Pablo Simpson é poeta e professor de Literatura da UNESP.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pra mim, o contexto da pandemia bagunçou bem a rotina, como se pode imaginar. Levava cedo as crianças à escola. E tinha uma rotina de trabalho regular estrita e pouco imaginativa. Costumo me vestir pra isso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Fico tentado a dar uma volta. Penso, por um lado, nesse “trabalhar melhor” que vincula tão diretamente a escrita criativa a uma dimensão de trabalho, que é algo que se construiu na leitura crítica da poesia no século XX. Ao mesmo tempo, é como se ela pudesse ser o “trabalho melhor”, ao passo que muitas vezes, para mim, ela é o pior trabalho. A ponto, aliás, por vezes, de ser relegada às horas vagas, ao quase nunca, à paralisia, àquelas horas, portanto, em que não há grande coisa a fazer. E é aí o momento de enfrentar o sujeito que no meu lugar resolve dizer “eu”. E que resolve dizer “eu” com toda a sua dimensão de exibicionismo frustrado, de tagarelice, mas também com o enorme desejo de ser ouvido, não apenas pelo outro, mas por esse “eu mesmo” que aproveita para investigar-se.
Feita a volta, acho que não tenho ritual ou preparação e cada vez mais me vejo num fluxo de textos, das redes — o whatsapp, o twitter, o facebook — do trabalho acadêmico, dos emails e também desse ritmo e desejo estranhos, que volta e meia surgem, e que são os da poesia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
No início da pandemia, escrevi em duas semanas um livro que será publicado em 2021, cujo título provisório é O Tio da caminhonete, e que se inspira em Alberto Caeiro. Gosto de pensar que tive as minhas noites triunfais. Fora disso, não tenho objetivos diários. Passo muito tempo incomodado com o que escrevo. A meta é evitar os incômodos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tendo a reescrever os textos, solicitado quase sempre por inquietações rítmicas. Não me faz mal, aliás, mudar um adjetivo ou algo assim por outro que signifique outra coisa, mesmo o contrário, em virtude da sugestão rítmica. Digo/escrevo isso com o temor de parecer algo de um preciosismo formal, embora não seja. Mas não consigo explicar, talvez não queira. Preciso dizer num certo ritmo, com pontos e vírgulas, interrupções, lacunas. Enquanto não chego a isso, o texto fica girando. A “pesquisa”, para mim, está nesse lugar. Ela é a escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não lido. Prefiro não pensar a respeito. E, por vezes, não penso mesmo, e nada acontece. Com expectativas é outra história. É sempre difícil, pra mim, pensar a quem, para quê, para quando se escreve. Com essa dimensão de presente muito brutal à qual nos habituamos, em virtude dos tempos de circulação instantânea de notícias, esse “quando” que é o agora, que é o agora ininterrupto de acontecimentos e comentários sobre o acontecimento, com variantes, deslocamentos, retorno à cena inicial, etc., esse “quando” parece projetar sobre a minha escrita um sem-número de fantasmas. Porque sempre me pareceu algo da natureza do texto literário, ainda que respondendo a esse “quando”, na medida do possível escapar a ele. Acho que há ansiedade sobretudo aí, uma certa ansiedade da fuga, sem que essa fuga pareça uma falta de resposta.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu tendo a revisá-los consideravelmente e acho ótimo, muitas vezes, que o texto saia logo, para interromper o “processo”: irresistível colocar aspas e sugerir Kafka. Antes dessa interrupção, por assim dizer, definitiva, compartilho com os amigos. E é nesse processo de dividir com eles que o texto costuma receber as suas modificações mais profundas. Pelas leituras que fazem, ou pelas leituras que projeto neles antecipadamente, e que me fazem cortar e reescrever.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo exclusivamente no computador. “Deletar” é um verbo para mim fundamental e impossível de conjugar diante de uma folha de papel, cujos rabiscos e rasuras tendem a deixar um rastro de caminhos sugeridos, refeitos, esboçados, que não me interessa ver/rever. O gesto, além disso, de amassar o papel ou rasgá-lo, nos momentos mais dramáticos, não me faz bem. A escrita no computador tem ainda a vantagem de estar “atrapalhada” por outras escritas, como já indiquei. Sinto que isso em grande parte desritualiza a poesia, a minha, pelo menos. Penso numa pergunta semelhante feita a um escritor modernista, que dizia gostar de tomar o seu uísque enquanto escrevia. Preparar-se para o uísque e a poesia. Dirigir-se à cozinha, sacar o copo, acrescentar gelo, servir-se, deslocar-se até a poltrona sob o abajur, abrir a caderneta, que até então estivera fechada na mais recôndita gaveta. Não me vejo aí.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tenho só ideias emprestadas. Reelaboro algumas coisas noutros lugares, com o que consigo projetar e esconder de mim mesmo. Muitas vezes o que escondo são as leituras feitas, para ter a certeza provisória de que as ideias são minhas e, com isso, me sentir impelido a escrever. Mais recentemente, aceitei que escrevo junto, que escrevo com as leituras que fiz, com os amigos com quem conversei. Sigo escrevendo eu mesmo, com o meu nome e o meu “eu”, mas gosto de encontrá-los, de poder prolongar conversas, desdobrar imagens, testá-las, respondendo ao que eles mesmos escreveram. Uma experiência que me parece cada vez mais indissociável da escrita poética no século XX, sobretudo com as ferramentas tecnológicas, nesse sentido, é certa confrontação textual. Não me parece despropositado ver se alguma aproximação que fiz, em algum texto, já não foi previamente esboçada por outro escritor. Ou, ao contrário, partir de algo que tenha à minha frente e extrair, pulverizar, fecundar âmbitos para os quais esses textos não foram previstos, porém com a economia que muitas vezes têm.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em grande medida, para mim houve uma desritualização. Quando eu era jovem, acreditava que a palavra escrita era algo excepcional. Tive poucos colegas na escola que escreviam, para os quais a experiência ou a relação consigo mesmo passava por esse desdobrar que é a escrita. Na universidade, embora eu partilhasse do contato com escritores de ficção e poesia — Vilma Arêas, Roberval Pereyr, Marco Catalão, Pedro Marques, Ricardo Lísias, Cristina Betioli, Kevin Kraus e tantos outros — ainda sentia haver um processo de ritualização pela menção frequente, num curso de Letras, aos escritores renomados. O livro era um desses aspectos que ritualizava. Os textos, os melhores textos, por assim dizer, estavam neles. Era preciso procurá-los na biblioteca, levá-los na mochila para casa, não anotar nas páginas, devolvê-los intactos ao panteão onde ficavam guardados.
Não gostaria de retornar a esse tempo, embora o processo de ritualização do livro seja algo que preserve espaços de recolhimento e solidão que talvez tenhamos, em parte, perdido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever teatro. Cada vez mais me interessa o texto que é feito para ser dito, com os ritmos próprios desse dizer. Com o acesso a redes de compartilhamento de vídeo, podcasts, youtube, me vejo às vezes transcrevendo diálogos, com toda a dimensão aleatória que possam comportar, com interrupções, hesitações, mudanças de assunto. Queria partir daí e de uma das figuras centrais da fala pública em nossos tempos, que é o pastor. Algo que pudesse reverberar as peças maravilhosas do Wole Soyinka do The Trials of Brother Jero. Escrever/reescrever esse teatro, sabendo que ele existe, mas que não existe como eu gostaria que existisse, com alguns outros ritmos e preocupações que são, em certa medida, meus.