Nic Cardeal é escritora, autora de “Sede de céu – poemas” (Penalux, 2019).

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não organizo nada quando se trata da escrita. Prefiro deixar por conta da vontade, da inspiração, do processo criativo – que em mim acontece muito ao acaso, não sou dada a rituais para criar. Embora eu esteja habituada a acordar cedo, minhas manhãs geralmente são destinadas às tarefas cotidianas. Raramente escrevo nesse período, exceto quando estou em algum projeto com prazo em vias de se esgotar, então é preciso obedecer ao relógio e correr contra o tempo. Assim, o processo literário cotidianamente ocorre no período da tarde. Gosto muito do entardecer para criar, gosto de seguir pela noite, muitas vezes avançando a madrugada. Mas, como disse antes, sem organização, sem método, sem disciplina. Prefiro que a inspiração me invoque para o trabalho criativo. Desse modo, é muito comum que vários projetos aconteçam ao mesmo tempo.
Acho importante ainda registrar que, diante desses tempos tão sombrios de pandemia mundial e do país à deriva nas questões de tratamento aos doentes mais graves e lentidão na vacinação da população, é muito mais difícil fazer funcionar uma organização de trabalho e de inspiração literária. Tem sido praticamente impossível escrever de forma alheia a essa realidade. Não há como evitar a escassez de ânimo e nem como ficar indiferente à realidade, uma vez que a arte e a literatura têm papel social importantíssimo. Como já disse Desmond Tutu, “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Acho que esse pensamento diz tudo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não costumo seguir planejamentos na escrita. Exceto em caso de projetos e/ou concursos, quando há necessidade de pesquisa prévia, estudos, leituras, e quando há um limite de tempo preestabelecido para a apresentação do texto. Mas, no caso do meu processo individual de criação poética, prefiro deixar fluir, deixar que a inspiração chegue a seu modo, sem obrigatoriedades. Como dizia Clarice Lispector, “escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma” (em ‘Um sopro de vida’). E a inspiração quase sempre surge, pelo menos em mim, num certo ‘estado de devaneio’. Porém, não quero dizer com isso que tenho de estar em ‘estado de devaneio’ para poder alcançar esse momento inspirador, às vezes tão difícil e raro. Não. O mundo ao meu redor afeta demais o meu estado interno, influencia muitíssimo o modo como eu lido com esse ‘estado de devaneio’ ou momento de inspiração para o uso da palavra. É impossível viver no mundo físico e não ser afetado por ele, em todos os seus âmbitos e nuances. Somos almas vivendo experiências humanas e, sendo assim, nossa humanidade é suscetível às influências do meio.
Finalizando a pergunta, considero no texto tão difícil a primeira como a última frase. O meio do caminho do texto parece-me o mais tranquilo – começar e finalizar são os pontos cruciais da palavra.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não sou muito apaixonada por rotinas impostas ou autoimpostas, prefiro o aleatório, a liberdade das vontades, da inspiração. Não suporto pressão, exigências, prazos, prefiro a criação sempre de asas abertas, pronta para o voo no momento mais propício à palavra.
Não necessito de silêncio absoluto para escrever, gosto de escrever com música, também escrevo em qualquer ambiente, superfície, lugar. O que move minha escrita é a inspiração, a vontade de dizer.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
De fato, tenho muita facilidade em procrastinar decisões, atitudes, tarefas, compromissos. Não tenho nenhuma técnica para lidar com ela, a não ser forçar-me a realizar as tarefas necessárias antes que o tempo/prazo se esgote. Quando estou envolvida nessa energia de procrastinação, sinto que a escrita só destrava quando o tempo está por um fio e, então, é ele que me joga contra a parede e me obriga a arrancar de dentro o que precisa ser dito.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Além de escrever poesia, contos e crônicas, também escrevo textos para apresentação ou para orelhas de livros e coletâneas. Em 2018 escrevi a apresentação de uma coletânea de textos escritos por mulheres (‘Elas e as letras’, Versejar Edições Literárias, org. de Aldirene Máximo e Jullie Veiga). Esse texto, de fato, foi o mais trabalhoso de ser escrito, mas ao mesmo tempo fiquei muito orgulhosa de tê-lo feito. Foi um mergulho demorado no universo de 57 mulheres, até obter uma apresentação adequada ao objetivo da coletânea. Penso que o resultado ficou bastante satisfatório. Transcrevo abaixo:
Apresentação
O poeta perguntou ao ‘Divino Deus das Palavras de Dentro’: – o que é poesia? – poesia é uma ferida aberta – as palavras são as linhas que costuram a ferida. – como costurar sem agulha? – você é a agulha. (Nic Cardeal – Ferida aberta)
Quando recebi o convite para fazer a apresentação desta antologia, fui tomada de susto. Em princípio pensei em recusar. Como apresentar cinquenta e sete autoras (digo, cinquenta e seis – pois eu sou a quinquagésima sétima), quase a maioria absoluta por mim desconhecida? De cinquenta e sete conheço pessoalmente apenas duas. Outras há que tenho contato apenas nessa realidade paralela do mundo virtual. Depois de muito refletir, arrisquei assumir a responsabilidade de mergulhar de cabeça, alma e coração, durante quase trinta dias, na palavra de cada uma delas, na tentativa de sair inteira e pronta ao desafio.
