Nuno Rau é poeta, arquiteto e professor de história da arte, mestre e doutorando em história da arquitetura.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia não é um dia de escritor, se é que isso existe ainda como regra. Seria muito bom poder ter esse dia ideal. Por anos li – e leio ainda – entrevistas de escritores contando suas rotinas (Hemingway, Faulkner, Vargas Llosa etc.), geralmente uma rotina em que a escrita ocupa a parte essencial do dia, e o resto gira ao redor deste centro, seja ele em que hora for – dos que escrevem pela manhã aos que preferem a madrugada. Acho que sempre procurei saber sobre a rotina de escritores porque pensava que meus dias não cabiam na vida de alguém que produz coisas escritas, de forma que sempre me achei – pra usar uma palavra em voga – divergente, e aí agora acho de certo modo engraçado estar falando sobre “como eu escrevo”.
Então, voltando à pergunta, minha rotina matinal é ocupada pela preparação do dia, que nada tem a ver, objetivamente, materialmente, com escrever. Ou tem tudo, talvez. Escrever é um garimpo nada fácil de horas, muitas vezes nos espaços das outras tarefas, mas o oceano de coisas antes dessas horas é que dá forma e conteúdo ao que vai ser posto no papel, ou nos suportes de memória eletrônica.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O resultado do que descrevi acima é que as madrugadas acabam sendo o momento perfeito. Não sei dizer se sou noturno por causa do dia estar ocupado com as questões de sobrevivência, ou se gosto da noite porque gosto. O fato é que a madrugada, quando todas as demandas cessam, e dá pra ouvir o silêncio (ou a chuva, quando chove), é muito boa para sentar e escrever.
Sobre ritual, não tenho nenhum. A palavra ritual parece situar a escrita num plano de sacralização que ela não tem, ou, do modo como penso, não deve ter. Ela é um trabalho (desvinculo aqui o trabalho da relação de troca de tempo por dinheiro: trabalho é qualquer atividade humana que implique o cuidado na elaboração de algo), um diálogo com o real, é muitas coisas, mas nada sagrado. Se for, é do modo como os gregos pensavam, pelo trânsito entre o que é dito e o como é dito, pela contaminação entre som e sentido, pelo ritmo (o fato dos aedos marcarem a pulsação do poema com os pés sobre o chão). Mesmo assim, não há sagrado, porque tem a ver com estar com os olhos bem abertos, conectado à imanência da vida no momento em que você olha para o papel, ou conjunto tela/teclado, ou seja lá que dispositivo tecnológico venha a ser empregado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Pra mim são três processos diferentes de escrita: poemas, contos/romance, escrita acadêmica.
Primeiro o poema irrompe, arbitrário, sem pedir licença: um verso, uma ideia, uma imagem, uma palavra. Quando se esboça esse movimento, o poema vai se fazendo até cumprir seu ciclo, até parecer pronto (porque volto depois, dias, meses ou anos, conforme o caso, e mexo, olho para o poema por outros lados; e de certo modo acho que poemas nunca estão prontos). Este processo é meio obsessivo, ele toma você e não te larga até chegar a termo – às vezes varo a noite em um poema – mas responde bem ao meu dia fragmentado em outras atividades.
No caso de prosa, que também escrevo (sem publicar, ainda), não tenho método algum que não seja arregaçar as mangas e escrever; mas deveria ter. Acredito no método. Por isso o que produzi é incompleto – contos esparsos, dois romances por fechar, elaborados um pouco a cada ano – e não gostaria que fosse assim. Mas todo o resto me impede garimpar mais horas que me permitam ser metódico com a divisão de tempos e tarefas da escrita. Acredito neste trabalho, nesta carpintaria, e, se viver o suficiente, quero fazer isso um dia.
Quando se trata de escrita acadêmica sou meio obsessivo e organizado (uma desordem positiva, digamos), desde as leituras até a definição do texto, embora esse ordenamento seja permanentemente desestabilizado conforme o texto avança. O texto se dobra sobre si mesmo, se recria à medida que vai sendo produzido e não bloqueio essa esta (talvez) autofagia, porque nela mora a possibilidade de criação no contexto da teoria, do modo como vejo. No fundo busco uma contaminação entre a escrita não acadêmica e a acadêmica, ou, como bem diz o Alberto Pucheu, “desguarnecer as fronteiras.”
