Paola Zordan é artista visual, professora do departamento de Artes Visuais da UFRGS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou levada por torrentes de chuva, por raios de sol, por fluxos de trânsito, pessoas a serem atendidas, plantas que precisam ser regadas, animais a alimentar, cuidados com casas. Então, José, se há alguma rotina ela até pode me pegar, caso contrário, rotinas me são impossíveis. Em viagens, na casa de outras pessoas, por alguns dias, dentro de um ritmo, sem querer rotinas acontecem. De resto, nenhum dia é igual ao outro, salvo quando estou de férias no meu próprio território, aí sei que vou dormir até esquecer quem sou. Em dias normais, ou seja, nos dias letivos do calendário acadêmico, sigo, semestralmente, rotinas semanais de aulas e atividades de pesquisa em horários pré-determinados. Mas reuniões, esse sangue circulante das universidades, sempre são intercaladas. O fato de raramente repetir as disciplinas que ministro, de depender de conseguir uma sala a cada semestre, de nunca ter tido o conforto de saber qual seria meu horário fixo, acho que me acostumei a nunca me acostumar com nada. Na universidade as pessoas ocupam espaços e horários, eu, que não tenho “área” nem um nicho estabelecido, sempre tive que me adaptar ao que era possível. Brigar para ocupar algum lugar, na transversalidade do que faço, estudo e penso, significa perder tempo e energia demais ao invés de me concentrar no que realmente interessa: desenhar, escrever, pintar, alongar o corpo, estar plena no próprio corpo. Posso passar noites sem dormir, posso acordar de madrugada e sair trabalhando enquanto a cidade ainda dorme, posso dormir à tarde, não tenho previsão. São as intempéries que fazem de cada dia um acontecimento único. A professora motociclista arejada dos dias dos ensolarados nunca é a mesma de quando chove e se torna pedestre vindo em um coletivo e é outra totalmente diferente quando tem vaga de estacionamento, podendo usar salto e vir dirigindo sua cápsula de condução (carro próprio). Ainda há a de chinelo e biquíni, que lê alunos e prepara aulas nos finais de semana na casa de praia, como estou fazendo agora para redigir essa entrevista, longe da minha biblioteca, mas sempre com algumas sacolas de livros indo e vindo para os ter na mão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde criança sou notívaga e, realmente, a noite me convida para as palavras, especialmente as palavras sem sonoridade que a escrita nos proporciona. Porém, a vida na universidade me tira horas de ginástica, horas no ateliê, então o gozo das noites acaba inexistindo, sendo complicado que eu escreva o quanto realmente quero. Como mãe e dona de casa, responsável por harmonias e proventos, não consigo seguir totalmente meus desejos e meus fluxos. Escrevo e desenho a qualquer hora, sempre que não preciso estar em pé, socializando ou dando tudo de mim pelo meu corpo inteiro. Qualquer reunião, banca, evento que esteja assistindo, passo anotando, desenhando, escrevendo versos nas bordas, brinco com esse furor. Escrevo do jeito que der, com o que houver, em cadernetas, bloquinhos e cadernos, às vezes bloco de notas eletrônicos, tablet. Se posso escolher prefiro algo mais táctil, que ainda traga as sensações da madeira, interaja com água de verdade e não canse os olhos. Um colega chamou meus estojos de lápis, pincéis e aquarelas de “instrumentos de guerra”. E agora, que passei a ter poder aquisitivo, pude comprar cadernos de papel bom, estojo de aquarela portátil, canetas deliciosas de usar. São verdadeiras tábuas de salvação. Mesmo uma esferográfica barata e folhas de descarte resolvem o mundo, não vivo sem eles. Só vivi uma experiência extrema sem meus materiais de manuscrever e riscar. Foi numa caminhada de quilômetros e quilômetros pelos campos de cima da serra com descida e travessia de um cânion adentro, tendo que andar sem peso: mesmo assim, lembro de me encostar num pedregulho, sentir o cheiro de mato e fazer versos para as estrelas. Especialmente nas noites de lua cheia, em dias que estou muita cansada, aquilo que em condições favoráveis eu estaria escrevendo, perde-se enquanto caminho, pedalo, nado, versos se vão à noite entre lençóis.