Oluwa Seyi Salles Bento, escritora, mestra e doutoranda em Literatura.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu sou uma pessoa bastante noturna, no geral. Quando acordo cedo, é pela demanda, não pelo gosto. Confesso que acho lindo ver o sol nascer, mas antes de ir dormir, não logo depois de acordar. Infelizmente, no geral, começo meus dias com o celular na mão, checando email, mensagens, dando uma olhada em redes sociais, coisas do gênero. Mas tenho tentado criar uma rotina mais feliz quando acordo: reservo esses primeiros momentos do dia para ler contos ou poesias, ainda na cama. Deixo algum livro por perto (atualmente, Cadernos Negros 42) e, antes de qualquer obrigação, leio algumas páginas de boa literatura. Meus dias têm sido melhores quando consigo instituir essa unidade mínima de alegria. Depois do descanso do corpo, tem me parecido sensato sentir esse carinho na alma.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como eu já comentei antes, eu sou uma pessoa da noite. Claro que produzo durante a manhã ou a tarde, mas basta o sol se pôr que eu sinto outro ânimo para escrever, tanto meus projetos literários quanto meus trabalhos acadêmicos. Sinto que sou definitivamente mais ativa, com pensamento mais rápido e organizado durante as noites e madrugadas. Acredito que o silêncio e a tranquilidade característicos desses momentos do dia ajudam nessa noção, mas realmente gosto da energia noturna.
Sobre a preparação para a escrita, creio que eu tenha alguns estímulos positivos, sobretudo para o trabalho com minha pesquisa. Eu, normalmente, escrevo com muita facilidade, então costuma ser suficiente reservar tempo e espaço que consigo escrever bem e bastante. Percebi que minha escrita floresceu quando me organizava para estar no escritório de casa, em frente ao computador, “esperando” o impulso de produzir, porém, mesmo antes dessa disposição, eu não via problema escrever páginas e páginas da dissertação, por exemplo, diretamente do celular. Vários parágrafos que considero muito bem estruturados foram produzidos assim e sei que não houve qualquer prejuízo no texto final. Por eu ser uma pessoa que usa muito dispositivos do tipo (celular, tablet e kindle) para os mais variados fins, eu creio que digito melhor neles que no notebook e isso adianta meu trabalho. Mas hoje reconheço que escrever em computador ou mesmo em papel tem suas vantagens, que considero mais importantes que a agilidade, inclusive.
Agora, sobre a preparação para a escrita literária, eu não sei se tenho. Posso dizer que foram raras as vezes que realmente separei tempo ou me organizei para escrever poesia, geralmente elas aconteceram quando eu estava participando de oficinas de criação, com prazo de entrega, preparando textos para concursos literários ou mesmo organizando material para livro e envio para editoras. Fora esses casos específicos, eu escrevo por demanda do corpo. No geral, eu estou no meio de alguma outra ocupação (indo dormir, lavando louça, no banho) e frases dos contos ou das crônicas ou versos dos poemas brotam para mim. Quando eu posso abandonar por algum tempo o que estou fazendo, vou escrever o mais rápido possível para não esquecer o que pensei; quando não posso, fico meditando sobre as palavras, criando mentalmente sobre aquelas sementes. Muitas vezes surgem mais criações, e então se torna insustentável continuar fazendo as outras coisas. Perdi as contas de quantas vezes levantei da cama de madrugada, quantas lavagens de louça larguei pela metade, quantos banhos suspendi por cinco minutinhos para anotar algumas frases e só bem depois ser capaz de voltar para dormir, ensaboar os copos, enxaguar o cabelo…
Tenho uma tatuagem no ombro em latim que significa “a literatura me rouba de mim” e acho que eu não poderia descrever meu processo de escrita de maneira melhor. Sou sequestrada pela necessidade de escrever e em seguida sou devolvida para mim, sem arranhões. Geralmente, o preço do resgate é um valor aceitável: alguns minutos de devoção sincera. E eu sempre pago.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Novamente fazendo a distinção entre escrita acadêmica e literária, sim para a primeira e dificilmente para a segunda. Durante as fases boas da escrita da dissertação, eu produzi quase todos os dias, mesmo que pouco. Quando não estava escrevendo, estava lendo algo referente ao tema. Em dias mais produtivos, eu tinha metas de fechar parágrafos, seções ou capítulos. Nem sempre eu conseguia, obviamente. Mas tentar era parte do meu processo. Passei por um hiato muito grande na minha escrita logo depois da banca de qualificação e simplesmente não consegui produzir nada novo por alguns meses. Reescrevi uma ou outra coisa, mas o texto não cresceu quase nada nesse período. Com o isolamento, a situação mudou bastante e o texto deslanchou. A obrigação principal acabou se tornando finalizar o mestrado, então, com o tempo e o foco que tive nessa época, foi possível respeitar as metas que eu me dava.
