Oscar Nestarez é escritor, autor de “Bile negra” (Empíreo, 2017).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
A organização depende do período em que me encontro em termos de volume de trabalho. Sempre tento iniciar a semana com um plano mais ou menos definido de tudo o que terei que fazer ao longo dela, mas sei que as coisas podem mudar de um momento para o outro. Em todo caso, procuro respeitar sempre o “horário comercial”: começo a trabalhar por volta das 8h, 8h30 e dificilmente vou além das 18h (salvo em casos excepcionais).
Isso posto, minha metodologia é mais ou menos a seguinte: no sábado ou no domingo anterior à semana em questão, consulto a minha agenda de entregas – nesse aspecto o calendário do Google funciona maravilhosamente pra mim, porque está conectado a celular, laptop, etc. Não tem como eu escapar de um compromisso. Então, depois de analisar a agenda de entregas, distribuo mentalmente as minhas tarefas, tentando estimar o número de horas a serem dedicadas a cada uma delas com base em trabalhos feitos anteriormente. Por exemplo: se tenho um prefácio para entregar na próxima sexta, e assumindo que o combinado seja um texto de duas mil palavras, reservarei dois dias (manhã e tarde) ou mais para escrevê-lo, e uma ou duas horas para revisá-lo. No caso de escrita de ficção, é diferente: caso tenha um conto de 20 mil caracteres para entregar, costumo reservar no mínimo quatro dias para a escrita. Claro que posso concluí-la antes ou depois disso, mas esse costuma ser um prazo razoável. Também consigo numa boa alternar os trabalhos. Por exemplo, escrevo o prefácio numa manhã e o conto à tarde, etc.
Claro, essa organização se refere a tarefas mais breves, pontuais. Trabalhos de maior extensão, como a escrita de uma novela ou um romance, ou uma tradução literária, exigem outro planejamento, bem mais amplo. Mas felizmente consigo mensurar meu ritmo de trabalho, sendo capaz de estimar e distribuir, com alguns meses de antecedência, o tempo necessário para a escrita ou a tradução.
Agora, já houve períodos em que não dei conta das demandas e contratei, por alguns meses, um “produtor”. Trata-se de um amigo meu, uma pessoa super organizada e craque em gestão de projetos que estruturou minha rotina e “tocou o tambor” pra que eu seguisse remando e completasse as provas. Essa transferência salvou minha vida (profissional, ao menos). Acho que o mais importante é conhecermos nossas limitações e, por bem ou por mal, tomarmos coragem pra dizer alguns “nãos”.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Procuro planejar tudo, até porque meu trabalho de composição (e de estruturação) é essencialmente mental. Ou seja, antes de colocar a primeira palavra no papel, já ruminei muito a história. A partir dessa ruminação, elaboro um breve argumento, que pode ou não se converter em uma escaleta (um tanto resumida, também). Só depois dessas etapas é que me atrevo a digitar a primeira letra. Isso, no caso de um conto. Tratando-se de uma novela ou um romance, elaboro um longo e detalhado plot, no qual dou especificamente atenção ao início e ao desfecho.
Por outro lado, não escrevo nada em pedra. Na medida do possível, permito-me também deixar fluir, ou respeitar os rumos que as narrativas acabam tomando. Pra ilustrar melhor esse processo, acho que vale contar um pouco de como as histórias “nascem” e “se desenvolvem” dentro de mim: no começo, é como se fossem centelhas no escuro, ou traços luminosos e incompletos, que preencho com a imaginação. Na medida em que me aproximo desses traços, eles vão ganhando luminosidade própria e, portanto, contornos. Vão ficando mais claros, mesmo, e o que imaginei antes, na concepção, pode perder o sentido. Já tentei lutar contra isso, mas é e sempre será uma luta perdida. Então, boa parte daquele argumento ou daquela escaleta podem ser descartados. E não há problema algum nisso.