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meta, para mim, sempre foi coisa de futebol, de esportes, de jogos sem muito sentido que não o gosto de vencer. Eu detesto metas enquanto forem algo desse tipo. Aqueles que visam uma meta, acabam tão ocupados em vencer que perdem milhares de sensações. Pensar na baliza ao invés de correr para sentir o corpo ativo é perder a força da simples corrida que em nada precisa chegar. O projeto #comoeuescrevo tem intenções, compartilhamentos, curiosidades, não metas. Se você estabelecer uma meta, seja conseguir um número tal de nomes, tais nomes ou tipo de escritores e acadêmicos, tantos x acessos e outros itens quantificáveis, ao invés de aprender e se regozijar com esse projeto, ele vai se tornar um problema, um dever, uma imposição. Aqui as pessoas estão respondendo porque gostam do assunto. Porque escrever faz parte da vida delas. Escrever é perigosíssimo. O que está escrito fica. Pensar como se escreve é um rico exercício. Mesmo que seja uma canção com o olhar ansioso pela imensidão da Via-Láctea, o que você está escrevendo define verdades. Mas, diferente de como é na área do direito, no campo das artes a escrita mostra a potência daquilo que, por ser criação, sem nenhum problema pode ser tomado como mentira. Mas entendo que o que você pergunta como “meta”, é outra coisa. Diz respeito ao corpo da escrita, às etapas da construção. Quando era jovem e tinha tempo para escrever, eu ia até o fim, incansavelmente, em contos e nos pequenos romances que escrevi. Esses, nunca publiquei, por falta de tempo (e por saber que precisava revisar). Sou assim com minhas casas, em todas que já vivi. Até tudo estar no lugar, aprazível, pronto, não paro até ficar pronto. Mas tenho muita coisa inacabada e guardada porque aos vinte e cinco anos, com muita coisa escrita em processo, estava cuidando de uma casa com jardim, grávida, quase sozinha em razão do excesso de trabalho exigido pela profissão do meu parceiro. Logo viramos mestrandos, era muito difícil, dois pesquisadores dividindo um só computador. Como eu era bolsista e ele não, o fato de eu ter prazo me deu prioridade à máquina e como um mestrado era a única desculpa, na situação precária em que vivíamos, para poder escrever e foi tranquilo criar “um plano de etapas” e um cronograma de cumprimento de “itens” para dar corpo a uma dissertação. A mesma coisa, com um pouco mais de voo, aconteceu durante a tese. Era tudo o que eu devia fazer, em função da minha capacidade para pesquisar e escrever, dentro desse contexto. Timidamente inseria meus desenhos junto (muito pouco perto do que meus orientandos fazem hoje em termos de composição e liberdade poética nos documentos finais de suas teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso). Escrevi tanto durante o mestrado e doutorado que tenho pastas e pastas com partes retiradas. Tenho um projeto de tese enorme, que no final não teve uma linha aproveitada na tese final. Minha tese, depois de muitas recusas, sei que é impublicável, pois mistura arte com filosofia, educação, esquizoanálise, tudo num texto sub-literário, sempre considerado hermético e difícil demais para qualquer público. Publiquei algumas partes, mas nenhum pedaço serviu como artigo acadêmico nos parâmetros das revistas. Escrevo compulsivamente, adoro preencher o branco. No computador, como não posso definir espaços curvilíneos tal qual nos cadernos, escrevo em várias janelas. Posso ter abertos textos teóricos, um delírio prosoemático só para mim, uma carta para alguém em outra. Quando escrevia a tese trabalhava com onze documentos diferentes. Nessa época não tinha a noção de que estava entrando num túnel que prende o pensador livre numa série obrigatória de artigos para periódicos qualificados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha pesquisa é incansável e tenho a tendência de acumular referências, organizando arquivos amplos demais para conseguir transcrever a totalidade, salvo de modo anafórico. Faço inventários iconográficos e produzo, mesmo sem considerar as produções dos meus orientandos, cada um com seu universo à parte, muito material. Meus relatórios de pesquisa, dos quais apenas textos referentes aos resultados analíticos gerais conseguem ser publicados, são imensos, excessivos em ações, interlocuções, eventos. Minha pesquisa se desenvolve com muitas imagens, tanto as inventariadas como as advindas das produções poéticas de meus trabalhos artísticos e os de todo meu grupo. Aprendi a pesquisar via metodologias estruturalistas, enquadradas, com muito menos licença poética do que eu gostaria, por isso banco formas de expressão