Nil Kremer é arte educadora, autora de Kamikaze.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nada de glorioso ou excêntrico compõe minha manhã. Abro os olhos e levo um tempo para despertar. Quando não tenho compromisso pela manhã o processo é lento, me permito. Quando tenho compromisso, tento agilizar o processo de organização minha e das coisas que preciso resolver. Depois de despertar, preparo minha água com limão. Depois, enquanto bebo, preparo o café (preto e forte, adoçado com mel). Dificilmente como algo pela manhã, ocasionalmente uma fruta. Bebendo o café, passo os olhos na caixa de entrada dos e-mails e dou uma olhada na internet para me inteirar do que ocorre na matrix. Qualquer possibilidade de interferências abruptas neste momento desperta minha porção ariana trash.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu flerte com a palavra, em um sentido organizacional, também ocorre no período do despertar, em que o fio do onírico ainda pulsa, em que habitamos a linha tênue entre a clareza da manhã e o delírio dos sonhos. Mas a manhã já me pareceu bem mais produtiva em outros tempos. Todo momento é momento, o momento em que um insight surge é sempre inesperado. Como disse outro dia, a inspiração surge no susto, feito picada de inseto, ou um tropeção na rua. Às vezes vem como um poema pronto, o que é um quase orgasmo, outras vezes é só uma ideia para ser guardada e trabalhada, ou eliminada depois. Outras vezes os poemas se articulam noturnos, espantando o sono e se constituindo no bloco de notas do celular. Em algumas noites acontece o pequeno ritual, enquanto o “palo santo” queima. Uma xícara de chá ao lado do teclado, ao som de uma música instrumental (geralmente jazz ou blues), me coloco diante dos rascunhos e projetos de texto para trabalhar por algumas horas. Eis um ritual, talvez um dos outros ainda não identificados.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho receitas, não me cobro produção, não sei lidar com a escrita assim (ainda não). Os prazos me sufocam, e me parece que, quando tem prazo na jogada desencontro a verdade no que escrevo. Me parece que a escrita que atravessa, a mim e a quem me lê, é a escrita em carne viva. Tenho dúvidas de que uma escrita assim nasça de prazos, com ponteiros martirizando o processo criativo. Meu tempo é outro, que não um tempo medido, classificatório. Meu tempo tem o tempo do delírio e o tempo do delírio para o poeta é um contínuo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é mais de escavação, mais do meu mundo relacionando-se com o universo do outro, com o mundo externo, com o emaranhado de coisas, informações, pessoas, cobranças, paixões… Posso ter escrito algo que julgo genial e no momento seguinte julgar que não vale ser propagado. Anoto ideias, palavras, aforismos por todo canto (celular, arquivos de texto, cadernos, papéis soltos…) e depois retorno avaliando a possibilidade de descarte (sem apego) ou de construção de poemas a partir dessas ideias. Uso as redes sociais como a possibilidade de laboratório para o que escrevo. Para perceber como o texto toca o outro, se toca, a quem toca. Embora eu tenha consciência de que este retorno deva ser bem relativizado. Ignoro possíveis padronizações, estruturas e rótulos de como deva ser ou deixar de ser o processo de escrita.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu abraço as travas, elas fazem parte do processo, ninguém consegue ser genial o tempo todo (acho). Não me preocupo em não corresponder às expectativas, escrevo primeiro porque me dá prazer, se tocar o outro, maravilhoso, se não tocar, paciência. Não tenho pressa ou pretensões com relação ao que produzo. Respeito o tempo das coisas. Nós temos o nosso tempo, como tudo tem, inclusive a escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho hábito de revisar muito os meus textos, muitas vezes eles surgem fluidos, dou uma olhada e considero pronto. É louco quando um poema verte inteirinho para você. Troco ideias e mostro processos para alguns amigos, amigos seletos, de olhar sensível e crítico.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro as teclas ou blocos de notas do celular ao papel. Me parece que estes meios me possibilitam mais instantaneidade no registro das ideias. Mas vez ou outra recorro ao papel para tentar represar um algo antes que escape.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Leio muitas coisas ao mesmo tempo, gosto de observar o que não costuma ser observado (via de regra), detalhes quase nulos de ambientes, situações, pessoas…
Assisto muitos filmes e séries. Ouço música, muita música de diferentes estilos. Me arrisco a dançar e contar histórias.
Penso que é tudo isso que me mantém criativa. Mas a criatividade também some às vezes e fica escondida num canto qualquer. Como Adélia Prado, em Paixão:
Paixão
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos, não é
a bola bonita caminhando solta no espaço.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Percebo claras transformações na minha escrita, porém não vejo e não anseio por um porto. Prefiro o impossível, a transformação constante, fruto da inquietação própria de todo artista. Desejo a possibilidade das muitas formas, desejo os desenquadramentos. E a percepção de mudança é fruto das trocas e buscas por possibilidades da palavra além palavra, da palavra impressa em corpos e signos vários. Das palavras que rompem audaciosa e/ou carinhosamente. Esta escrita que me interessa, a que me tira da minha zona de conforto e arranca a pele, rompe diques e põe na bamba corda. Diria “repita tudo igualzinho, assim de peito aberto, fruindo para o desconhecido, repita os mesmos tropeços e cometa os mesmos saborosos acertos”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto do livro novo a organizar. O meu projeto-mor é o mesmo dos NA, “só por hoje…”. Só por hoje preciso entregar esta entrevista, pagar esta conta, organizar uns textos e mais um projeto, enviar uma minibio e foto em boa resolução, conferir se o conserto da impressora já está ok, planejar aulas… Só por hoje preciso reter a poesia nem que seja entre os dentes, deixar as unhas a postos, preservar bons ventos (em meio ao olho do furacão). Só por hoje preciso luzir. E se todo livro já existe? Fragmentado entre tantas capas e títulos, projetos diversos do que já foi.