Cá estou. Não diria inteira, tampouco pronta, mas maravilhada diante de tantas palavras, de tantas mulheres, de tantos sentidos. Diante da poesia, da prosa poética, da vida, da verdade, da fantasia, da ética. Surge então a pergunta: por que tantas mulheres hoje se atrevem à escrita? Estaremos ultrapassando os limites acadêmicos da literatura em seus conceitos mais amplos? Há, afinal, enquadramentos preestabelecidos acerca do que é ser escritor? Confesso, não ouso responder. Prefiro ficar com a opinião de Clarice (sim, a Lispector): “Escrevo por simples curiosidade intensa” (in: A Descoberta do Mundo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984). Porque a curiosidade humana é inata. Há quem diga – a das mulheres, talvez maior – e intensa, muito intensa! Curiosidade leva à busca. E será “serena a busca se há dança com o que te venta a alma”, como dirá aqui a poeta Ilana Eleá (Mil folhas).
A tarefa de apresentar esta coletânea não é das mais simples. Porque somos cinquenta e sete múltiplas faces da mesma ‘moeda’ – o feminino, que por si só é todo plural, no âmago da sua natureza geradora de vidas. Porque cada qual é um universo único, cerzido de diversas partes de si, o qual, nos ‘remendos’ do viver, carrega a tarefa, nem sempre leve, de exercer variadas atividades profissionais, além do ofício da escrita. Como muito bem disse a grande escritora Maria Valéria Rezende, “a “literatura de autoria feminina” só se pode dizer bem no plural: “literaturas de autoria feminina”, um mundo a se explorar na sua riqueza, variedade, qualidade e um amplo futuro!” (in: Mulherio das Letras – contos e crônicas, Recife: Mariposa Cartonera, 2017, vols. 1/3, org. Henriette Effenberger).
Aqui você encontrará justa homenagem à escritora, poeta, psicóloga e artista visual Clevane Pessoa, além da coletânea de textos de quatro convidadas, quarenta e três participantes, sete participações especiais, e duas organizadoras. Não há possibilidade de apresentar a peculiar escrita de cada uma, creio que o curto espaço permite apenas breve varredura de curta amplitude. Mas é fato: ‘Elas e as Letras’ são múltiplas, plurais: há aqui mulheres psicólogas, terapeutas, artistas plásticas, ilustradoras, cineastas, produtoras, roteiristas, compositoras, atrizes, bailarinas, professoras, pedagogas, narradoras de histórias, advogadas, jornalistas, blogueiras, biólogas, fisioterapeutas, sociólogas, tradutoras, revisoras, engenheiras, administradoras, pesquisadoras, matemáticas, representantes comerciais, mestras e/ou doutoras em várias áreas. A maioria delas também é esposa e/ou mãe. Todas unidas por um mesmo propósito: a escrita. Todas raras. Então, “dá-me a alegria da tua raridade” (Márcia Cardeal, Oração).