não convencionais em trabalhos acadêmicos. Não acho difícil começar. Se eu não tivesse tantos outros afazeres obrigatórios eu escreveria o tempo inteiro, intercalando com exercícios corporais, produções de artes visuais e jardinagem, que é uma paixão minha. Muitos trabalhos meus, desde a graduação, envolvem palavras. Quando estou envolvida com um jardim consigo passar alguns instantes sem nenhuma palavra em mim. Não é bem uma escolha. As palavras vêm e insistem dentro de nós. No meu caso pedem para existir numa obra. Pode ser colagem, pintura, o título de uma performance, até uma elaboração de pesquisa, como o projeto do traje ortopedoxia, que discute as palavras de ordem numa apresentação em meu próprio corpo, sempre em situação acadêmica (aula, congresso, seleção). São as palavras, seu encadeamento, sua força, que conduzem minha mão para aparecer numa folha. Um de meus projetos de pesquisa, que já aparecia nas intervenções FAZ e AMA, no prédio da Faculdade de Educação da UFRGS, que discutem os imperativos e as amarras da linguagem. Eu escrevo coisa sob paisagens pintadas, uma espécie muito peculiar de palimpsesto, tenho palavras rasuradas atrás de telas. Escrevo e desenho minhas aulas e palestras, faço diagramas, crio esquemas que acabam desenhos ou pinturas, perco as fronteiras entre a produção gráfica, pictórica e a escrita com fins acadêmicos, pois tudo isso é produção de pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrevo e faço arte lutando contra uma pia de louça suja, refeições a serem preparadas, consultas a marcar, camas a serem estendidas, prole pedindo coisas, alunos perguntando se eu já os li, estudantes solicitando encaminhamentos e informações, orientandos prolíferos, caixas de areia com titicas a serem retiradas, entre outras coisas. Não conheço travas, apenas uma coleção de infortúnios e impedimentos. Escrevo contra as urgências e o fedor de um corpo que, se for tomar banho, não escreverá. Escrevo contra conflitos domésticos ardendo nas minhas costas. Nunca, a não ser quando viajo a trabalho, tive o luxo de me abandonar na escrita sem intercalços, sem ter que parar para levar ou buscar alguém da escola, de uma festa. Eu tenho que me impor para conseguir escrever, especialmente quando não há um propósito anunciado e um prazo a cumprir. Quando sento no computador tenho que estar preparada para desarmonias, irritações, gente reclamando, ataques de pânico por parte de outrém, gente me exigindo. Não conheço travas, apenas o repúdio quando há uma obrigação muito grande e tenho que fingir uma escrita para caber no escopo do que é exigido. Mesmo assim, escrever, mesmo falseadamente, é sempre um privilégio frente a tantos outros trabalhos, os quais somos forçados assumir numa universidade pública, especialmente trabalhos administrativos. Escrever atas, comunicados, diligências e outros despachos burocráticos é inevitável, então estes, que odeio, procuro nunca protelar, pois me ver livre desse tipo de tarefa é melhor do que ser assombrada por elas. Sempre que possível escrevo pareceres poéticos, mas quando tenho que ser avaliadora ad hoc, obrigatoriamente tenho que me enquadrar a um tipo de linguagem bastante avessa à que gostaria de usar. A rigor, minha grande dificuldade é o arbítrio alheio em torno dos meus textos, não por serem descuidados (vi que várias impressões originais das vanguardas modernistas também tinham diversos erros de grafia), mas pelo desdém que recebo em função dos temas que escolho, a falta de gosto pelo meu estilo, a dificuldade que tenho para me enquadrar. Quem gosta de mim e tenta me ler acha que não me faço entender. Evito opiniões fechadas, representações, as pessoas não estão preparadas, apesar de Mallarmé ter morrido há mais de cem anos, para esse tipo de expressão. Desde antes de me deparar com Deleuze, já tinha acabado com qualquer possibilidade de juízo e isso deixa eventuais leitores perturbados.