Quanto a escrever a primeira ou a última frase, não consigo responder o que é mais difícil. Já dei cabeçadas em ambos os casos. No entanto, pensando bem, creio que últimas frases já me deram mais trabalho. Lembro-me de concluir um conto em cerca de quatro dias, e de demorar quase dois só pra achar a melhor formulação pra sentença derradeira. É que, no campo do horror, as últimas frases contam demais, porque têm grande responsabilidade: cabe a elas causar o assombro, o arrepio final no leitor.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Sim, sigo uma rotina. Na verdade, é a rotina de trabalho normal, que mencionei um pouco acima, com a diferença de que, neste caso, trabalharei por muito tempo em um texto. Assim sendo, calculo mais ou menos a quantidade de dias necessários para a conclusão da escrita e sigo a rotina de começar o trabalho por volta das 8h e prosseguir por quatro ou cinco horas escrevendo o texto em questão. Dificilmente passo disso em um dia, pois creio que a mente precisa de um refresco. Ou seja, após esse tempo escrevendo ficção, vou trabalhar em outra coisa – uma tradução, um artigo acadêmico, um texto pras revistas Galileu ou Vício Velho (nas quais tenho uma coluna), ou mesmo um conto.
Quanto ao ambiente, sim, também é super importante pra mim. Considero-me sortudo e privilegiado, pois tenho três lugares onde posso escrever com tranquilidade e silêncio: meu apartamento em SP, a sala em um conjunto comercial que divido com minha irmã (médica) a seis quarteirões do meu apartamento, e a chácara da família, a cerca de uma hora e meia de SP (onde estou neste momento, confinado por conta da pandemia). Nos três, tenho ótimas condições de trabalho – sobretudo o silêncio. No entanto, gosto muito de escrever ouvindo música. E por várias vezes é a música que me coloca na sintonia certa para a escrita de ficção.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Talvez eu tenha desenvolvido intuitivamente essas técnicas. Não foi nada muito racional ou premeditado, apenas fui entendendo como funciono e organizando alguns trabalhos a partir daí. Na verdade, acho a procrastinação, em alguns casos, algo um tanto saudável – desde que não se torne muito frequente, claro. Acho que, se conhecemos nossa forma de funcionar e trabalhar, podemos negociar internamente para começar aquele texto um pouco depois, no momento limite de dar tempo de fazê-lo. Porque esse intervalo vai ser benéfico pra quando iniciarmos o trabalho de fato. Eu costumava ser super rígido comigo mesmo, não permitindo esse tipo de comportamento, mas a psicanálise que faço há uns bons anos me ajudou a pegar mais leve, a respeitar o que vem bem de dentro. E às vezes, o que vem bem de dentro é a vontade de ficar deitado, celular em punho, espiando o mundo através das redes.
Já quando me sinto travado, procuro não forçar nada, porque sei que não vai adiantar. Ou, ainda, sei que o resultado será medíocre ou abaixo de medíocre. Então, procuro me tranquilizar e dizer a mim mesmo que amanhã será outro dia, e eu mesmo serei outro. Pode ser que amanhã não seja assim, que eu continue travado ou esvaziado, mas não tenho dúvidas de que em algum momento isso vai passar. Confio bastante no meu processo, e tenho procurado conhecê-lo cada vez mais para não sofrer desnecessariamente. Outra iniciativa que me ajuda muito nesses momentos é fazer exercício físico. Às vezes me sinto carregado, pesado, incapaz de escrever; e uma boa corrida ajuda a afastar essas nuvens.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Creio que o texto mais trabalhoso tenha sido a novela Claroscuro, a ser publicada em breve. Na verdade, não exatamente trabalhoso, mas “ameaçador”, eu diria. Porque tive que escrevê-lo em pouquíssimo tempo, pelo seguinte: a editora havia recusado o manuscrito anterior, mas se mostrou interessada em ainda publicar algo meu – acontece que havia um calendário já definido e eu precisaria entregar a obra dali a dois ou três meses. No final, foi uma experiência que me causou ansiedade e insegurança, mas que acabou sendo bastante positiva, ainda que exaustiva. É como dizem, o prazo acaba sendo o maior motivador da escrita.
