Nelson de Oliveira é escritor, Luiz Bras é ficcionista, Valerio Oliveira é poeta, Sofia Soft é cronista e fotógrafa, Lua Solaris & Sol Lunaris são cartunistas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A primeira coisa que eu faço ao abrir os olhos é constatar que felizmente ainda tenho olhos. A segunda coisa é me localizar no tempo e no espaço: medir a temperatura das sombras. Dos minutos fluindo no despertador. Às vezes acordo semanas antes. Às vezes, meses depois. Ao acordar, sempre examino minhas mãos. O nó dos dedos, os anéis ou a ausência de anéis. É assim que eu descubro rapidamente em qual corpo estou. O primeiro sinal é o grau de nitidez da visão. Cadê meus óculos? Luiz Bras é bastante míope. O astigmatismo de Valerio Oliveira não negocia. Os gêmeos Lua Solaris e Sol Lunaris enxergam perfeitamente. As próteses oculares de Sofia Soft permitem também a visão noturna. Fim dos bocejos, começo da luz. A rotina matinal, quando a gente sabe quem realmente é, costuma ser tranquila. Quase rotineira. Luiz prefere café amargo & torradas. Valerio-zen não ingere nada antes do meio-dia, apenas água ou chá. Os gêmeos gostam mais de frutas & iogurte na frente do computador. Sofia praticamente almoça às oito horas da manhã.
Em que hora do dia vocês sentem que trabalham melhor? Vocês têm algum ritual de preparação para a escrita?
A alquimia da escrita responde melhor se o escritor-alquimista não se preocupar nadinha com prazos & cronogramas & horários & boletos. Principalmente com os boletos. Horário? Luiz Bras prefere coreografar nuvens pacíficas à tarde & oceanos violentos à noite. A rapsódia Distrito federal e a novela Não chore foram escritas durante essas tempestades em alto-mar. Valerio Oliveira não gosta tanto assim do substantivo alquimia, ele prefere feitiçaria mesmo, mas o poeta também reconhece que, independentemente do nome − alquimia, feitiçaria, xamanismo, música, arte, literatura ou mesmo tecnociência −, qualquer atividade criativa precisa dialogar abertamente com os diversos níveis naturais do sobrenatural. Rituais? Sofia Soft sempre bebe uma dose de vodca antes de escrever e só escreve fora de casa, geralmente em parques & praças. Sua claustrofobia branda recusa escritórios & outros ambientes fechados. Lua Solaris e Sol Lunaris não escrevem, a linguagem dos gêmeos é o desenho e a pintura, e ambos gostam de rascunhar à tarde & finalizar à noite, sob o efeito de incensos psicotrópicos, às vezes de madrugada, quando a cidade revela o reflexo de seu avesso refletido em inúmeros reflexos-avessos. A novela gráfica Teoria do caos está sendo desenhada assim. Valerio acaricia pedras & cristais, quando está trabalhando num poema. Luiz acaricia seu gato, entre um parágrafo & outro.
Vocês escrevem um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Vocês têm uma meta de escrita diária?
Um pouco todos os dias. Mas também em períodos concentrados. As personas literárias se revezam, mas não pacificamente. O gatilho pode ser uma notícia, um cartum, a cena de um filme, um comentário qualquer… Esse é um processo que eu não consigo controlar totalmente. Na tarde em que Sofia estava tentando finalizar uma crônica para o jornal Rascunho, o famigerado Valerio constantemente a empurrava pra longe do palco. Valerio estava tentando finalizar sua mais recente coletânea de poemas, O ser humano na era de sua reprodutibilidade tática. Bem mais tranquilo que os demais, Luiz passa mais tempo lendo ou assistindo a palestras na web do que escrevendo. Lua Solaris gosta de desenhar todos os dias, mas já se ausentou por longos períodos. Sol Lunaris prefere ficar nos bastidores, camuflado, escutando a música da mobília, do teto e das paredes, e observando a movimentação dos outros criativos. Ele só começa a pintar quando todos foram dormir − incluindo a mobília, o teto e as paredes − e o apartamento está em total silêncio. É muito raro, mas acontece.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que vocês compilaram notas suficientes, é difícil começar? Como vocês se movem da pesquisa para a escrita?
