Nic Cardeal é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu costumo acordar muito cedo. Às vezes já estou desperta antes das 4 horas da manhã. No entanto, fico de um lado para o outro na cama, divagando entre pensamentos, frases soltas que passeiam pra lá e pra cá dentro da mente, como se quisessem se agarrar em algum papel que ainda não existe. Muitas vezes acordo como se sentisse um sopro no ouvido, tenho a sensação de que alguém me diz alguma coisa, então preciso tomar nota antes que o sono volte e tudo se apague. Acontece com bastante frequência essa sensação esquisita de alguém falando algo, uma frase, um texto inteiro. Não sei o que é isso. Quem sabe inspiração, loucura? Clarice Lispector, em seu livro ‘Um Sopro de Vida’, disse que “inspiração não é loucura. É Deus”. Seja o que for, sou obediente. Anoto ligeiro, antes que o consciente venha e passe a borracha.
Saio da cama frequentemente às 7 horas, quando um dos meus gatos (são três), Ganesh (nome dado ao meu gato amarelo em homenagem ao deus hindu da sabedoria e da escrita, o removedor dos obstáculos), inicia sua rotina habitual de arranhar a porta, querendo entrar, ou pedindo seu café da manhã. Gatos adquirem hábitos que duram longos períodos. Ganesh está quase eternizando esse seu hábito, o que me rende manhãs deveras sonolentas…
Minha rotina matinal não tem nenhum vínculo com o ato de escrever porque, na verdade, raramente escrevo pela manhã. Sou muito preguiçosa nesse horário, marco minhas tarefas mais corriqueiras pela manhã justamente para tentar burlar essa preguiça sonolenta que me domina por demais. É como sempre digo, sinto-me acordada somente depois de um banho e de um bom café. Preciso de café preto pela manhã, no mínimo uma xícara. Depois do café, sou outra.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor à noite, gosto de passar horas acordada respirando o silêncio da noite a virar madrugada. Porém, não tenho nenhum ritual para a escrita, sou bagunçada mentalmente, por isso acho que não sou dada a seguir rituais. Talvez, quem sabe eu os siga apenas misteriosamente, como disse Clarice (em ‘Um Sopro de Vida’): “misteriosamente a gente cumpre os rituais da vida”. E, se eu os cumpro – esses tais rituais de viver – penso que seja muito a contragosto.
Não faz muitos anos que eu fui diagnosticada como disléxica. Fiquei um tanto perplexa, porque não me recordo de, em nenhum momento na infância, adolescência ou idade adulta, ter tido problemas com a leitura ou a escrita… Segundo o diagnóstico da neurociência, meu cérebro desde muito cedo achou um ‘atalho’ para lidar com a questão da dislexia, adaptando-se e conseguindo superar o problema por outros meios, de modo que não fiquei com sequelas aparentes. Ou seja, parece que fui salva por algum desvio de padrão cerebral. No entanto, confesso que, desde sempre, tenho enorme dificuldade com a palavra dita (verbalização). Não sei se é timidez (provavelmente sim), mas o fato é que fujo de qualquer centro de atenção, palco, tablado, microfone, megafone, apresentação, declamação, ou qualquer coisa do tipo – definitivamente essa não é a minha ‘encenação’! Prefiro a coxia, atrás das cortinas, a biblioteca, a casa onde dorme, acorda e silencia a palavra, o livro aberto, a caneta esperando o movimento da alma, do coração. Escrever, é fato, tem sido minha tábua de salvação para evitar naufrágios dessa minha ‘suposta’ condição! Enfim, as letras e palavras mal ditas, caladas ou desditas – entre mortas e feridas – salvaram-se quase todas! Ou, quem sabe eu tenha dislexia de coração – a maior perturbação na compreensão do pensamento – por eu não saber dizer a minha alma? Como também dizia Clarice, “escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma” (em ‘Um Sopro de Vida’).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo aleatoriamente, somente quando ‘desce’ a inspiração, se posso dizer assim… Passo dias, semanas, sem escrever nada. Escrever parece não depender de mim. Acho que a palavra só vem a mim quando está pronta, não importa onde eu esteja. Às vezes estou dirigindo e a palavra vem, preciso parar o carro, anotar na caderneta (que eu chamo de ‘caderno de anotar motivos’), para depois voltar e estruturar o texto. Muitas vezes recebo só a ideia, para então, em um tempo futuro, organizar as partes, os elementos, o texto, o contexto. Atualmente estou com quatro ou cinco ideias de textos infantis registradas para desenvolver, aguardando o tempo certo das personagens virem à tona. Portanto, não consigo ter uma meta de escrita diária. Penso que em mim a escrita é justamente um modo de me organizar diante do caos interno, acho que isso é que acaba por me salvar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Costumo anotar ideias em qualquer lugar, caderno, papel, guardanapo, até no celular. Muitas vezes esses registros ficam ali perdidos por meses a fio. Até esqueço. Um dia eu volto, para dar uma relembrada, e então surge o texto. Tudo é muito confuso em mim, não sou nada organizada no mental. Ainda que seja nascida com o sol em capricórnio, com lua e ascendente em touro, toda essa terra deve ter sido jogada no ventilador, derrubada em precipícios, ou simplesmente atirada ao mar, porque me sinto mais do vento ou da água do que sujeita ao chão do mundo… Penso que a escrita em mim se resume a isso:
Na garganta
Se me perguntares outra vez porque escrevo
gritarei contigo todo o meu poema reduzido:
Escrevo porque preciso
– tenho a alma entalada na garganta
e um coração refém dos meus ouvidos –
isso é tudo.