Quanto ao texto do qual mais me orgulho, creio que essa resposta mude com o tempo… Especificamente hoje, em 30 de março de 2021, foi um conto que escrevi faz alguns dias, abordando uma questão terrível e absurda: as festas clandestinas realizadas em meio ao pior momento da pandemia aqui no Brasil. Chama-se “A pira noturna” e o elaborei na base do descarrego, pra depurar sentimentos pesados causados não só por desconhecidos, mas por pessoas bem próximas a mim, infelizmente. Pensei: a pandemia nos está revelando a todos. Então posso muito bem compor um personagem humano, mas que, diante de condições que considera inaceitáveis, acaba por se revelar tão monstruoso quanto essas desprezíveis figuras que vemos por aí. Orgulho-me do conto porque, ao concluí-lo, senti-me vingado, redimido. E leitores beta me passaram a mesma impressão.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Tenho um processo interno de definição do que vou escrever. A ideia me ocorre (seja por algo que experienciei ou simplesmente algo que surge na imaginação); passo alguns dias com ela, ruminando, revirando-a, interrogando-a; se ela permanecer “viva” por três ou mais dias, tendo a escrevê-la. Pra mim, essa sobrevivência é sinal de vitalidade. Isso, claro, ao se tratar de um trabalho mais livre. Quando recebo encomendas de projetos específicos, não posso me dar ao luxo de realizar esse método. Em tais casos, o tema já foi escolhido de antemão pelo editor – cabe a mim refletir nele por algum tempo para encontrar uma forma de abordá-lo que me pareça boa o bastante.
Quanto ao leitor ideal, sim, sempre mantenho-o em vista. Acredito fortemente que escrever é, entre outras coisas, abrir uma janela em nós mesmos, e que é preciso convidar pessoas a virem espiar através dela. Entendo que podemos fazer isso por meio de duas formas: no texto, que deve relatar a história de acordo com estilo estabelecido por nós e que precisa ser, ao mesmo tempo, atencioso para com o leitor, atraindo-o, envolvendo-o; e na história em si, o ter de fato algo a mostrar. Não me refiro a originalidade, inalcançável já há séculos, mas a combinações de estilo e imaginário que proporcionem uma experiência que, se tudo correr bem, permanecerá com o leitor por algum tempo após a conclusão da leitura.
Um último comentário: no caso da escrita de horror, o leitor ideal é indispensável. Pois o horror, como categoria literária, constitui-se em torno da estética da recepção, ou seja, do efeito que se pretende causar com um texto. Então, o destinatário – tecnicamente conhecido por narratário – da história que escrevo precisa estar sempre vivo na minha mente, respondendo aos estímulos que pretendo causar com meus esforços.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Sinto-me à vontade para mostrar os originais após revisá-los, o que faço geralmente um dia depois de concluir a escrita. Antes disso, o máximo que faço é compartilhar a sinopse, ou talvez o argumento. Caso o prazo de entrega do texto seja folgado, as primeiras pessoas a lerem-no são, pela ordem, a Taina, minha esposa (sobretudo contos), e logo a seguir meus leitores beta, que eventualmente fazem também leitura crítica – tenho dois maravilhosos, super críticos e qualificados, e me considero muito privilegiado por isso. Depois deles, costumo mandar para alguns amigos em cujo julgamento confio.
No entanto, há casos em que a primeira pessoa a ler o texto é o editor que o solicitou. Depende do prazo, claro, e isso é sempre um risco; mas não há muito o que se fazer. A leitura beta ou crítica é um serviço editorial como qualquer outro e nós, como autores, precisamos respeitar seus processos e prazos.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Sempre escrevi, desde pequeno. Mas a decisão de me dedicar profissionalmente à escrita só veio depois dos 30 anos, quando fui demitido da agência de publicidade em que trabalhava como redator. Isso aconteceu em 2013. Apesar de gostar da rotina da agência (graças às pessoas com quem convivia, é verdade), eu não tinha grandes perspectivas no ramo. Não me encantava com as premiações, não me sentia fascinado pelas grandes agências. Sequer queria estar no lugar do meu chefe, o diretor de criação. Então, quando eu e meu dupla recebemos a notícia da demissão, lembro-me de ficar bem abalado; mas logo depois decidi não procurar outro trabalho na área. Já havia assinado o contrato de publicação do meu segundo livro, Sexorcista e outros relatos insólitos, o que me motivou a encarar de vez a escrita profissional.
Outra questão também influenciou muito a decisão: a vontade de pesquisar literatura. Em 2013, eu havia concluído uma especialização em história da arte na FAAP de SP e fiquei encantado com a disciplina de história literária. Na verdade, encantou-me a professora, Thais Rodegheri, cujas aulas eu achava maravilhosas. Naquele momento, pensei comigo: “se um dia acumular 10% do conhecimento dessa senhora, serei perfeitamente feliz”. Então, quando fui demitido, tratei de me inscrever logo no mestrado em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, tendo como orientadora a professora Maria Rosa Duarte. E a partir daí, minha vida mudou pra valer.
