Ovídio Poli Junior é escritor, autor de O caso do cavalo probo (novela satírica).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos últimos tempos venho tentando reservar as manhãs para escrever. Como sou editor e curador de um prêmio literário (que envolve entre outras coisas a construção de um programa de residência para escritores), nem sempre isso é possível. Costumo dar cursos e oficinas de criação e participo de eventos e festas literárias, o que é muito estimulante mas desorganiza um pouco o meu tempo. Daí fico remando para limpar a área com outros compromissos e voltar a mergulhar na escrita, mesmo que por tempo breve.
Quando consigo ficar em paz pelas manhãs procuro não sair de casa, fico como um caramujo sob ameaça. Viro uma espécie de ermitão ressabiado, um Jeca Tatu com formiga na bunda. Se estiver com preguiça tomo um banho, coloco uma roupa confortável, fico descalço, passo perfume. Se estiver endiabrado escrevo de pijama mesmo, logo depois do café: a felicidade é maior quando o sentimento de urgência é muito grande.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de tomar o café da manhã e logo em seguida ouvir música enquanto escrevo. Gosto de jazz e blues (Thelonious Monk, Count Basie, Chet Baker, B. B. King, Eric Clapton). E também música clássica: Mozart, Vivaldi, Beethoven. Chico Buarque e Tom Jobim sempre caem bem, pois a letra não me incomoda. A música me anima e me acalma: instaura uma relação mais plena e menos sufocante com o tempo e com o espaço.
Não vejo as notícias, deixo as desgraças para a segunda parte do dia. O segredo é não atender telefone e não ligar TV, redes virtuais, celular, essa parafernália toda que nos faz esquecer de existir. E nunca (nunca!) atender aos evangélicos que batem à nossa porta: já me estragaram bons dias com a sua cruzada medieval. Se tivesse uma espingarda de chumbinho, não sei o que faria para espantar esse polvo que tem muitas pernas e “tentáculos” e embora não saiba voar consegue ser mais pernóstico que os pernilongos!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como para mim é difícil estabelecer uma rotina, escrevo em períodos esparsos e concentrados. Costumo abandonar temporariamente outros afazeres para concluir um projeto breve.
Não trabalho com metas: para mim isso não funciona. Não sou metódico, cartesiano: o que me impele a escrever é a vontade de dar forma ao que imaginei e a necessidade de concluir o que vislumbro: isso se cumpre às vezes em poucos dias, às vezes leva anos e muitas vezes não se cumpre.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa e a compilação coexistem com a escrita: passo continuamente de uma coisa a outra, são dimensões que se complementam e também se negam e não vejo nenhum problema nisso.
Como disse, não sou muito metódico, escrevo movido pelo instinto e pela inspiração (ou, em outras palavras: movido pela intuição, por um impulso, uma tensão e uma inquietação que não consigo ou talvez nem queira compreender direito).
Mas sei que há uma ordem e uma profunda organização em meio a esse aparente caos. É como minha mesa de trabalho: posso até arrumá-la de vez em quando, mas se mexerem na minha bagunça me perco (daí fico acabrunhado durante alguns dias ou mesmo furioso enquanto não recuperar a sintonia com tudo isso).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca consegui lidar com as travas da escrita e com a procrastinação: sempre foram mais fortes que eu. Mas nos últimos tempos a vontade ou a necessidade de escrever aumentaram tanto que começo a ignorar tudo isso: se não escrevo, fico doente. Há poucos anos – sobretudo após a morte de meus pais, que se foram em um intervalo de três meses – desenvolvi um processo de ansiedade que às vezes se acentua bastante. Essa doença do espírito (ou “mudança de postura”, se me permitem o sarcasmo) está sendo fundamental. Costumo agora fazer projetos curtos ou dividir os projetos longos em etapas. E a ansiedade diminui ou se esvai se paro de pensar na morte da bezerra e simplesmente me lanço ao trabalho como um bom vaqueiro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Borges dizia que os escritores publicam para não terem de passar a vida lutando com os rascunhos. Reviso três ou quatro vezes, mas sempre deixando o texto guardado durante um longo período entre uma revisão e outra. Alguns textos ficam um longo período hibernando na gaveta. Tenho um conto de uma página que escrevo há vinte anos e nunca publiquei: é a história de um homem que passa a vida inteira diante de uma encruzilhada e só sai de lá pouco antes de morrer.
