Nuno Virgílio Neto é jornalista, escritor e músico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia desligando o despertador e programando-o para tocar novamente dali a 15 minutos. Para que esse tempo não resulte em 15 minutos de atraso, preciso compensá-lo com alguma correria, mas isso é um luxo indispensável. Ainda deitado, aproveito para repassar/decifrar meus sonhos, ou esquecê-los, remixá-los – e, se tiver sorte, quem sabe até retomá-los num último cochilo. Portanto meus dias têm início assim: com uma procrastinação premeditada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre que possível, volto para casa caminhando (são 9,2 quilômetros, me diz o Google Maps). Meu ritual de preparação favorito é este: caminhar para ficar distraído. Se a rotina permite, paro em algum lugar, pego um café e registro os textos que vou rascunhando na cabeça ao longo do caminho. Geralmente, não preciso de muito para começar: basta uma frase, ela só precisa ter o ritmo certo. Nunca sei de antemão qual é esse ritmo, nem o procuro. Mas sei que ele é o certo quando o encontro – e aí torço para não esbarrar com amigos nem parentes nos metros que ainda faltam até o café. Às vezes basta um “olá, tudo bem?” para esse ritmo escapar para sempre.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria de escrever todos os dias, esta será minha promessa de fim de ano, mas ainda não tenho a disciplina que a tarefa exige. Assim como paguei três meses adiantados de academia e não fui nem para a avaliação (já disse ao corpo: vire-se com as nossas caminhadas distraídas).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu avô tinha um barracão de ferramentas no quintal de casa, aquilo era o paraíso dos netos. Havia tudo quanto é ferramenta, lata velha, pedaços de madeira, um monte de quinquilharia. Minha cabeça é aquele barracão e eu sou o moleque com dificuldade de decidir por onde começar – se cavando um buraco na terra com a colher de pedreiro, entortando pregos e moedas no torno, ou fazendo carrinho com arame e tampa de vidro de azeitona. Nunca sei se, onde estou cavando, há um poema, uma letra de música, uma crônica. A parte mais difícil é descobrir a natureza daquele conjunto de palavras e trabalhar em cima antes que a vó chame pro almoço.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido com isso procrastinando. Acabo de me dar conta, a propósito: estou sempre colocando 15 minutos a mais no alarme da escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Com os poemas, muitos acabam indo pro Facebook antes de entrarem em quarentena (estou aprendendo a guardá-los, a não publicá-los na internet). Gosto de deixá-los quietos por um tempo antes de destampá-los e ponderar se ali há um livro. Estou prestes a entrar nessa fase com os poemas que escrevi desde o lançamento do meu primeiro livro. Tenho uma ideia de gancho para amarrá-los, tenho um título, mas francamente não sei se toda essa boa intenção será suficiente para que eu diga: sim, um livro. Se achar que dá pé, trabalharei na edição por um tempo, encadernarei tudo bem bonitinho e irei mostrá-lo às duas pessoas que leram os originais do primeiro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Alguns escritores têm baús e escrivaninhas para guardar suas coisas. Eu tenho a pasta de rascunhos do Gmail. Mas gosto de ter comigo um caderninho e uma caneta. Há algo ainda insubstituível nessa relação entre mão, caneta e papel. É bonito o texto todo rabiscado, com um monte de setas atirando linhas e quebras de verso para todo lado. Aquilo tem a urgência que ilustra bem o que sinto quando encontro o tal ritmo e começo a escrever algo que só abandonarei quando estiver pronto (ou soterrado pela implosão dos poemas não concluídos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Dou de comer à minha fome de miscelânea. Minhas ideias preferem almoçar em restaurante a quilo, onde há a dieta equilibrada dos livros, filmes, discos, mas também pastel com lasanha: vídeos no YouTube de gente ensinando a fazer pipa, gaiola, gás de cozinha com vapor de gasolina, ou simplesmente mostrando os cômodos da casa onde mora. Gente falando me mantém criativo. Às vezes os textos mais bonitos estão nesses discursos sem roteiro, ainda permeáveis a inflexões que não as da TV. E o cotidiano banal, banal: eis a fonte de ideias mais generosa. Há tesouros que só se revelam quando a gente passa a tarde de domingo cozinhando um quilo de feijão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo de escrita mudou muito pouco, ainda é bastante dependente de impulsos externos (eu ia falar “dependente de inspi*****”, mas parece que proibiram a radiodifusão e execução pública desse conceito em todo o território nacional). Queria controlar melhor isso, manter-me por mais tempo nesse estado de compromisso com o texto que só experimento quando estou escrevendo um poema. Como aprendi a ler e escrever aos seis anos, e considerarei aqueles rabiscos como meus primeiros textos, darei ao menino Nuno o seguinte conselho literário: suba o máximo que você puder nas árvores, nos móveis, nos telhados. Caia deles muitas vezes, colecione gessos e suturas. Porque literatura exige uma coragem que se aprende a forjar no corpo. É uma luta contra a morte e a precariedade da vida que nós vencemos, primeiro, no corpo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Se Deus me permitir, ainda quero experimentar as narrativas, as histórias, os personagens. O prolongamento na prosa dessa explosão que vivencio na poesia (uma explosão em câmera lenta?). O livro que eu gostaria de ler e ninguém fez: algum escrito pelas coisas. Mas talvez ele já exista na biblioteca que me espera do outro lado da grande porta. Então é só questão de tempo.