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar, desculpe o modo de dizer, mas é o que digo, é “um saco”. Não conseguimos ver erros quando estamos exaustos e, como estou há anos tomada por um esgotamento em relação a tudo isso, não tenho mais a menor paciência. Pior que nunca consegui resultados satisfatórios com revisores profissionais, sempre apareceram furos, alguns graves, os quais obviamente deixei passar por confiar e não revisar a revisão. Como professora e orientadora acabo dias e dias lendo os outros, a demanda tem sido tão grande que nos últimos anos não consigo cumprir com meus planos de leituras para a pesquisa. A escrita dos estudantes brasileiros, mesmo na pós-graduação, vem sendo, cada vez mais, uma calamidade pública. Isso nos obriga a constantemente apontar reformulações de frases e outras necessidades em relação ao burilamento de um texto. Reviso diversos pontos dos trabalhos de meus orientandos, mas em algumas situações solicito encaminhamento para revisores. Porém todas as vezes que relaxei na revisão e indiquei revisão profissional, sempre, em todos os casos, a banca apontou falhas. A pior situação, em função de eu ter tido um problema e ter passado hospitalizada, a falta desse trabalho em relação ao texto do outro acarretou na reprovação de uma menina na banca final do mestrado. É extenuante. Tive, na pós-graduação, a graça de ser revisada pelas minhas orientadoras, que mostraram vícios de linguagem e foram decisivas para que eu desenvolvesse uma escrita dita “acadêmica”. Minha graduação em artes plásticas nunca exigiu escrita, então, para que meus alunos não sofram o que sofri, faço muitas propostas de textos nas disciplinas que acabo tendo que dar aula, mas especialmente na graduação, não cobro formas de escrita para as quais os estudantes, que pensam mais visual do que verbalmente, não estejam preparados. Embora eu tenha lido e escrito compulsivamente na graduação (como nunca depois consegui na vida), agora que tenho centenas de pessoas como parâmetro, sei que isso não era normal. Por isso a disciplina Laboratório de Texto, proposta pela Élida Tessler para nossos currículos de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais e também oferecida para o curso de História da Arte, é importantíssima. Gosto de ministrar essa disciplina, aí se trabalha essa questão da “trava”, coisa que não tenho. Antes de ser alfabetizada eu ditava histórias para adultos escreverem. Depois que aprendi a escrever nunca parei de escrever histórias, sempre produzi muito, mesmo quando envolvida com muito trabalho doméstico. Hoje, passados quinze anos, a sensação que eu tenho é que até virar professora na universidade tudo era possível, depois que me tornei uma servidora pública, a prioridade com o público, com a instituição, com o outro, abafa totalmente qualquer projeto pessoal, artístico ou literário, de âmbito próprio. Tenho persistido, mas o mundo quer que você o sirva, ninguém se disponibiliza para que você possa deixar seu “gênio”, ou seja, seu desejo de engenhosidade à solta, especialmente quando você é pago pelo governo para ensinar e pesquisar algo que faça o mundo ficar melhor. No doutorado houve um momento em que todos os colegas se liam e contribuíam uns com os outros, era ótimo. Hoje não tenho esse tipo de parceria, ninguém dá conta do que eu escrevo, embora eu seja primeira leitora dos textos científicos do meu companheiro, mas ele não escolheu a carreira acadêmica, não tem a obrigação de ter seis artigos em periódicos A e B1 num quadriênio, que é o que é exigido no meu programa de pós-graduação. Tenho pedido a minha filha mais velha, que cursa comunicação e quer trabalhar com escrita, para que me leia. Cora desenvolve textos dentro do âmbito jornalístico, quando lê alguma coisa minha me instiga a produzir uma escrita legível, comunicativa e essa relação é muito boa, porém dependo de ela estar disposta. Eu, que absorvi muita Clarice, muita Hilda Hilst, tive um Catatau de Leminski aos treze anos de idade em minhas mãos, jamais tive a pretensão, desde minha adolescência, de me fazer entender. Aos dezesseis anos recebi a sentença, de editores amigos do meu pai, de que minha escrita era muito delirante e de difícil recepção. Acabei escrevendo academicamente porque era a única saída para escrever, no entanto, isso acabou sendo uma armadilha mortal, a qual, quanto mais luto para me livrar, mais me enredo. Hoje, quando acabo um texto, especialmente os de pesquisa, envio para todo o meu grupo, mas não é habito dos orientandos revisarem os textos dos orientadores, então fica na mesma. Percebo, indo a bancas e na minha própria experiência, que muitos orientandos não têm interesse pelo orientador, sequer o leem, somente quando é imposto. Na maior parte das vezes o que é absorvido de meus textos é o que performo, oralmente, nas minhas aulas, conferências e palestras. Não tenho controle de quem me lê, muitas vezes me surpreendo quando aparece alguém que leu meus textos, um orientando que me usa, um candidato que conhece minha produção, um seguidor louco. E há os leitores que acham cacos do meu pensamento em livros e revistas, sem a menor ideia do que eu realmente sou e quais escritos e poéticas compõem a totalidade do que crio.