Com a escrita literária, eu raramente tenho essa organização. Como comentei anteriormente, quando estou participando de oficinas de criação ou quero submeter textos em concursos, eu tendo a reservar momentos para escrever. Essa mudança no meu processo natural de produzir tem me mostrado que consigo criar coisas que me agradam em situações incomuns para mim, como escrever em pouquíssimo tempo ou com temas pré definidos. É, com certeza, uma grata surpresa porque me dá horizontes maiores de escritas e isso é sempre uma felicidade.
Ainda sobre essa questão de reservar tempo para escrever, estou em um projeto pessoal de reescrever meus próprios textos antigos, buscando identificar o que a maturidade pôde dar de presente à minha escrita. São textos que vão começar a completar 10 anos neste ano e pretendo publicar esse antes e depois. Para isso, vai ser necessário praticar essa concentração de tempo e tema na escrita, algo bastante novo para mim. Esses textos que vão aniversariar nasceram justamente nesse regime de sequestro: uma outra eu, de 18 anos, no primeiro ano de graduação, escrevendo o que uma jovem daquela idade podia sentir e pensar, ao longo de várias madrugadas, sem entender bem a importância de se colocar no papel (ou na tela), mas se colocando mesmo assim, porque tudo aquilo era urgente e visceral para ela. Agora, outra versão de mim, já com 28 anos, no primeiro ano do curso de doutorado, vai tentar acolher e interpretar a jovem, e atualizar aquele olhar para o mundo. O que vai nascer desse experimento é difícil de prever, mas estou muito animada. Acho que não exagero quando digo que é o reencontro da década mais importante que eu vou viver (risos).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em relação à escrita acadêmica, eu geralmente faço fichamentos ou grifo os textos de pesquisa, mas não faço essa cisão entre momento de ler e momento de escrever. Se estou fazendo um fichamento, e aquilo me move para a escrita, eu vou. Aprendi (no caso, com a poesia), que o melhor é sempre depositar na escrita e não guardar por muito tempo, porque você pode esquecer ou se confundir com as próprias ideias em ebulição. Caso aquilo deixe de fazer sentido, você apaga, mas é melhor abrir mão da ideia por escolha do que por esquecimento. Sinto que esquecer é o pior tipo de perda.
No tocante à escrita literária, eu escrevo muito rápido. Tenho poemas e contos que foram escritos em minutos. Partos ligeiros. Mas considero que meus melhores textos foram os frutos de ideias fulminantes, mas que tiveram a escrita em si bem lenta. Textos que escrevo um pouquinho por dia ao longo de semanas, revisito, reescrevo, mudo a ordem interna, apago partes, modifico. Essa parte da escrita que não é só inspiração, mas é técnica, trabalho. Partos longos. Raramente é uma escolha. Ou o texto é do tipo rápido, ou do tipo laborioso, mas gosto de poder ver nascer os dois tipos. Ambos brilham para mim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sofro quando o texto trava. Quando acontece, eu costumo deixá-lo oxigenar. Volto para ele em outro momento. Sobretudo na escrita literária, não adianta pressionar. Eu dou chances, releio o que já tenho escrito, mas se não está funcionando, eu deixo de lado.
A procrastinação, porém, é um grave problema para mim. Mas, depois de alguma autoanálise, eu descobri que costumo deixar para depois o que gosto, não o contrário. Eu adio com frequência a minha satisfação, e minha maior satisfação é escrever. Acho que isso está relacionado com esse medo de não entregar o melhor trabalho. Na dissertação, meu trabalho mais longo, isso aconteceu muito. Estudei um tema que move muito meu afeto, então eu constantemente me vi reticente em escrever, publicar, falar sobre, porque essa pesquisa foi um mergulho que requisitou grande fôlego. Um mergulho em mim mesma, nas minhas crenças, no meu sagrado.
