Ozeias Alves é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bem, houve um tempo em que meu dia só começava lá pelas duas da tarde. Acordava com uma espécie de festival de heavy metal na cabeça, a boca com gosto de milk-shake de jiló com cheetos; aí eu ficava deitado na cama tentando reconstituir os fatos da noite passada ou imaginando como é que eu vim parar em casa, se sozinho ou acompanhado de alguém. Hoje em dia eu tenho levantado da cama relativamente cedo, umas 8, 9 da manhã, ás vezes com uma leve ressaca, ás vezes com a sensação de estar perdido como se eu não soubesse o que fazer com um dia inteiro. Eu poderia olhar para o céu e dizer: Deus, obrigado por mais este dia ou qualquer coisa assim. Mas tudo o que faço é me servir de um gole de café e acender o meu cigarro- esse é basicamente o meu café da manhã-, daí eu vou pra varanda dos fundos e fico olhando para a antena parabólica no telhado do vizinho; passo boa parte da manhã assim: tomando café e fumando, até que eu me canso de beber café e fumar e me levanto pra seguir todo aquele ritual de higiene pessoal que ás vezes deixo passar batido, depois vou pra cozinha onde há sempre uma pilha de louças do jantar me esperando.
Raramente acordo disposto. Quase nunca quero me levantar realmente da cama. Mas enfim, é assim que começa meu dia. Espero um dia acordar e, como se estivesse num filme, me espreguiçar com um sorriso largo enquanto ao fundo toca Feeling Good, da Nina Simone.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Varia muito. Tem época em que as palavras e as ideias fluem melhor bem de manhãzinha, quando a maioria das pessoas ainda não acordou e o único barulho ao meu redor é o som dos pássaros que vem da janela que costumo deixar aberta, uns passos aqui, outros ali na calçada, o trem de carga passando… Ás vezes gosto de escrever de madrugada, quando já estão todos dormindo, o ruído dos ventiladores, os roncos vindos dos cômodos, o choro de algum recém nascido na ala de maternidade do hospital aqui ao lado, o mesmo em que há 25 anos eu nasci. Mas também há períodos em que no meio da tarde, em meio a toda agitação da casa- que também é uma espécie de oficina onde minha avó costura e onde meu tio pinta faixas, constrói toldos e outros tipos de armações- as palavras me vem como uma enxurrada, então eu sou obrigado a parar de fazer seja lá o que estiver fazendo e venho correndo pro computador como alguém que, já sentindo a inevitabilidade do vômito, procura algum lugar onde possa vomitar sem deixar um rastro de sujeira.
Quanto a ritual de preparação para escrever, não tenho. Sei lá, gosto sempre de ter um copo de café e um cigarro por perto. Mas fora isso, apenas sento, cruzo as pernas, me curvo diante do teclado e pronto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do que estou escrevendo. Se é um conto, por exemplo, e eu sei que ele vai ganhando uma proporção maior do que eu havia imaginado, tendo a escrever até certo ponto pra coisa não ficar arrastada, maçante, e procuro dar uma respirada, digerir melhor as ideias que me vem, então eu me levanto, vou fazer outras coisas e volto mais tarde, ou no dia seguinte ou dali a uma semana, mas sempre com o conto na cabeça, como se eu o estivesse gestando, saca?