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende muito. Os poemas, sempre à mão, só digito depois, muitos ficam esquecidos em cadernos, guardanapos, agendas. Um ou outro, muito recentemente, escrevi diretamente numa postagem de rede social. Nunca escrevi diretamente em blogs, sempre colo e tenho um documento onde salvo fragmentos publicados. Tenho textos que nascem e se desenvolvem totalmente digitados, há estruturas anotadas à parte, especialmente as dos romances em andamento, que por eu estar presa a coordenações disso, daquilo e depois de mais aquilo, estão parados. O que mais me interessaria concluir é um romance, que intitulei Libido em Letra, cuja forma final são mil posts, simulando um blog anônimo, no qual uma dona de casa fala de sua vida sexual. Tenho apenas uns cento e trinta posts, falta muito e nos últimos anos, desde que fui impelida a assumir determinados encargos, não tenho mais conseguido escrever um post sequer, quando a meta era um por dia. Eu teria o trabalho pronto em mil dias. Porém eu não fui minha nos últimos dois mil dias e estar aqui respondendo esta entrevista, virando uma noite, foi postergar a redação de avisos importantes ao corpo discente de um dos cursos pelo qual sou responsável no momento. E tive que parar para levar e buscar e consolar e tanta coisa que serviria para um romance à parte e não uma entrevista. Mais uma vez, por conta das circunstâncias, não tenho regras e padrões. Se não for para assinar formulários tenho um prazer imenso com o manuseio de uma caneta. Escrita também é gesto e colocar o corpo numa escrita é vital. Não trato de modo diferente lápis, canetas e pincéis, todos são veículos do meu gesto, mesmo os eletrônicos. Porém sou analógica, da penúltima geração, então os instrumentos tradicionais sempre serão muito mais agradáveis para mim. Tenho um baú de escritos dos tempos em que ninguém tinha um computador em casa. Esse arsenal de poemas da juventude, fanzines, máximas e haicais, cartas, romances pueris, contos datilografados e manuscritos é um tesouro do obsoleto, que talvez acabe virando alguma coisa. Ganhei de quinze anos, da minha mãe, a datilografia e a encadernação do livro Ritmar, que escrevi à mão e depois, para ser encadernado, meu pai ilustrou. Guardo essa camaçada de papel com a esperança, essa maldita, de que um dia tenha tempo de mexer nisso. No computador tenho pastas e pastas com textos inacabados, alguns com imagens, para virar publicação no blog, porque outras coisas inadiáveis me engoliram. Há explicações astrológicas que me consolam, mas ultimamente estou pensando seriamente em mandar esses aspectos cerceadores para o espaço.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não acredito em ideias, especialmente quando carregadas de essencialismos. Há, sim, inspirações, forças que nos são dadas especialmente por nossos precursores, ou seja, os autores que produziram nossa paixão pela escrita e essa imensa vontade de escrever. Para começar, minha adolescência atravessou a literatura gaúcha, vivia com livros de Erico Veríssimo e Mario Quintana (que eu secretamente seguia pelas ruas de Porto Alegre) embaixo do braço. Meu encontro com Caio Fernando Abreu definiu parâmetros espirituais para minha vida. Com Deleuze, Bergson e Nietzsche aprendi a valorizar as intuições, eu já fazia isso, mas encontrei a validação do que eu sentia. Ideia não parece ser a melhor palavra paras essas fagulhas, esses espíritos fortemente enleados aos nossos, que dão sentido para o trabalho duro. Escrever não é para os descansados. Talvez esteja sendo o trabalho mais pesado que existe nos dias de hoje. Escrevemos de graça, muitas vezes pagando. Os editores dizem, quando temos que custear nossas próprias edições, que estaremos “investindo”. Mas sabemos que, no Brasil, nunca haverá garantia de retorno. Nem aos nossos próprios textos podemos garantir que voltaremos, como querer que os outros os leiam? Os comprem? Salvo pesquisas com contornos bem fixos, nada serve. Os textos são facilmente abandonados, as pessoas esquecem deles com muito mais facilidade do que esquecem as imagens. Quanto