Paloma Franca Amorim é escritora, autora de Eu preferia ter perdido um olho.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo, preparo com cuidado meu café-da-manhã, gosto de café preto. Costumo comer torradas com manteiga, me habituo ao gosto delas e isso cria uma base boa para surpresa do paladar quando, eventualmente, tem pão recém-saído do forno ou tapioquinha.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu carrego dois vetores opostos nesse sentido da produtividade, sou uma pessoa muito diurna, gosto do sol, acordar cedo, ler e escrever pela manhã, mas também gosto da noite, sou muito convocada pela rua e pela boemia – o que para mim tem também a ver com o meu trabalho como escritora, porque é nesses momentos de comunidade e troca que eu apuro minha escuta para narrativas que não partem de mim. A manhã, portanto, é um momento mais solitário de criação, tem a ver com introspecção, atitude reflexiva, silêncios e mais silêncios. A noite é o burburinho, a polifonia, também a mobilização de uma consciência outra, uma sensibilidade outra, para viver da forma mais intensa a partilha de trajetórias cotidianas, ditas comuns, que contêm belezas e proposições transformadoras. O problema é que manhã e madrugada estão coladas uma na outra, então não tenho corpo físico, biológico mesmo, para ser produtiva nessas duas etapas de minhas vinte e quatro horas. Se eu invisto em uma não posso investir na outra, se acordo muito cedo para aproveitar as primeiras horas matinais, tenho sono no começo da noite. Se eu me lanço à madrugada não consigo acordar para escrever às seis. Talvez minha rotina como escritora seja a busca incessante pelo equilíbrio entre essas partes que me partem. Ou talvez o tempo não exista.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, nem sempre materiais que servem a um destino de publicação (quase nunca, é verdade). Não tenho metas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha pesquisa como escritora é prática, ela se dá através de minhas caminhadas pelas ruas, por meu bairro, por minha cidade, por minhas memórias. Escuto pessoas, gosto de saber de suas histórias, sinto prazer em escutar outras vozes falando de si. A partir desse processo de investigação, talvez aproximação e alteridade sejam palavras melhores porque não pressupõem a objetificação do interlocutor, eu procuro anotar ideias, palavras, sensações, esboços metafóricos, depois chego em casa, sento no computador e tento traduzir essas materialidades e intuições para o formato literário que me ocorrer – é comum que acabem se transformando em prosas poéticas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como autora negra eu cumpro um duplo padrão de exigência semântica, gramatical e criativa que me foi exigida desde a infância pela educação que tive, em uma casa de mulheres negras que sabiam que tínhamos de ser duas vezes melhores para poder ganhar as bolsas de estudos escolares, entrar em universidades públicas e ingressar no mercado de trabalho. Isso foi crueldade social em minha educação, não acredito no meio meritocrático pelo qual minha geração ainda teve de passar, mas de certo modo eu ressignifiquei essa instância opressiva de exigências e me tornei uma boa escritora. O que chamo de boa escritora: ora sou excelente, ora sou razoável, ora cumpro vacilos tenebrosos. Isso para mim conforma meu trabalho, o fato de hoje eu ter certeza da qualidade estética dele sem abrir mão da minha humanidade.
Quando eu travo, paro, respiro, vou nadar no clube perto de casa, vou trabalhar em outras coisas que também me dão sustento, vou pro samba, bebo uma cerveja, conto uma piada.
Acho que os leitores mais antigos que me leem no jornal onde escrevo semanalmente têm uma única expectativa diante de minhas crônicas e contos: não que sejam geniais ou únicos, mas que sejam honestos. É só a isso que tento corresponder: a expectativa da verdade.
Medo eu não tenho. De nada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Mostro para a Maria Fernanda de Barros Batalha, dramaturga e prosadora que mora comigo, e com quem fui casada ao longo de quase cinco anos. Ela é atualmente minha primeira interlocutora pelos motivos de nosso amor, amizade, e pela leitura única que faz dos textos, baseando-se também em sua apurada vivência com as palavras como autora teatral.
Minhas crônicas e contos do jornal eu envio para meu editor e amigo, o paraense Edir Gaya, que faz a revisão (quando necessária) e opina sobre alguns aspectos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Péssima relação. Tenho amigos escritores que escrevem já diretamente no celular, eu seria incapaz de fazer isso. Ando com um caderno na bolsa – o dessa vez tem páginas que parecem de papel de padaria, de guardar pão, isso me anima – e a partir do que escrevo nele posso me haver com o desdobramento textual no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do mundo. Elas já existem, eu só ponho a antena num modo aberto para captá-las e fazer a colheita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou muita coisa, os temas mudaram, a abordagem formal. Mas eu não diria nada a mim mesma, acho bom que mude, acho bom que o amadurecimento se dê sem as restrições da previsibilidade. Se eu ofertasse um conselho à jovem eu, que começou a publicar aos dezoito anos no jornal, iria acabar com toda a graça da busca e da travessia. Eu não me perdoaria.
Sinto que estou adensando ao longo dos anos a experimentação sobre a dilatação do tempo nos meus contos e crônicas. Eu quero que minha literatura seja uma máquina do tempo. Esse é um pressuposto ético indígena que carrego no sangue e nos procedimentos criativos de minha vida literária e cotidiana. Para alguns grupos étnicos que conheço da Amazônia esse sistema de regulação do tempo ocidental é um negócio sem sentido, o próprio conceito de temporalidade sequer existe. Isso me interessa como camada discursiva em minhas prosas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
A Ana Maria Gonçalves fala uma coisa parecida com essa sua pergunta: que nós devemos escrever os livros que gostaríamos de ler. Eu acho isso bonito e emancipador no sentido da formulação criativa que todas as pessoas do mundo são capazes de tecer. Todo mundo tem uma história para contar, infelizmente umas são mais valorizadas que as outras, então eu quero ler livros de histórias que não foram valorizadas pelo cânone ocidental. Quero ler livros que não nascem no papel e sim arraigados na oralidade. Quero que haja livros para que as pessoas possam aprender a ler com prazer. Quero achar nas estantes, nas salas de aula, nos olhos das pessoas, cada vez mais, autorias afroindígenas, descentralizadas, trans, feministas.
E quero escrever um livro sobre a história das mulheres da família da minha mãe. Todas negras, pobres, batalhadoras, profundas, contraditórias e belas, avassaladoramente belas.