vão gostar, ou ficar preocupada com as reações que o texto vai provocar. Às vezes, faço testes. Leio um poema curto para meus sobrinhos, de oito, dez e onze anos, e observo as reações. Ou, ao terminar de escrever um texto sobre psicanálise, escolho alguém para ler que não seja da área, e pergunto o que a pessoa entendeu. Isso ajuda a identificar os pontos obscuros.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Várias vezes. Escrevo, e reescrevo, e reescrevo. Até sentir que não consigo mudar mais nada. Aí, é o momento de enviar o texto à minha revisora e principal interlocutora, a Fernanda Windholz, que trabalha comigo há alguns anos, em quem tenho total confiança e que comenta desde a coerência até os aspectos literários da escrita. Mexo bastante no texto após isso.
Faz um tempo, enviei os primeiros capítulos do romance que estou escrevendo para três escritores com perfis distintos e com gostos bem diferentes dos meus e entre si, e pedi a eles que comentassem o que e como quisessem, desde que fossem sinceros e não me poupassem de suas críticas. Foi uma experiência dolorosa passar pelo “crivo” de escritores mais experientes. Ao mesmo tempo, foi muito proveitoso, minha escrita só fez melhorar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador. Em seguida, edito. Só as anotações das ideias é que faço em cadernos pequenos e baratos que precisam ser leves, pois, são transportados a todos os lugares dentro da mochila. Como não tenho carro, descarrego alguns textos no Google drive, assim, posso ler no metrô, na sala de espera do médico. Às vezes, me ligo por um tempo na poesia de algum autor e não consigo me separar dela. Quando isso acontece, faço uma cópia do texto em papel e carrego comigo dentro da mochila para todo lugar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
De toda fonte possível. Como disse certa vez um poeta: “literatura é assunto para os críticos literários; para os escritores, o assunto é tudo o que existe no mundo”. Tudo é matéria para escrever, desde receitas, até exposições de arte, música, encontros, situações clínicas relatadas por psicanalistas, conversas na fila da padaria, sonhos etc.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Estou escrevendo o segundo doutorado. Isso não é comum, me considero privilegiada. O primeiro doutorado foi sobre psicanálise e foi escrito e defendido em francês. Para o segundo, em criação literária, estou escrevendo um romance para, em seguida, preparar algumas reflexões teóricas em torno dele. São dois gêneros diferentes de escrita. A escrita do doutorado em psicanálise (que foi traduzido para o português e publicado em livro no Brasil), embora bastante técnica, foi bastante ensaística, o que me permitiu uma grande liberdade criativa quanto ao método da pesquisa e também quanto à maneira de sistematizá-la e relatá-la. A escrita do romance está em processo, é algo desafiador e apaixonante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria ser surpreendida por um livro absolutamente novo, ainda não sei direito dizer o que é, mas tem a ver com as novas formas de mídia e comunicação que têm provocado modificações no tempo, nos sons, na permanência das pessoas, no ritmo da escrita. Seria uma escrita relacionada ao estímulo dos cinco sentidos, causando certa desordem, abrindo para o inusitado. Não sei se serei eu a autora desse livro, mas gostaria muito de me deparar com ele n’algum canto, algum dia desses.
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Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
A primeira coisa é escolher o tema, é preciso que seja um tema que me seja caro (fico muito tempo mergulhada nele) tanto em relação ao percurso pessoal, às experiências de vida, como ao mundo imaginativo, já que a fantasia é meu habitat natural. Gosto de escrever sobre o amor e os assuntos que gravitam em torno dele – encontros, decepções, dores, medos etc. Confesso que preciso me policiar para não redundar e sempre desembocar na escrita do amor. Quando isso acontece, a redundância, procuro formas de estimular as emoções e a sensibilidade fora da literatura: acontecimentos políticos, curiosidades, culinária, conversas com crianças, artes visuais, música.
Respeito o tempo da escrita, não costumo me forçar a escrever quando a frase não vem ou quando tenho alguma preocupação que puxa demais a atenção. Para escrever, a mente precisa estar livre.
Elaboro um planejamento, normalmente de forma gráfica, uma linha do tempo que encadeia os acontecimentos da história. Se há mudanças do foco narrativo, essas também são assinaladas. Costumo dedicar bastante tempo à criação da personagem sobre a qual o romance tratará. Pode haver mais de uma, mas a personagem principal é bem estudada: características da personalidade, principais conflitos, uma ou mais questões essenciais que a acompanharão durante toda a história.
Escrever, para mim, é sempre um trabalho árduo, a escrita está longe brotar naturalmente. A primeira e a última frase são difíceis de encontrar, mudo ambas inúmeras vezes durante toda a escrita do livro. Reescrevo e reescrevo até sentir que não há mais o que mudar. Em seguida, corto tudo, o início e o fim, e fico apenas com o meio, seguindo o conselho de Dan Brown: “chegue tarde e saia cedo; o tempo que ficar é a essência do que precisa ser mostrado.”