mais o “eu” de quem escreve contorna a banalidade da pessoa, mais fácil abandonar o texto. Sem esquecer de si, mesmo descrendo seu “eu”, ninguém cria algo que inspire outras pessoas. Para mim, quanto mais poético e mais fundo o escritor tratar do corpo, mais inspirador seu texto é. Por isso minhas referencias são malditas, condenadas, censuradas. Fui para dentro do arquivo da Hilda Hilst para entender como viver sendo esquecida, procurando se comunicar com fantasmas. Tenho aprendido muito com Bukowski, que criou toda uma estratégia para se tornar o que é. Sinto raiva de Anaïs Nin, que adoro ler, pois reclama da vida sem sequer imaginar o tranco de uma lavoura, a violência de uma sala de aula, a insalubridade de uma fábrica, os cerceamentos dentro das instituições. Ando atrás dos diários dessas mulheres. Quando descobri Katherine Mansfield, deu uma apaziguada, mas li muito menos do que gostaria dela. Maura Cançado também é um soco, um desespero, quero ler tudo, mas não consigo, há sempre alguém berrando por mim enquanto pego um livro, justo agora que estou com O sofredor do ver na mão. Agora, na medida do possível, vou ler os diários de Silvia Plath, vamos ver o que haverá. Adoro diários, ali registro dramas pessoais inóspitos, que jamais caberiam numa escrita aprazível. Mas também acabo escrevendo de tudo, até anotações de pesquisa e listas de coisas para não esquecer. Criamos hábitos para nos lembrar. Hábitos tendem a se tornar automatizações. Automatizados não criamos, apenas seguimos comandos. Já escrevi e pensei demais em torno do que é a criação e como nossa cultura estabelece uma identidade “criativa” para quem “produz conteúdo”. Eu fora!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Pqp. O que mudou foi esse @*#!%# do comprometimento e responsabilidade com coisas que tiram tempo para escrita, mesmo a escrita que diretamente apresenta resultados e análises de pesquisa. Se o mundo fosse perfeito, ficaríamos apenas nos anos em que somos aquilo que gostamos. A rigor tenho muito mais coisas para dizer ao meu eu dos tempos da faculdade, tão cheio de sonhos, descobertas, expectativas. Enquanto escrevia uma tese algo já estava condenado, a cobrança com o futuro da universidade, o investimento que havia em mim, isso já estava matando qualquer possibilidade de ser livre. Dar as costas para o que é a vida acadêmica depois de receber bolsa e tanto empenho por parte dos meus mestres não é ético. Na graduação, onde fazemos parte de hordas, ainda estamos em aberto, no doutorado já somos o que viemos ser, as teses comprovam o que cada um pensa, seus interesses, suas obsessões. Tudo o que eu diria para meu eu do momento passado em que escrevia a minha tese seria largar a tese, jamais assumir esse compromisso eterno que é o peso de um doutorado e aproveitar mais aquela idade das filhas. Porque teses podem ser escritas a qualquer momento, sem implicação com uma titulação e um programa, viver as fases distintas da maternidade não, o tempo que perdi longe das crianças, escrevendo uma tese, acabou. São processos irreversíveis. Uma criança que não aprendeu o que precisava na idade certa será um adulto com essa falha quase que para sempre, o trabalho de corrigir posteriormente é desgastante. Vamos supor que, se fosse possível, matematicamente seria comprovado que toda mudança no passado determinaria outro presente. Hoje não quero mudar o meu presente, especialmente porque ele é providencial a um futuro em que eu tenha recursos, como nunca tive no passado, para poder fazer arte. Mas, além disso que alguns amigos chamam minha “tornozeleira eletrônica”, o que mudou é que recentemente fomos compelidos, nas ciências humanas, a publicar artigos com orientandos. Escrever a partir do texto do outro muda tudo. Justo esse ano meu colega Luciano Bedin me convidou para escrever à três, eu, ele e a Larisa Bandeira, o que foi uma rica experiência, pois eu só tinha escrito um poema em duas mãos num momento idílico na minha tenra juventude, em pleno parque da Redenção, um lugar muito especial em Porto Alegre. Antes desse texto por onde trota um burrico e que tratamos da escrita, o Luciano me convidou para o livro Partituras do Silêncio, que ele organizou com o músico Edu Guedes Pacheco. Esse convite possibilitou um texto articulado a desenhos, chamei Riscos e ritmos, pois pude, pela primeira vez, mostrar uma escrita via glifos indecifráveis e não codificados, projeto que tinha desde os tempos da graduação.