Sobre o que gostaria de ter ouvido, é uma boa pergunta… Talvez uma palavra de incentivo mais enfática de meu pai, lá atrás. Ele jamais foi contra as minhas decisões, nada disso. Sempre as respeitou. Eu só não sentia tanta firmeza. Por outro lado, meu pai era médico (como quase toda a minha família) e bastante pragmático, então entendo o lado dele. Só que quando ele percebeu que eu realmente estava empenhado em construir uma carreira, tratando o trabalho com a máxima seriedade possível, é que ficou aliviado. Lembro-me sempre do momento de minha defesa no mestrado, em março de 2016: poucas vezes o vi tão contente, tão orgulhoso. Ele faleceu em agosto de 2017, e essa lembrança está entre as mais amorosas possíveis que guardo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Eu não saberia apontar uma dificuldade específica, porque acho que o desenvolvimento do estilo é um processo contínuo e interminável – sempre surgem novos impasses. No entanto, com a distância do tempo, posso dizer com tranquilidade que o maior desafio, para mim, foi a insegurança. Refiro-me aos meus primeiros textos, nos quais, para me fortalecer, eu pegava “emprestados” os estilos de autores que admiro, principalmente Poe e Lovecraft. O problema é que um é do século XIX, e o outro escrevia como se fosse. Ou seja, meu texto era extemporâneo, exagerado, anacrônico. Tenho essa consciência, e por causa dela nem chego perto dos meus primeiros livros. Apenas com o passar do tempo – e encarando a escrita como trabalho diário – fui capaz de ir aparando as arestas, limpando o texto, encontrando os caminhos nos quais eu me sentia à vontade.
Com isso, passei a me sentir mais seguro diante do meu texto, a ter mais conhecimento das minhas potencialidades e sobretudo das limitações. Aliás, acho que nesse ponto reside um passo importantíssimo na construção do estilo: saber abrir mão daquilo que não somos capazes de fazer bem. Não me refiro a nos acomodarmos, acho que sempre podemos nos desafiar e aprender coisas novas. No entanto, e especialmente no meu caso, dado que minha carreira começou um pouco tarde, não temos tanto tempo. Por isso, precisamos conhecer bem os nossos recursos para apurá-los. É esse processo de intermináveis construção e sofisticação que noto nos autores que admiro – e, respondendo à segunda pergunta, menciono aqui um caso exemplar: o do britânico Robert Aickman (1914 – 1981), cujas narrativas de absoluta estranheza e inigualável estilo têm me influenciado mais do que outras no momento.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Fico novamente com Aickman. Descobri o autor em 2015, numa viagem à Inglaterra; caminhando por Oxford, vi em uma livraria uma edição da coletânea de contos Dark entries, da Faber & Faber, em cuja capa havia o seguinte blurb (aquela frase de alguém famoso recomendando um livro) do Neil Gaiman a respeito do autor: “He really is the best”. Fui obrigado a comprá-la, comecei a ler naquela mesma noite e fiquei imediatamente estarrecido. Primeiro, com o texto: a fluência, a cadência, a elegância da prosa de Aickman soam como música antiga; depois, porque, enquanto a música soa, algo acontece, alguma suave transformação no enredo, nas personagens e, em consequência, em nós. Não sabemos exatamente o quê, mas acontece. Há poderosos feitiços em Robert Aickman, mas que são proferidos com a mansidão de uma homilia na missa matinal de domingo. O golpe do horror, nas narrativas dele, é desferido com poderosa sutileza. O transporte é certo, o enigma é renovado a cada virada de página.
Depois, descobri que Aickman não havia sido publicado em língua portuguesa (sequer em Portugal!), o que me deixou tão estarrecido quanto o conto “Repique macabro”. Felizmente, um amigo editor também percebeu o acinte, e logo se mobilizou para comprar direitos e publicar algumas das obras-primas do autor por aqui. Assim sendo, podemos esperar em breve, por aqui, a coletânea Repique macabro e outras histórias estranhas, para a qual tive a honra de traduzir dois textos. Então acho que continuarei falando sobre (e recomendando) Aickman por um bom tempo, ainda.