Acho esse lance de meta de escrita uma coisa meio forçada. Quer dizer, acho que tudo tem seu tempo, sobretudo a escrita. Nunca acordei pensando: hoje tenho que escrever pelo menos mais oito versos ou duas estrofes. Deixa de ser literatura pra virar apenas datilografia, psicografia de coisa alguma. Palavras são como flores da meia noite, desabrocham ao seu tempo, mas se alguém estabelece uma meta diária, semanal ou mensal e o faz sem perder a qualidade, ótimo, só que comigo essa coisa até agora não rolou e creio que nunca rolará.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu raramente começo alguma coisa a partir de anotações que tenha feito, porque muito do que escrevo não foi premeditado. Não sei se “premeditado” é a palavra adequada, mas quando vou escrever alguma coisa, na maioria das vezes, começo do zero, como num jogo de improviso onde as ideias, imagens e palavras vão surgindo no decorrer da escrita. Nem sempre é assim, claro; algumas vezes uma ideia me vem e aí eu deixo ela amadurecer mais um pouco na minha cabeça, o que pode durar algumas semanas ou meses, até que um dia, quando vejo, estou diante do computador escrevendo, escrevendo, escrevendo…É quase um trabalho de parto, e da mesma forma que eu experimento a alegria de ver alguma coisa nascer, posso sentir o seu oposto, quando vejo tanto trabalho resultar numa coisa natimorta. Quanto a pesquisas, acho que nunca escrevi algo que realmente requeresse um aprofundamento acerca do assunto, o que não significa que eu não vá ao google de vez em quando procurar sobre a anatomia de determinado inseto ou se determinada cidade fica realmente em determinado estado de um certo país- quando não a forma certa de escrever determinada palavra que por alguma razão eu simplesmente não consigo escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não muito bem. Quando me deparo com o tal bloqueio criativo, é como se de repente, enquanto eu dormia, alguém tivesse vindo e roubado tudo de mim. Porque sinto que o que me compõe são as palavras, que não sei fazer outra coisa além de escrever, por mais que o que eu escreva seja ruim ou já tenha sido escrito ou não vá fazer diferença alguma pra quem lê. Já passei horas na frente do computador olhando o cursor do Word piscando, piscando como se me desafiasse zombeteiro: e aí, otário, tá vazio? As palavras simplesmente vão embora, e com ela a minha essência. Sou então um zumbi. Não sinto mais nada e ao mesmo tempo sinto raiva, frustração, penso que é o fim do mundo e que nunca mais vou conseguir escrever mais uma linha sequer e que tudo o que escrevi não passou de baboseira. Aí penso que devo me apaixonar de novo. Ou encher a cara, ou fazer qualquer coisa que me faça sentir vivo outra vez, essas coisas. Nunca trabalhei em nenhum projeto longo, seja porque nunca me senti preparado, seja porque nunca me foi proposta qualquer coisa do tipo, então nunca experimentei esse medo. Do mais, não encaro o que faço como algo profissional, mas como necessário. Minha “literatura”, com aspas mesmo, é de subsistência, e a procrastinação é uma praga que aos poucos vou aprendendo a combater.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Está aí uma coisa que eu tenho trabalhado ultimamente. Antes, eu terminava de escrever um texto e o deixava de lado. Não sei bem a razão, mas toda vez que eu relia um texto pra dar uma lapidada, acabava odiando tudo aquilo que havia escrito e que no momento em que escrevia eu achava uma boa ideia ou até mesmo honesto e bonito. Já tive textos que, ao reler, tentava consertar uma coisa aqui e outra ali e no fim das contas acabava apagando tudo, porque no processo de lapidação, por descuido meu ou por deficiência congênita do texto, achava tudo horrível e descartável. Ás vezes me deparo com algo que escrevi há 2 ou 3 anos e acho a coisa tão fantástica e maravilhosa que me pergunto: como é possível que eu tenha escrito uma coisa dessas? Outras vezes ocorre o contrário, é claro, então eu penso: nossa, cara, por que você guardou isso? No fim das contas eu acho que sempre precisei de um certo distanciamento de quem eu era na época com o que sou agora pra poder analisar, trabalhar melhor os meus textos. Sempre me senti inseguro em relação ao que escrevo, quer dizer, por mais que a escrita seja o meu esqueleto, fica sempre aquela coisa: será que isso é algo legível? Que o que escrevo, além de uma maneira de não pirar de vez, é algo que pode ser considerado literatura, publicável? Então tem sempre alguém pra quem eu mando um poema ou conto ou qualquer coisa que tenha escrito, esperando não uma aprovação, mas uma opinião- e desde já peço desculpas a essas pessoas pelas enxurradas de textos que já mandei e que ainda irei mandar. (risos)