Acho que não publiquei quase nada sem mostrar para a Olga, minha companheira. Vivemos juntos há mais de vinte anos, mas já éramos amigos dez anos antes. Foi ela quem me convenceu a participar de prêmios e concursos. Eu tinha uma relação sacra com a literatura e não admitia nada que a maculasse (publicar implicava em inserir o texto na própria dimensão que ele criticava e sobre a qual se debruçava: a tinta, a gráfica, o trabalho dos operários, a circulação, os lançamentos, os interesses todos, a desigualdade e a hipocrisia inscritas nas relações sociais).
O engraçado é que nos últimos quinze anos saí desse claustro e fiz justamente o contrário: depois de lecionar literatura em uma universidade em São Paulo, reuni milhares de escritores em Paraty em mesas de debate, saraus e lançamentos, sem falar do programa de residência e do prêmio literário que criei, dos ensaios e resenhas que escrevi e dos mais de cinquenta livros de outros autores que editei pelo Selo Off Flip.
Pra dizer a verdade, passado esse tempo todo, cheguei à conclusão de que não gosto muito do meio literário: gosto mais das pontas… Sempre fui marginal e não faço apologia nenhuma disso. Sou apenas um caipira que fez doutorado na USP.
Acho que agora estou chegando a um equilíbrio. A literatura não é sacra e nem profana: é apenas arte e engenho humano. Às vezes vaidade, às vezes superação, às vezes impotência, às vezes ostentação.
Organizar os eventos acabou me mostrando uma triste realidade. Quando você está com recursos e energia para alavancar os projetos, é tratado como o Conde de Monte Cristo. Quando está por baixo ou começa a desmontar essa engrenagem, volta a ser um Edmond Dantès. Claro que há gratas exceções: fiz poucos, porém grandes amigos nesse período. E isso valeu mais que tudo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto de escrever em algum papel especial ou em cadernos de capa dura, se possível sem pauta. As pautas me incomodam profundamente – como se fossem grades aprisionando o texto. Mas recentemente comecei a escrever em cadernetas pautadas, para usar depois: as anotações ficam reunidas em um só lugar e isso ajuda bastante… O problema é saber em qual caderneta uma determinada coisa está! (risos)
Só passo essas notas para o computador quando as coisas se avolumam. E lá ficam, até que me lembre delas ou seja impossível esquecê-las completamente.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Considero o acaso uma das principais dimensões do processo literário. O texto que mais gostei de escrever (O caso do cavalo probo) nasceu de uma frase solta que ouvi de um homem do povo em uma entrevista divulgada por um telejornal. Procuro estar atento às músicas, às falas, aos gestos casuais e às frestas do cotidiano que nos revelam aspectos muitas vezes insondáveis. Ultimamente venho registrando fragmentos de alguns sonhos mais simbólicos e que às vezes vêm como narrativas prontas. O que mais me atrai nos sonhos não é exatamente o enredo ou sua interpretação: é a arquitetura insólita e a sobreposição temporal.
Outra coisa que me estimula é a leitura: contos, romances, textos teatrais, neurologia, cosmologia, biografias de cientistas e escritores. Ler ou reler os clássicos é algo ainda mais prazeroso. E, sempre, comprar papéis, cadernos e canetas especiais (de escrita fina). Fui torturado por minha mãe e por uma professora para deixar de ser canhoto: escrevo com a mão direita, mas de forma tão tensa que as letras só destravam com escrita fina.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quase tudo mudou, mas no âmago ainda subsiste uma certa visão romântica do escritor. Visão que, claro, vou desbastando com o tempo e com o tempo ajudo a destruir, mas que também acalento e protejo.
O que eu diria a mim mesmo se pudesse voltar lá atrás? “Vai, Ovídio, ser besta na vida!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho dois romances a escrever e vários outros projetos. Sou uma espécie de iceberg, que com o tempo vem diminuindo com o degelo das calotas polares.
Gostaria de ler algo escrito por Deus, mas infelizmente ele ainda não encontrou editor. Ou talvez ele seja um procrastinador.