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Cada projeto merece dedicação total, mergulho em tempo integral. Escrever envolve contato com os afetos, aprofundamento e pesquisa com os mesmos. Diversificar o investimento afetivo prejudica a qualidade daquilo que será escrito. A criação literária toma bastante tempo. É comum acontecer de o projeto ser suspenso durante um tempo para uma incursão pela escrita de poemas ou contos breves. Mas, o projeto em gestação permanece latente, me acompanha até em sonho.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Levo uma “vida dupla”: sou psicanalista e escritora. Psicanálise e literatura são próximas, mesmo inseparáveis, se consideramos a sessão de análise uma narrativa de ficção. Quando falo ao analista, conto minha história. Neste sentido, o psiquismo é um conjunto de textos. Por essa razão, a literatura sempre me acompanha.
Comecei a escrever literatura de ficção de maneira sistemática quando me mudei para Paris para elaborar uma tese de doutorado em psicanálise. Assim que cheguei, passei a escrever textos, sem parar. Escrevia receitas, impressões, relatava experiências com os lugares da cidade, encontros com pessoas, com a língua estrangeira, com o estrangeiro em geral. Em seguida, os textos foram tomando a forma de contos, escritos em português, rescritos em francês (e vice-versa). Os escritos, de uma maneira, ou de outra, versavam sobre o contato com o estrangeiro, sobre aquilo que uma mudança de cidade, uma língua estrangeira ou o encontro com uma pessoa desconhecida provocavam em uma narradora “perdida”, que explorava uma nova realidade e tinha um luto a elaborar. Abordavam, assim, sentimentos ligados ao “estranho familiar”, inclusive do ponto de vista da pesquisa de uma escrita literária em uma língua que não é a materna.
De maneira ampla, escrevo para restaurar alguma coisa, reconstruir, resgatar. Desde muito pequena, tenho a impressão de que as palavras que uso para me comunicar com as pessoas são insuficientes, não chegam até elas. Isso provoca um intenso sentimento de solidão. Escrever é um modo de encontrar o outro, encontro esse que está sempre por acontecer…
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Minha busca sempre foi por desconstruir qualquer estilo a fim de não me prender a nenhuma forma particular que defina minha escrita. Procuro a todo momento uma escrita não autoral, que apague meu eu, que me permita assumir várias formas e chegar a vários lugares por vias distintas. Em psicanálise, seria algo como poder deixar-se habitar por vários eus e vários objetos que a todo momento mudam de lugar. Vestir, assim, inúmeras couraças, trocar de pele. Nesse sentido, a leitura de Clarice Lispector foi e é fundamental, já que, para lê-la, preciso me desfazer das máscaras e mergulhar sem defesas no mundo do corpo, das emoções e das sensações; e do Amor…
Também encontro nos versos da poeta carioca Cláudia Roquette-Pinto a encarnação do enigma do feminino, já que neles a ambivalência e o deciframento estilhaçado tornam a “mulher-que-fala” ainda menos configurada. O foco é colocado longe do lugar em que se está, o movimento é sempre para mais longe, o que aprofunda a entrada paradoxal em si mesma e no oco do lugar habitado.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Sugiro aos leitores três escritores franceses, escolha puramente afetiva que se relaciona ao meu percurso como leitora e escritora.
Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust (França, 1913). Para o estudo do narrador, porque é um romance de formação da percepção do narrador, percepção essa que serve para analisar as relações subjetivas, políticas, relações de classe, intersubjetivas etc. Marcel Proust se duplica no narrador. Jamais é Marcel Proust nascido no final do século XIX em Paris. O “Marcel” é uma brincadeira. Temos aqui dois narradores que são o mesmo, um narrador duplicado. Na leitura de Proust, fica claro que um narrador só narra aquilo que era seu estágio de consciência em um momento determinado. Mas, há também outro narrador que, em outros momentos, tem visão retrospectiva. Portanto, o foco é no interior: o narrador narra o que viveu e o momento em que fez literatura. Ou seja, há níveis de representação dentro de um romance.
O Amante (França, 1984) e O Amante da China do Norte (França, 1991) de Marguerite Duras (assim como seus filmes) porque há um som, um tom, um encantamento na linguagem da autora que atribui sua marca às palavras que utiliza. Duras parece querer não somente usar a língua, mas se tornar a própria língua. Não há desafio maior para um escritor que o de tentar subverter a linguagem até que esta se identifique com o próprio processo de escrita.
Os anos de Annie Ernaux (França, 2008), porque a autora mostra, a partir de um livro de memórias (escrito, portanto, em primeira pessoa) que toda narrativa, mesmo a de um texto autobiográfico, se desprende totalmente da realidade e cria nuances. Narrar é criar camadas de memória. Tudo é, portanto, imaginação. Escrever é reviver por aproximação.