Agora, depois de finalizada (ainda falta a revisão para a publicação), eu só mudaria uma coisa, se pudesse voltar no tempo: encararia com ainda mais coragem. É importante corresponder às expectativas alheias, mas a mais importante é a própria. E essa noção segue sendo meu norte quando escrevo qualquer coisa. Eu preciso ser meu maior filtro de qualidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um número certo de revisões. Costumo ler os textos que escrevo em voz alta (tanto textos acadêmicos quanto literários), o que me ajuda a identificar problemas dos mais variados. Sobre compartilhar meus projetos, costumo fazer essa apresentação a algumas pessoas específicas. Meu principal leitor de textos acadêmicos é meu orientador, professor Emerson Inácio. Ele é um leitor crítico, generoso e atento. Quanto aos textos literários, gosto muito de enviá-los para duas amigas que escrevem (Lara de Paula, escritora maravilhosa de BH, e Zainne Lima, de SP, minha madrinha literária, que me impulsionou a publicar pela primeira vez). Elas, no geral, são as primeiras, às vezes as únicas, leitoras do que produzo. A leitura delas é bastante importante para mim porque, como escritoras negras com trajetórias de escrita e publicação nas quais me inspiro, são interlocutoras que me ensinam muito. Também mostro para meu companheiro, Hussani, mas ele costuma gostar de tudo que escrevo (risos). A leitura dele é especial e diferente das demais porque geralmente não é uma leitura técnica. As críticas que ele faz ponderam como os textos o fazem sentir e pensar sobre determinados assuntos… No fim, há coisa mais importante?
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
É uma relação muito boa! Não só para escrever, mas para ler, pesquisar e me divertir. Gosto de ler no kindle/celular/tablet e de livros digitais, leio muito PDF… Sou muito conectada à tecnologia, no geral. Escrevo muito no celular/ tablet e no computador. É bastante raro escrever à mão. Eu gosto da facilidade de organizar, remanejar, apagar e desfazer o que apaguei que o computador e o celular/ tablet têm.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Eu gostaria de descobrir e aposto que minha mãe também (risos). Quando eu comecei a escrever e mostrar os textos para ela, ela ficou preocupada, achando que tudo que eu produzia era tudo autobiográfico. Que a personagem triste era eu, que a personagem órfã era eu, que a personagem que morria era eu… Às vezes era sim, mas nem sempre. Eu leio desde bastante jovem: lia livros infantis, lia revistas, lia os livros da minha mãe, colecionava revistas… Meu pai tinha uma banca de jornal e eu, a criança leitora e filha única, devorava tudo que podia. Também sempre vi novela, filme, desenho, e os roteiros do eu que assistia, junto com a leitura, sempre foi alimento para a minha criatividade. Aliás, me interessei pela faculdade Letras porque queria ser tradutora. Queria trabalhar na editora Rocco, ser assistente da Lia Wyler e traduzir os próximos livros da saga Harry Potter quando a J. K. Rowling resolvesse escrever mais (risos). Hoje, mais velha, eu também leio bastante e vejo muita série. Participo de algumas oficinas de escrita criativa para experimentar temas, formas e contextos inusitados e fora da minha zona de conforto. Imagino que tudo isso ajude.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que várias coisas mudaram. Na escrita acadêmica, o que mudou principalmente é a organização e a capacidade de expressar minhas perspectivas. Tenho visto o exercício de uma escrita mais sóbria e bonita. Já na escrita literária, as mudanças são: a confiança em mim e na potência do que escrevo; o fato de hoje eu escrever, primeiramente, para mim, já que eu sou minha principal leitora e crítica; um pouco de maturidade, porque meus textos da adolescência eram monotemáticos, sempre em volta de um amor sofrido e não correspondido (risos). Acho que meus textos têm crescido comigo.
Se eu pudesse falar com a Oluwa no começo da escrita dela (nem sei precisar com que anos, já que eu escrevo cartinhas para os meus pais desde sempre), eu diria para ela se permitir: não ter vergonha ou medo de mostrar esses pedaços dela para os outros. Diria para ela escrever sobre tudo, para experimentar, para não se limitar. Ir em saraus, mostrar para os professores, ler nos recitais da escola… Só vai, pretinha!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto de reescrita de alguns dos meus textos escritos na adolescência, 10 anos depois, que já falei um pouco sobre. Além dele, também gostaria de publicar, em livro, parte da minha dissertação. Obviamente, como é só parte, preciso organizar bem. Mas quero muito que aconteça.
Não sei se é exatamente esse o direcionamento da pergunta, mas quero muito ler um livro que está sendo organizado pelo escritor Marcelo Moutinho, e será publicado pela editora Malê ainda este ano. Ele deveria ter saído no ano passado, mas a pandemia atrasou tudo. É um livro de contos sobre os orixás, que é o tema central das minhas pesquisas de mestrado e doutorado e também é um assunto que gosto muito estética e espiritualmente. Estou aguardando ansiosamente por esse trabalho. Quem sabe parte dele não se torna corpus de futuras pesquisas minhas?