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso de poemas, como disse, os começos são arbitrários, obedecem à (falta de) lógica da vida. Podem aparecer como continuidade de coisas que estou pensando (e geralmente é assim, acho), e eles acabam aparecendo na forma de projetos, em corpos de ideias – mesmo que isso não seja consciente a princípio. Há temas recorrentes que fico remoendo: a questão do mundo como máquina, hardware e software, por exemplo, que gerou os poemas de Mecânica Aplicada; os ciclos do tempo, como os cem anos de um século enquanto territórios de violência, e sua relação com a linguagem, como se poemas fossem anotações feitas à margem da vida, ou de outros textos, ou de objetos, ou de pessoas, que é o caso das Notas Marginais. E há outros projetos em andamento, sem prazo, conforme o fluxo, e dois ou três que digo terminados, mas que vez por outra pego pra mexer de novo, e altero, porque já sou outro. Mas estes processos vão acontecendo de modo fragmentado, em pedaços de papel que vou rabiscando ao longo do dia, páginas de livros, e mesmo insiro versos disfarçados em e-mails pra amigos, pra depois tirar eles dali, em mensagens de Whatsapp, de Messenger, postagens do Facebook, esse mosaico vai formando um todo, em algum momento.
No caso de prosa, as notas se dão no processo mesmo da escrita (com pesquisas em paralelo), conforme ela vai avançando, organicamente, escrever é fazer, refletir a própria matéria, criar desdobramentos, embora haja um eixo central mais ou menos bem desenhado antes. Apenas não me aferro a este eixo, deixando a incerteza do processo afetar o objeto. Como na vida.
No caso de escrita acadêmica, em textos curtos tudo é (quase) determinado a priori, em geral já tenho ideia do que deve ser dito, e como. No caso de projetos mais longos, como disse acima, deixo a escrita se dobrar sobre si mesma, e alterar eventuais rumos antes planejados – até porque nunca me ocorreu de conseguir ler todo o necessário antes de começar a produzir. E tem a questão da intuição, que acho uma ferramenta imprescindível (pra mim) no pensamento teórico. No caso específico da tese em que estou trabalhando, segui uma intuição por muito tempo, por três ou quatro anos, até que ela se desenhou na minha frente, depois que consegui juntar e interpretar o tanto de leituras que fiz com a reflexão pessoal, em idas e vindas turbulentas. Havia a percepção de que algo estava no final e eu não tinha mais do que uma vaga ideia do que seria, só que quando este algo surgiu, confirmando a intuição, foi como se sempre tivesse estado ali – isso tem me causado muitos problemas com relação ao prazo final, porque era para o trabalho estar muito mais adiantado. Estou pagando um preço alto por não abdicar desta intuição.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não creio que viva o problema da procrastinação. Gosto de trabalhar, do aspecto trabalho da escrita (que pode ser torturante por um lado, o da expectativa pessoal, mas é um prazer também), e isso me ajuda. Também não tenho medo de não corresponder, não por qualquer orgulho ou soberba. Só penso em corresponder a minha própria expectativa de produzir sentido, no crivo que tento estabelecer na conversa com a máquina do mundo. Projetos longos também não causam ansiedade, porque gosto mais do processo do que do chegar ao fim dele (fim que nunca chega, a gente é que se dá por vencido em dado momento). E não tenho problemas se não escrever durante qualquer período de tempo. Se isso ocorrer, como já ocorreu, viver preenche tudo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar, revisar, sempre. Até depois de publicado tenho vontade de mexer em alguma coisa. Se a vida está sempre em processo, o que se escreve também não é objeto imóvel. Penso nos escritos como nas moléculas do vidro: a gente vê o vidro como algo sólido e estável, mas as suas moléculas estão em permanente “estado líquido”. Assim é a escrita, e sempre há o que ser mexido. Talvez por isso tenha alguma compulsão por formas fixas – elas nos amarram mais, criam travas e rigor que não permitem tanto deslizar do que é forma (digo isto com a ressalva de que não existe nada livre, muito menos o verso).
Sobre mostrar, quando mostro é porque busco um diálogo específico com alguém, tenho um objetivo, embora nem sempre diga, ou diga qual é. Lanço a rede e espero pra ver se vem peixe. Geralmente vem, mesmo que não seja o peixe esperado, e a surpresa é uma coisa boa, o aleatório tangendo o mundo. Escrever é conversar, e é muito bom quando se forma uma pequena rede de pares com quem a gente possa trocar ideias sobre o processo e sobre o resultado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo quase sempre no computador, todo tipo de escrita. As possibilidades do pixel são maravilhosas, e ainda acho que as exploro pouco, me limitando ao processador de textos de modo mais ou menos básico – queria incorporar ferramentas de voz, sonoridades, imagens, mas ainda tenho um caminho pessoal a fazer nesse sentido. Tem alguns problemas “técnicos”: outro dia, já deitado, escrevi um soneto (uma conversa em sonetos que estou levando com o Marcelo Diniz) no processador de textos do celular, todo fechado, fiquei burilando o danado até fechar em todos os aspectos (provisoriamente, claro), e em dado momento, noite adentro, acabei dormindo. Quando acordei, de manhã, a bateria do celular tinha ido embora e, como não salvei o arquivo, tinha desaparecido. Esse foi pro limbo, não lembrei mais nada, só que gostei do resultado. Por algum motivo a ideia evaporou, e escrevi outro, depois, que nada tem a ver com aquele primeiro. Se tivesse feito no e-mail ou no WhatsApp, e mandado pra mim mesmo, estaria salvo.