Cá entre nós: tenho certeza de que cada uma faria tudo de novo. Sabemos bem que o tempo insólito nos rouba as forças, mas o desejo escondido no canto da boca faz revirar nossos sentidos e, então, a metamorfose acontece. Somos mulheres, somos abstrações, perguntas, respostas, dúvidas, decisões. Somos aquelas que colocam fantasmas à mesa. Sim, sabemos bem: depois de tudo, também as mulheres envelhecem. Por isso, não nos venham zombar da idade! Saibam que não sairemos em retirada! Porque somos tecituras, raízes semeando jardins. Somos caminhos e escolhas. E o tempo – esse afoito brincador de relógios – não será obstáculo à palavra – nossa escrita em revoada. Seremos sempre mais. Muitas mais! Simples assim. Mesmo que a palavra nos chegue na forma de tinteiro de lágrimas, não há que duvidar tampouco que ainda assim será dita, escrita, lida e decorada, nesse louco carrossel da vida! E disso ninguém duvida!
Aqui confessamos nossos hiatos de fora e de dentro, nossa resiliência, nossos medos e nossa bem–aventurada coragem, saltamos a pedra do caminho, fratura exposta nas entrelinhas desses tempos cinzas sob as massas cinzentas. Pode ser em forma de confissão do amor ou em puro devaneio, ou na forma de breves lições em florações de inverno. Pode ser um grito reverberado, perdido dentro da noite surda, em plena balada da escuridão… Não faz a menor diferença! O que é realmente importante? A palavra – nosso pedaço de pão! Seguiremos assim, pois eis aqui o nosso verdadeiro Brasil: ainda que nos amarrem mordaças, que nos impeçam o grito, que nos açoitem o corpo e também a alma, lutaremos sempre por liberdade na palavra! Além da liberdade, em nome do sagrado ofício da escrita, estaremos também navegando em mar aberto, na inquietude de águas revoltas, na confluência de rios profundos, quiçá lagos absortos! A viagem do querer nos fará sempre juntas, mulheres vastas, espelhos côncavos ou convexos, nos reflexos dessas memórias póstumas de nossas próprias vidas a morrer gota a gota a cada dia. Mas nossa luta não será vã!
Sim, tenho certeza de que cada uma de nós entraria vezes mil nesse mesmo barco, para dançar o casamento divino com a palavra tantas vezes quantas fossem necessárias. Mesmo que fosse por um breve conto do fio que costura a linha tênue da vida, ou para lembrar, em longa prosa, como é, de fato, o gosto da bebida amarga que se destila dos revezes da vida, num reencontro entre mundos tão insólitos… Não importa. Tudo sempre comporta! Estejamos certas. A palavra é a flecha. O alvo – nós – atravessadas em âmago e pele e ventre e veia e lágrima – pela flecha! Ainda que na aurora boreal, ou em perfeito estado de sol refletido nas marcas internas das doenças da alma, a simbiose é certa – mulher: ninho na terra percorrendo ciclos, andarilha de tantos caminhos, diamante bruto ou polido, mil folhas na máquina de escrever a registrar a oração dos apaixonados ou a contar como será a sina de terminar de desembrulhar o pacote da vida, tamanho M (mulher) ou T (talvez)!
Sim, faríamos tudo outra vez, meninas! Eis a magia: depois de lidos todos os livros vermelhos da infância, estamos aptas a seguir em busca da conquista do vento – nosso grande alento! Somos pedra, somos sopro – e somos o próprio tempo. Somos sempre – e somos por enquanto. Eis aqui nossa súplica ao sonhar, totalmente pronta e entregue no colo da deusa lunar! Porque mulher escritora é como lua quase transbordando urgências muito redondas. Mulher que precisa muito, sempre, escrever. Ou quase sempre. Mesmo sem receita: “Não me peças a receita, só sei escrever à mão”(Vanessa Ratton, Meus versos) Assim como as fases (faces) da lua, mulher bem sabe das suas urgências inteiras, em pedaços, em riscos ou em suaves traços. Que a palavra seja dita. Sentida. Redescoberta. E,
Se me perguntares outra vez porque escrevo gritarei contigo todo o meu poema reduzido: escrevo porque preciso – tenho a alma entalada na garganta e um coração refém dos meus ouvidos – Isso é tudo. (Nic Cardeal – Na garganta)
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Não costumo escolher temas para os livros. Escrevo os textos, guardo-os em arquivos no notebook, depois de muito tempo retomo o material guardado, seleciono os que melhor se harmonizam para comporem juntos uma obra. Não mantenho nenhum(a) leitor(a) ideal em mente, apenas escrevo – o(a) leitor(a) é um sujeito com o qual não dialogo enquanto escrevo. Se haverá – ou não – um(a) leitor(a) para o texto, não sei dizer – não penso nisso enquanto estou no processo da escrita. Apenas depois do parto da palavra é que irei pensar no projeto de vida [curta ou longa] do texto escrito, e de sua interação com o outro – o(a) leitor(a).