Ou, seguindo Clarice, “estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim” (em ‘Um Sopro de Vida’).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou campeã de travas na escrita. Medalha de ouro em procrastinação. O medo de não conseguir corresponder às expectativas é tão grande que acabo, na maior parte das vezes, deixando para a última hora, porque aí vem uma força estranha que me joga contra a parede e me obriga a arrancar o que precisa ser dito. Sou meio afeita a me escravizar no processo criativo. Tenho que a palavra é minha proprietária.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão é muito mais de digitação, coerência, do que de sentido. Mostro muito pouco os meus textos antes de torná-los visíveis.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende de onde estou quando a inspiração acontece. Se eu tenho um computador ao alcance, recorro a ele. Caso contrário, uso o celular, ou o caderno, um pedaço de papel, qualquer coisa ‘escrevível’ que me permita anotar pensamentos, sentimentos, emoções ou sensações.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não tenho a mínima ideia de onde elas vêm. Gaston Bachelard disse que “uma página em branco dá o direito de sonhar”. Talvez então eu exerça esse direito, e sonhe… Não sigo hábitos. Nem tenho certeza se sou, de fato, criativa. Penso que é mais ou menos isso que acontece comigo:
Ferida aberta
O poeta perguntou ao ‘Divino Deus das Palavras de Dentro’:
– o que é poesia?
– poesia é uma ferida aberta – as palavras são as linhas que costuram a ferida.
– como costurar sem agulha?
– você é a agulha.
Quando escrevi esse texto eu pensava justamente nisso, se de fato a criatividade me é inerente ou não. Aí tive essa impressão, como se a poesia fosse a ferida aberta que eu vejo, ou sinto, ou absorvo do mundo, e ela pode inclusive estar em mim, na minha alma, em meu coração, ou na minha pele. Então eu preciso, por necessidade de sobrevivência mesmo, pegar a palavra (linha) e costurar essa ferida. No caso, portanto, eu sou a agulha que, com a linha, costura a ferida. Mas não sem dor – nunca sem dor.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei a escrever a partir da minha 11ª volta em torno do sol, mas todo o meu escrito era guardado, muito bem guardado em minha caixa de segredos. Depois de adulta continuei escrevendo, colecionando cadernos e rascunhos, textos datilografados. Veio o tempo da vida acadêmica, então estudei astronomia (UFRJ/RJ), parapsicologia (Faculdades Integradas Espírita/PR) e artes plásticas (FAP/PR), mas acabei tendo de largar tudo pelo caminho por variadas encruzilhadas do destino… Depois, vencida pelo cansaço da luta por sobrevivência e, em razão de minha atividade forense, precisei estudar Direito (por inteiro), quem sabe o mais equivocado dos caminhos… Não sei ao certo, o fato é que, por necessidade ou por obra ‘alheia’, exerci atividade jurídica por 27 anos, respirando livros técnicos por todo esse tempo.
Há dois anos finalmente abri asas e abandonei aquele mundo, voltando para a minha casa de dentro e recuperando minhas origens na escrita poética. Hoje continuo vivendo entre livros no sagrado ofício de aprendiz de livreira. Confesso que sou desajeitada. Calada. Quase esquisita. Minha voz tem som de silêncios. Enquanto não consigo dizer-me muito, faço de conta que me faço em palavras. Por isso escrevo: meu manual de sobrevivência. Tenho dois livros prontos para a metamorfose física (um já aprovado e outro em fase de análise por editora) e, enquanto isso não acontece, continuo pincelando participações diversas em antologias e projetos coletivos. Já completei meio século e mais uns pingos de respiro, e eis que sigo nessa linha em novelo, a costurar palavras às vezes rasas, às vezes fundas, beirando ventos e tempestades tão intensas, cerzindo textos a passos lentos, porque palavras em mim não são dadas a sangrias desatadas. Sendo assim, depois de todo esse tempo, tenho certeza de que jamais voltaria à escrita dos meus primeiros textos, prefiro meu exercício do ‘agora’.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou com dois projetos de livros prontos, como já dito anteriormente. Meus projetos a fazer estão relacionados a várias ideias de textos infantis e um ‘oráculo’ poético.