Nelson Hoffmann é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Buenas, tchê!, de cara uma pergunta meio divertida. Para mim. “Como eu começo o meu dia”? Pois, o meu “dia” só começa quando a noite vem chegando, aí, por volta das cinco horas da tarde. É a hora em que eu saio da cama, levanto. Desde que me aposentei, sigo esse ritmo, rotina. É mais gostoso, mais produtivo, e é uma tendência biológica minha. Costumo deitar por volta das cinco horas da manhã e levantar em torno das cinco horas da tarde.
Então, quando levanto, ligo o computador, que está comigo aqui, no quarto; vou ao banheiro para a higiene pessoal; sigo à cozinha, aqueço água e faço um chimarrão. Pronto, com cuia e térmica na mão, abanco-me na área de frente da minha casa. É a hora em que o pessoal sai de serviços e empregos e faz suas caminhadas pela calçada desta minha rua. Como a cidade é pequena e eu sou antigo, todos me conhecem e eu conheço todos. Há cumprimentos, observações corriqueiras ou chistosas, troca de risos. Sinto-me bem.
O vento sopra leve, ou forte ou, muita vez, inexiste. Das árvores da calçada, então, folha alguma se mexe. Ou é solta e voa e rodopia ao sabor da ventania.
Carros passam, indo e vindo, cada um conforme o humor de seu motorista. Estudantes, mochilas a tiracolo, tagarelam caminhado para as aulas noturnas. A escola, a principal da cidade, fica pertinho, um pouco adiante.
E eu, saboreando meu chimarrão, fico olhando, observando, pensando…
Acordo. As aulas começam às sete horas da noite, o computador está ligado no quarto.
Antes, um pequeno lanche.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Depois do lanche, já sete e meia, quase oito, da noite, a mesa de trabalho, no quarto. No computador, os e-mails, o noticiário, bisbilhotada no facebook, abertura da pasta dos documentos. Feito.
Seguindo. Leitura de jornais impressos, correspondências, folhetos, papelada toda. Lido, separado pra resposta, arquivado ou jogado ao lixo.
Agora, o quê? Um lembrete ao lado, sob o mouse e os óculos, avisa a tarefa da noite… o lembrete vem do fim da noite anterior.
Que horas são? Nove e meia, dez… Mais uma vistoria aqui, outra ali. Coisa de se mexer sem perder o fio da meada do lembrete.
A melhor hora pra trabalhar? Hora que rende mesmo? De perto da meia-noite em diante. Até perto de clarear o dia. Com um leve fundo musical clássico, a gente fica só. Ninguém incomoda, nada atrapalha. A cabeça da gente corre solta, a tela do computador registra. Só. E a gente vive o que está digitando. É o mundo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Essa pergunta sempre me deixou intrigado, atrapalhado. Dá-me sempre a impressão de que “escrever” se restringe a um ato, um gesto, uma realização estanque, marcado por horas, dias ou períodos. Além de quantias materiais e objetivas realizadas ou a serem. Como se a gente sentasse diante do computador e assumisse: “Agora eu sou escritor”. E então algum espírito baixasse do alto e a gente ficaria a digitar palavras para a imortalidade.
Não consigo ver o “escrever” assim, demarcado e determinado.
“Escrever”, para mim, é coisa de vinte e quatro por dia, todos os dias, sempre. É a própria vida. Escrever é viver. O ato ou gesto de colocar o “escrever” no papel é outra coisa. É só uma pequena amostra de tudo que se colheu, ruminou e escreveu por dentro de si. É só um ato de expulsar, vomitar, uma parcela do todo. É a catarse de Aristóteles.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita ─ sempre digo que não “escrevo”, só “rabisco coisas” ─ é muito simples. Já tenho ao lado a tarefa anotada desde a noite anterior. Essa tarefa está dentro de mim e, dormindo ou acordado, ela foi trabalhada em meu interior, na minha (in)consciência. Então, na hora do teclado e da tela do monitor, pra começar, eu anoto, a lápis, em um papel ao lado: início, meio e fim. Como fazia o Jorge Luís Borges: a primeira frase e a última frase; no meio, o preenchimento, a ligação entre a primeira e a última frase. É a velha lição da sala de aula do curso primário sobre redação: introdução, desenvolvimento, conclusão. O título já vinha anotado no lembrete da noite anterior, pois que é a síntese da tarefa a ser executada.
Com a primeira frase escrita, eu já comecei. É o trabalho a ser executado, ao natural, programado desde a noite anterior. As notas compiladas, os recortes de jornais, revistas, as anotações de livros, tudo o que possa importar ao assunto está aqui, a meu lado, em envelope grande e pardo. Este vem de anos. Escrever é tarefa de vinte e quatro horas, repito, todos os dias, uma vida. Sempre é preciso anotar, pesquisar, arquivar. Na hora e vez da tarefa programada, é só buscar o envelope atinente e com o material coletado.
Começada a escrita, esse material todo, coletado em anos, entra em cena para o meio, o miolo, do texto a ser escrito. O tema está definido pelo título, o começo está lançado. Agora, só resta desenvolver tema e princípio para alcançar o fim.
No desenvolvimento do tema, pelo menos três aspectos são fundamentais:
- Historiar o tema em foco;
- Apresentar a posição atual;
- Comparar o 1. e o 2.
Feito isso, só resta a conclusão. O fim. A última frase.