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma vez, já nem sei onde, escrevi que lemos os livros que gostaríamos de escrever e que escrevemos os livros que gostaríamos de ler. Foi quando eu achava que toda minha escrita, ao longo da vida, seria pura literatura. No caso da pesquisa, óbvio que isso não se aplica, somos constantemente levados a averiguar, por temas e conceitos, autores que não aprazem, mas que, no entanto, jamais podemos ignorar. Quando se pesquisa não podemos ter “gosto”, apenas persistência no objeto. Esse tem todo tipo de facetas, quer as gostemos ou não. É totalmente diferente quando se escreve livremente. Quando você escreve a partir de fontes dialogando outras abordagens você precisa considerar, com todas essas outras faces, esse número incontável de olhares sobre aquilo que se está tratando, caso contrário não é uma produção com valor epistemológico. Pensar todas essas perspectivas não está excluído na literatura, mas um poema, por exemplo, nunca se planeja e não precisa se comprometer com arquivo algum. A fonte de um poema não precisa ser organizada, catalogada, analisada. Se um poema não for publicado, se for lido por alguém que o encontrou num parque ou terreno baldio (fazia isso na minha adolescência, largava poemas para alguém que pudesse pegar), ele existiu de qualquer forma, enquanto palavra inscrevendo um instante. Mas todo resultado de uma equipe pensando material produzido por um tempo, por coletivos e grupos sociais, por um discurso, todo material sintomático do pensamento atual, temos obrigação de divulgar. Para mim, planejar a publicação é sair do foco da pesquisa e do trabalho que é traduzir o arquivo numa escrita. O esforço para publicar, para mim, exige um tempo que antes de mais nada precisa ser usado para criação. Por isso prefiro ir deixando as coisas acontecerem, a rigor vou seguindo convites, aceitando desafios, ocupando brechas. No meio do furacão, do assédio constante, de gente pedindo que eu leia e compartilhe suas coisas, da cobrança por textos burocráticos e artigos obrigatoriamente a serem submetidos, insistir em certos textos e me agrupar com colegas que estão produzindo o insubmetível, nossa, é um imenso respiro! Mas, no meu planejamento estratégico de sobrevivência, que inclui manter a saúde para ter o dobro de tempo que já vivi podendo ser dedicado ao que ainda não fiz, estou me proibindo de iniciar um projeto sem ter terminado todos os que estão em andamento. Especialmente o romance, também fragmentário, que estou chamado O magistério do raio, quero concluir, pelo menos antes de estar morta e como já estive quase morta algumas vezes, ficar viva para terminar tantas coisas agora suspensas é, como você provoca, uma “meta”. Então, projeto, no momento, é só de instalar estantes adequadas para organizar minha biblioteca. Tenho dois relatórios de pesquisa para concluir e o próximo projeto de pesquisa será um braço de uma das pesquisas atuais, o que trata da prisão e do encarceramento que, por ter aparecido produções em demasia, vou desenvolver com mais foco. O fato de estar presa num encargo que jamais teria escolhido, pelo bem da instituição sendo forçada a certos trabalhos, vai me dar bastante escopo para o que estou chamando de Rolo c’Opressor. É um projeto, ainda só no esboço, mais visual do que escritural, mas, como talvez eu não tenha subsídios para a realização da obra, que envolve grandes cilindros abertos a interação para performers, pode ser que nunca deixe de ser apenas algo escrito.
Por fim, queria ler um livro sobre o projeto #comoeuescrevo, afinal, José, aqui tens um riquíssimo material de pesquisa, com muitas possibilidades analíticas. Nas minhas incursões ao teu rico arquivo, já percebi padrões, singularidades, desvios. E ainda nem li todos, fui nas entrevistas dos meus conhecidos (leio e escuto suas vozes) e umas tantas entrevistas aleatórias, diversificando as profissões. Logo depois que recebi o teu convite, fui chamada para ser leitora e interlocutora de doutorandos lá da Psico Social, coordenado pela Rosane Neves. O teu site e entrevistas estavam sendo usados e referidos no texto que me enviaram para comentar. Muitas sincronias! É um prazer escrever essa entrevista, responder as tuas perguntas é um exercício que nos obriga a lembrar que, por atrás das máquinas institucionais que a maioria dos entrevistados é, há uma pessoa.