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Confesso que nunca me sinto à vontade – há sempre a dúvida pairando no ar. Embora esteja sempre atolada de dúvidas quanto à minha capacidade literária de tocar o(a) leitor(a), mesmo assim insisto, e mostro meus rascunhos, apesar das inseguranças. As primeiras pessoas são sempre as mesmas – primeiro, uma grande amiga que é especializada em Comunicação, depois, uma revisora, um editor e, por último, o(a) leitor(a), após a publicação oficial.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Na verdade, escrevo desde sempre, lembro de ter começado a rabiscar pequenos poemas já na infância. Depois de adulta continuei a escrever, colecionando cadernos e rascunhos manuscritos, ou textos datilografados e posteriormente digitados. No período acadêmico naveguei por diversas águas, meio que à deriva, e precisei largar tudo pelo caminho por variadas razões do destino – nesse tempo passei pela UFRJ/RJ (Astronomia), Faculdades Integradas Espírita/PR (Parapsicologia); FAP/PR (Artes Plásticas). Acabei concluindo Direito (Unisul/SC), uma vez que já exercia atividade profissional na área jurídica antes da graduação, e por 27 anos trabalhei especialmente com textos jurídicos. Somente mais tarde, em 2016, é que passei a me dedicar totalmente aos livros e à escrita.
O que eu gostaria de ter ouvido? Eu gostaria de ter ouvido, quando comecei, lá distante na juventude, que eu ‘levava jeito para a coisa’ e, portanto, deveria focar a vida nos caminhos da literatura já desde aquele tempo. Talvez agora já seja tarde, quem sabe…
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Confesso que nunca refleti sobre isso, na verdade não sei se possuo um estilo próprio. Como não tenho formação acadêmica em Letras/Literatura, penso que não fui racionalmente direcionada a algum estilo específico, e nem me dei conta se de fato cheguei a desenvolver algum estilo no decorrer dos anos – ou quais dificuldades possa ter encontrado no caso de tê-lo desenvolvido. Certa vez escrevi assim (e talvez esse texto defina bem essa minha natureza nada habituada a estilos preestabelecidos):
DAS ENTRANHAS Não sou das letras. Sou das veias. Aquelas que nascem entre coração e mundo de fora entre alma e mundo de dentro deixando escapar rios de sentir. Não ocupo nenhuma cadeira. Sou caseira. Meu ofício é artesão: faço das tripas coração para traduzir-me em palavras ainda que sejam rasas servem-me sobremaneira na medida propícia para o entendimento de mundo. Não sou das beiras. Sou das profundezas. Das entranhas sem artimanhas. Faço das tripas coração para virar-me do avesso quem sabe assim pagarei o preço na soma exata da palavra dita. Por isso escrevo e me atrevo. (Nic Cardeal – poema integrante do livro ‘Sede de Céu’, Penalux/2019, pág. 125)
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
É muito difícil restringir a recomendação a apenas um livro, pois são inúmeros os que deveriam ser lidos, principalmente os clássicos da literatura brasileira e universal. Ao mesmo tempo, considero uma tarefa complicada indicar livros, uma vez que depende muito do gosto de cada leitor – há os que são apaixonados por poesia, os que só gostam de ler romances, outros que se dedicam à leitura de biografias, e assim por diante. De todo modo, já que devo responder à pergunta, sugiro quatro lidos recentemente, em ordem cronológica de leitura:
- ‘Todas as crônicas’, de Clarice Lispector
- ‘Só garotos’, de Patti Smith
- ‘O coração pensa constantemente’, de Rosângela Vieira Rocha
- ‘O voo da guará vermelha’, de Maria Valéria Rezende
Além desses, indico entusiasticamente ‘Torto arado’, de Itamar Vieira Junior, e ‘Dicionário de imprecisões’, de Ana Elisa Ribeiro, os quais, embora ainda não tenha adquirido e lido, estão no topo da minha lista de desejos.