Muito simples. E bem comum.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Travas da escrita…
A procrastinação já me incomodou muito, sofri com esse problema. Hoje ele é pequeno em mim. Basta olhar as respostas anteriores para ver que sigo uma rotina pragmática, em que as tarefas vão se encadeando, quase anulando a chance de uma brecha para devaneios e, assim, fazer novos planos, adiar algum início de tarefa. Na procrastinação fica-se “sonhando”, procurando desculpas pra não agir, prometendo realizações para depois. E depois para outro depois.
Um dia, eu já fui fumante doentio, um dia eu adiava, mais uma vez, uma palestra escolar sobre Literatura. A Coordenadoria Regional de Educação, com quem eu assumira o compromisso, entrou em contato comigo e reclamou. Lá pelas tantas, em meio à conversa telefônica, tive um acesso de tosse… Eu estava conversando e fumando. A professora que me contatara e era minha amiga, xingou: “Para de fumar”. Prometi que iria parar dali a dois meses, no início do novo ano. Ela acalmou, suave e convincente: “Por que não agora”? E desligou.
Tornei o fone ao seu lugar, fiz o gesto automático de pegar novo cigarro. A pergunta ecoou dentro de mim: “Por que não agora”? Fiquei olhando pro cigarro, não peguei. Nunca mais peguei um cigarro. Sempre que eu fazia o gesto impulsivo, surgia a pergunta: “Por que não agora”? E já fazem vinte e dois anos.
Ao procrastinador: “Por que não agora”?
Medo de não corresponder às expectativas? Não tenho, não me preocupo. Já tive, sim. Hoje, o livro publicado tem vida própria, o problema é dele. Eu o acompanho, curto e sofro seus passos. Mas ele é ele.
Meio estranho isso, não? É como ter filho. A gente quer um filho, sonha com seu futuro. Mas, quando ele nasce/é publicado, ele adquire vida própria. Por mais que eu queira orientá-lo, ajudá-lo, defendê-lo, não adianta. Ele é ele.
Ansiedade de trabalhar em projetos longos? Também não sofro. Embora eu atue em todos os gêneros literários, sou fundamentalmente Narrador. Pode-se ver isso por esta entrevista. A Narrativa sempre foi/é minha busca. Dentro da narrativa, a Ficção. Na Ficção, o texto longo. O Romance.
O romance é um projeto longo. Quando me boto a escrever um, busco o envelope de minhas anotações, compilações de anos. Deito-o aqui, ao lado. Depois, como já registrei antes, esquematizo começo, meio, fim. Divido tudo em “x” capítulos e anoto o ato/fato a aparecer em cada capítulo. Isso tudo, a lápis, em papel que fica deitado aqui, ao meu lado. É o mapa do projeto todo.
Sem ansiedade, em rotina, começo a seguir o mapa, escrevendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É preciso lembrar que, quando inicio um texto, eu primeiro faço um esquema, que fica ao lado do teclado do computador, à vista. É meu “mapa” ou GPS, como se quiser.
Por ele, vou teclando uma primeira versão, com dura fiscalização minha na tela do monitor. Cada detalhe é pensado, em especial, a clareza, a objetividade, a eufonia. Cada palavra deve ter peso, força e carga de um mundo.
Esta primeira versão, já quase definitiva, é, então, impressa e passada para minha filha Inês Hoffmann. Ela, que é grande poeta, eleita por Fábio Lucas e outros como “a grande revelação lírica da poesia brasileira em 2006” e traduzida e aplaudida em países da Europa, é sempre a única pessoa que lê meus originais e de quem escuto opinião.
Com base na leitura da Inês e minha releitura, faço as correções que se mostram necessárias. É a segunda versão. Que ela e eu discutimos, juntos.
Depois, a terceira é definitiva e vai para a publicação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Buenas, amigo, esta pergunta já me parece respondida nos itens anteriores, em especial neste último. À mão, faço um esquema. Depois, vou pro computador. Sou fã do computador, trabalho tudo no computador, que é a melhor máquina que já se inventou para um escritor.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Suponho que, na pergunta, “ideias” refira-se a temas, assuntos de textos. Nesse sentido, a resposta é, basicamente, Observação e Reflexão. Antes, na primeira pergunta, registrei que, tomando chimarrão, fico “observando, pensando”. O mundo está aí, é só ter olhos para ver e cabeça pra pensar. A realidade supera a ficção. Na escrita a gente tem censura e autocensura; na realidade da vida e mundo, as coisas simplesmente acontecem.
Observar e refletir a vida e o mundo são meus hábitos desde a meninice.
O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros livros?
Ora, ora, eu faria tudo igualzinho, de novo. Em primeiro lugar, para dizer coisa diferente eu teria que ter, também, uma idade diferente, voltar àquele tempo. Depois, quando se escreve um livro, deve-se escrever como se o livro, que se está escrevendo, fosse o último e definitivo e melhor de sua vida. A cada novo livro, busco superar o livro anterior. Por que voltar atrás? Onde fica a caminhada, a busca da perfeição? Por fim, curiosamente, o meu primeiro livro, “A Bofetada”, publicado em 1978, hoje é considerado um clássico.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nenhum projeto novo. Eu próprio sou-me um projeto. E tenho um monte de projetos de livros em andamento, dentro de mim. Alguns há mais de quarenta anos. As anotações estão sendo feitas, os detalhes decididos, mas a hora do parto ainda não chegou. Quando chegarem as dores da expulsão, vômito, catarse, será um processo rápido, já delineado.
Ler um livro que ainda não existe? Tenho aqui, em minha biblioteca, mais de vinte mil volumes e vou procurar/sonhar com algum livro extraordinário, ainda inexistente?
O melhor livro está dentro da gente, é a gente mesmo. Basta ler-se. Leio-me sempre e gostaria de saber o final. Qual será? Só os outros saberão.