Mas gosto também do gesto da escrita à mão, minha mão esquerda empunhando o lápis ou caneta que desliza sobre o papel gerando os grafismos que juntos formam o poema, por exemplo (e que pra muitos são rabiscos ilegíveis). Nesse caso, gosto de desenhar também sobre a folha enquanto penso, porque o poema se faz com pausas, com intervalos de segundos a minutos, e pode se estender a horas ou dias. O tempo é uma ferramenta importante.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Da vida, e ela inclui o campo selvagem das relações entre as pessoas, os textos, as imagens todas que nos entram pelos olhos, os silêncios, as falas incompreensíveis. A vida é inesgotável, e torço que seja sempre. No caso da História, tenho sempre – pra que a gente possa pensar em mover as estruturas rígidas – a expectativa da irrupção do inesperado, do elemento que vem e muda o rumo, subverte sentidos – o enjambement do destino. Então, o melhor hábito pra mim é ir de encontro à vida, sem filtros.
Mas não se pode esquecer que a gente trabalha, a favor ou contra (ou a favor e contra) um lastro de tradição, e que a ilusão de demolir tudo e começar o novo foi embora faz tempo. É preciso amar o que foi feito, ou parte desse acervo, acho que ou um pedaço do caminho trilhado toca você ou você precisa apurar os olhos e ouvidos, porque é impossível que esse lastro que representa vida e pensamento de milhares de pessoas não corresponda a algo que esteja em você ou seja você. Quem melhor situou esse problema pra mim foi Hannah Arendt, em um texto que, aparentemente, nada tem sobre estética, mas sobre política – e aqui vemos o quanto esses dois campos são geminados, indissociáveis. Ela diz que é responsabilidade da gente, no presente, preparar a chegada das novas gerações, as imediatas, as que vamos receber, carregando o mundo de sentido. Decorre disso que há uma cadeia de elos que nos levam a algo muito remoto e que está, claro, nos códigos das linguagens que utilizamos, nossas ferramentas de diálogo com o mundo. A responsabilidade que ela fala implica numa ação espelhada, porque também temos responsabilidade de não deixar que esse suor todo vertido sobre páginas e, agora, teclados e telas, seja escoado por algum ralo da História. É preciso que ele chegue a quem ainda virá pisar sobre o planeta, enquanto houver planeta, seja por simples transmissão, seja pelo diálogo que estabelecemos com essa tradição – a favor ou contra. As ideias, respondendo então a pergunta, vêm deste caldo complexo, da resposta que tentamos dar a ele.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Os anos vão eliminando várias dúvidas que nos consomem no começo e gerando outras, melhores, mais densas, mais terríveis, quase insuportáveis. Destas dúvidas nasce, talvez, a melhor escrita, porque as dúvidas são a expectativa de produção de sentido.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever um poema longo (ligado a história e mito) sobre um aspecto do real que me persegue (me toca, me incomoda, me mobiliza) há anos, mas as dúvidas (terríveis, quase insuportáveis) sobre a forma (ou não-forma), não me deixaram passar de pequenos esboços esparsos. Quero escrever um conjunto de poemas sobre o devir animal e me debruçar e demorar sobre a sonoridade de um idioma ameríndio e a cosmologia a que ele dá voz.
Gostaria de ler um livro que fosse um livro sobre o Brasil, sobre o Brasil mais profundo (os Brasis, esse caleidoscópio), como Grande Sertão (do mesmo modo como Cem Anos de Solidão é um livro sobre a América Latina mítica), mas com a perspectiva fragmentada como é a nossa, cercada de impossibilidades de síntese e, por isso mesmo, de abrangência.
Sou muito grato pela oportunidade de estar aqui, expondo essas ideias, e deixo aqui meus parabéns ao José Nunes por essa ótima ideia de pedir a pessoas que trabalham com a palavra que descrevam seus processos e projetos. Tenho certeza que este site já é um documento significativo da cultura. Deixo meu endereço eletrônico, para um eventual contato.