Nílson Galvão é jornalista e poeta, autor de Caixa Preta (2009), Ocidente (2012) e o espiritismo segundo o google street view (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Para escrever, nenhuma rotina! É um processo meio caótico. Já tentei essas fórmulas tipo sentar todos os dias em horário definido e trabalhar por tantas horas. Não funciona, não sai nada. Poderia atribuir essa indisciplina ao fato de escrever só poesia, não escrever prosa, mas conheço poetas que fazem isso sim, sentam e escrevem, nem que acabem jogando tudo no lixo, até a depuração do texto. No meu caso o que funciona mais é um método híbrido, digamos assim. Espero ser alcançado pelas ideias e aí escrevo, onde quer que esteja, mas também posso sentir que algo está pintando, mesmo não havendo qualquer ideia nítida, o que me faz parar tudo e encontrar um canto pra escrever, como se fosse o mais disciplinado dos autores.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como expliquei, não tenho horário. Já acordei de madrugada pra anotar um poema. O ritual, se é que posso chamar assim, é simples: ou vem uma ideia pronta ou o sentimento de que algo está em vias de ser escrito. Dadas essas circunstâncias, o caderno de notas do celular acaba sendo o suporte mais recorrente. Quando estou dirigindo ou caminhando, uso o gravador do celular. Mas também recorro aos suportes tradicionais: cadernetas de espiral, blocos de papel. Já encontrei poemas perdidos em agendas do trabalho, no meio de apontamentos de reuniões, de listas de compromissos do dia, em boletos pagos ou não pagos. (risos)
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Nada de meta diária. Já escrevi cinco poemas em um único dia e já passei um mês sem escrever absolutamente nada. Claro que nessas situações bate o desespero, a sensação de que a poesia me abandonou, aliás um sentimento comum entre poetas. Juro que gostaria de ser mais disciplinado. Mas travo quando resolvo parar pra me forçar a escrever.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Posso fazer anotações para um poema, mas em geral não. Às vezes fico dias com uma ideia na cabeça, experimentando mentalmente diferentes formas de desenvolvê-la, até que o caminho se delineia. Mas é muito comum que saia um poema inteiro de um fôlego só. Já escrevi um poema de cinco páginas num fluxo contínuo. Depois só fiz ajustes aqui e ali. Também já passei dias burilando um poema de quatro linhas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação eu tento contornar: é isso que faz o meu método de escrita ser tão caótico. Tenho idas e vindas com o medo de não corresponder às expectativas: acho que nos últimos anos vivi períodos pouco produtivos e pouco inspirados a cada vez que esse olhar do outro me governou, e essa é uma armadilha em que costumo cair de vez em quando. Sem a sensação de que tem alguém espiando por cima do ombro, me solto e às vezes faço coisas que depois considero ruins, mas é também nesses momentos que saem os melhores poemas. Sobre projetos longos: não consigo lidar com essa ansiedade. Já comecei uns dois livros temáticos e não levei adiante. É um tabu.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Posso revisar dez vezes, mas também posso não revisar. Posso deixar um poema de lado e esquecer dele, depois reencontrar e mudar tudo. Costumo mostrar os poemas pra minha mulher, Emília, e às vezes para um ou outro amigo, mas em geral sou o único leitor, o que de fato não parece ser o ideal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje em dia escrevo a maior parte dos poemas no celular. É temerário porque fica tudo num dispositivo que pode cair e quebrar, pode ser perdido ou roubado. Quando lembro, envio pelo e-mail pra mim mesmo. Sou um poeta de smartphone. (risos)
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Nenhum hábito. Mas procuro ficar atento ao que acontece ao redor. O que mais deflagra o processo criativo é o acaso mesmo, que se conecta com as leituras, as músicas ouvidas, as conversas, tudo enfim. A palavra dita por alguém pode ser o mote, puxar outras palavras e ideias, ou remeter a uma cena. O poema que deu título ao meu último livro, “o espiritismo segundo o google street view”, descreve um processo assim: meu amigo Marcus Gusmão contou que foi ao dispositivo do Google pra reencontrar uma pessoa querida, já falecida. Seu Rubens, o avô de Soraya, mulher de Marcus, tinha o hábito de ficar sentado na varanda de casa, em Iaçu, interior da Bahia, olhando o movimento da rua. Tentei a mesma estratégia pra reencontrar o meu pai, também morto recentemente, que fazia a mesma coisa lá em Brumado. Mas não deu certo. O poema basicamente descreve essa nova tentativa de sessão espírita. Engraçado é que depois de sua publicação algumas pessoas me enviaram histórias de gente que vai ao Google com o mesmo objetivo. Tem até um casal que volta pra rever o cachorrinho, que gostava de ficar na laje da casa e também foi captado, como diz o poema, pelas lentes do panótico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A escrita foi ficando cada vez mais ágil e despojada. No começo havia um tom mais sério, uma tentativa de explicar o mundo. Com o tempo fui assumindo, em termos existenciais mesmo, a “consciência da própria desimportância”, como ouvi uma vez de um cara em Igatu. Isso está em linha com o conselho dado por Carlito Azevedo numa oficina de poesia: o poeta é o último da aldeia, no sentido de que esta deve ser a sua perspectiva ao olhar o mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já tentei fazer um livro sobre oráculos, brincando com os hexagramas do I Ching e as cartas do tarô, mas não fui adiante. O nome seria Horáculos pra fazer trocadilho e brincar com a superstição do personagem de O jogo da amarelinha, de Cortázar, que acrescenta um h antes de palavras iniciadas com vogais pra fazer uma espécie de purificação. Outro livro seria de poemas que tivessem como cenários as ruas de nomes enigmáticos no centro antigo de Salvador, como a Travessa dos Perdões, a Rua dos Ossos, o Largo dos Quinze Mistérios. E gostaria de ler mais ficção que tivesse como pano de fundo a contracultura, um movimento que teve impacto tão grande mas acabou meio sublimado, acho, depois de Lennon decretar que o sonho acabou. As causas daquela geração venceram, estão vencendo, mas a reação está cada vez mais intensa, como vemos com o bolsonarismo no Brasil. Talvez precisemos voltar um pouco ao sonho, quem sabe temperado com lucidez pra iluminar o reacionarismo em voga ultimamente.