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase tudo que escrevo ou é no bloco de notas do celular ou no computador. Vez ou outra eu rabisco num guardanapo ou num caderno que comprei recentemente e que serve como uma espécie de diário/“rascunhódromo”, mas sei lá, os cadernos me remetem aos tempos de escola e eu tenho horror àqueles dias. Graças a internet pude conhecer pessoas incríveis que escrevem coisas fantásticas e com elas trocar ideias, aprender um pouco mais, não fosse isso jamais teria conhecido sujeitos como Rafael Escobar, que dispensa apresentações, Maikel de Abreu, que conheço desde os tempos do Bar do Escritor, uma comunidade de escritores da época do Orkut, Allanna Menezes, uma poetisa que só lendo mesmo pra você entender de qual é, tem o Rafael Iotti, que também é bacana, Alessandra Rech (a esta imensa gratidão) Tarciana Ribeiro, que criatura, que criatura! Manuela Dionisio, uma portuguesa maravilhosa que também escreve embora raramente publique seus textos e que se tornou uma grande amiga e me apresentou Al Berto. Tem uma porrada de pessoas bacanas que não fosse a internet eu jamais poderia conhecer. Eu queria poder citar e agradecer todo mundo que conheci e que de certa forma me ajudou ou me presenteou com sua escrita, mas a lista é grande, então desde já fica a todos a minha mais sincera gratidão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Uma vez uma garota me mandou uma mensagem perguntando de onde é que eu tirava aquelas coisas que eu escrevia. Respondi: acho que são os espíritos. Ela respondeu: você é médium? Achei tanta graça que acabei deixando baixo, acho que até hoje ela pensa que eu psicografo meus textos. É que na verdade, boa parte das coisas que escrevo simplesmente vem, como se eu ás vezes estivesse sintonizado em alguma estação fantasma que emite essas ideias, palavras. Uma hora eu estou lavando vasilha quando de repente me vem uma frase, e dessa frase vem a ideia de um conto. Ou então eu estou no bar tomando uma cerveja observando as pessoas e de repente me vem um poema. Sei lá. A coisa simplesmente vem e pronto. E creio que a leitura seja sempre um dos melhores modos de manter a mente ativa, aberta a novas ideias, coisa e tal. Acho que é isso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sinceramente, creio que não muito; no sentido de que eu apenas sento diante do computador ou pego o meu celular ou a primeira coisa que estiver ao meu alcance e me permita escrever e pronto. Talvez hoje em dia eu tenha um pouco mais de cuidado com o estilo, o ritmo, essas coisas que na época eu não tinha a menor noção, até porque, quando comecei a escrever foi porque pensei que estava ficando louco de verdade. Embora tenha se passado tanto tempo desde que escrevi um poema terrível sobre uma camponesa no ensino fundamental e outro sobre guerra e paz cheio de rimas forçadas, não sei se o que sou hoje poderia ajudar aquele que fui há muitos anos. Claro que aprendi muita coisa, sendo boa parte na base da pancada, seja da vida, seja das pessoas, mas a questão é que mesmo que houvesse uma forma de eu me encontrar comigo mesmo no princípio dessa jornada que é a escrita, diria: cara, isso tá horrível, mas ok, continue assim, apenas leia mais, largue esses romances mamão com açúcar; não enlouqueça, preciso de você lá na frente. E seja honesto, não tenha medo das palavras.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Primeiramente, o meu maior e mais ambicioso projeto é dar um jeito na minha vida. Há dois anos eu pensei que não estaria aqui hoje, mas aqui estou. E hoje penso que daqui a dois anos não estarei, e espero poder estar para poder dizer: há dois anos pensei que… Depois, não sei; penso em fazer o supletivo pela terceira vez, encontrar um bom psicólogo e diminuir a bebida e outros excessos. Tenho um documentário sobre os idosos do asilo aqui da minha cidade em mente e espero um dia poder realiza-lo. Quero continuar escrevendo, escrevendo, escrevendo e ver até onde isso vai dar. Espero que a Allanna Menezes possa publicar outro livro, seja de poemas ou contos ou quem sabe um romance. Ela é fantástica e sabe disso. Do mais, vamos vivendo. E que a terra nos seja leve!