Luiz Bras, atual diretor de nosso LunaLaby [Laboratöryo de Lyteratura Lunätyka], costuma dizer que não escrever já faz parte do processo de escrita de um conto ou romance. Nesse tópico o ficcionista e o poeta concordam. Valerio Oliveira também diz que dormir, comer, lavar a roupa, caminhar no parque, dançar, fazer sexo, enfim, qualquer atividade não literária já faz parte da escrita de um novo livro de poemas se o autor mantiver a mente sempre em estado de poesia. Então não há um movimento da pesquisa para a escrita. Ambas acontecem paralelamente, uma provocando a outra, em sincronia operacional. (Os outros alter egos saíram do recinto antes de responderem a pergunta. Foram atrás de Tangolomango, o gato trans do Luiz, que aproveitou o descuido da porta da sala aberta & fugiu pela escada.)
Como vocês lidam com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sofia Soft é a mais travada dos cinco. Mas não use essa palavra na presença dela. Sofia não se considera uma cronista travada. Ela interage de maneira muito afetiva & transparente com seu material literário. É um diálogo mais emocional do que racional, e essa relação dinâmica, totalmente orgânica, impõe seu próprio ritmo criativo. Então, não há medo nem ansiedade nessa equação. As paisagens literárias, para a sossegada Sofia, são um potente campo de atração. Essas paisagens-espirais atraem justamente o exercício da liberdade. Páginas & páginas livres de expectativas inalcançáveis… Livres de obrigações torturantes… Cheias de reticências… E o texto finalizado, quando surge, surge sempre no momento certo, pois é o resultado virtuoso dessa equação-paisagem. Que a bendita verdade seja dita: não há qualquer procrastinação, mesmo quando Sofia procrastina um pouco, trocando a escrita pela fotografia. Só não use essa palavra na presença dela. Sofia não se considera uma pro, cras, ti, na, do, ra. Ela apenas gosta de esticar ao máximo o prazer preguiçoso da inércia criativa, o gozo ocioso que sempre antecede o orgasmo.
Quantas vezes vocês revisam seus textos antes de sentirem que eles estão prontos? Vocês mostram seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Valerio Oliveira é o mais insatisfeito do grupo. É o meticuloso-obsessivo-compulsivo da revisão, às vezes da revisão da revisão. Está sempre substituindo palavras & voltando atrás, está sempre testando assonâncias & aliterações & voltando atrás. Nós já testemunhamos o poeta tirar & colocar a mesma vírgula dezessete vezes num verso, sem se decidir se aquele verso ficava melhor com a vírgula ou sem ela. Depois ele experimentou quebrar o verso bem no meio, mas voltou atrás. Em seguida ele experimentou alinhar todo o poema à direita, mas voltou atrás. Mas depois de voltar atrás em todas as situações apontadas ele voltou atrás de voltar atrás. Um pesadelo de idas & vindas! Sorte nossa que o Valerio jamais nos mostra as várias versões de um poema antes de sentir que o poema está irremediavelmente pronto. Sofia Soft, ao contrário, gosta de ouvir a opinião dos amigos, antes de considerar um texto finalizado. Luiz Bras não se preocupa tanto com as microvariações estilísticas nem com a opinião alheia. Por exemplo, antes da publicação num jornal ou numa revista, Luiz revisa uma ou duas vezes um conto, passa pra alguém ler, conversa rapidamente sobre as impressões do leitor, finaliza a escrita & jamais volta a reler o conto depois de publicado.
Quem é Nelson de Oliveira? Notei que até agora ele não foi mencionado.
É um espectro asiático. Ou um visitante interdimensional. Talvez apenas uma consciência viajante, sem corpo físico. Na verdade, nós não sabemos exatamente quem é esse indivíduo. Sempre chegam correspondências endereçadas a ele, mas nunca o encontramos pessoalmente ou virtualmente, e as correspondências simplesmente desaparecem. Muito tempo atrás, Sofia encontrou uma pasta chamada Tropicalismo mágico na mesa de seu laptop. Dentro da pasta ela encontrou o arquivo de dois romances, Subsolo infinito e Gigante pela própria natureza, e de um par de coletâneas de minicontos: Vinte & um e Às moscas, armas! Todos assinados por Nelson de Oliveira. Mas semanas atrás a pasta inteira também desapareceu. Dizem que muitos de seus livros físicos, de papel, também andaram desaparecendo das estantes. Viraram fumacinha prateada. É um fenômeno que ainda precisa ser melhor investigado. Depois que o irresponsável senhor Oliveira publicou aqueles artigos no jornal Rascunho, detonando a idolatria a Machado de Assis, o conservadorismo da Academia Brasileira de Letras, os escritores domesticados pela carreira acadêmica e o fetichismo da diacronia histórica, era natural que ele fosse invisibilizado pelo establishment.
Como é sua relação com a tecnologia? Vocês escrevem seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tecnociência avançada é a praia do Luiz Bras. Essa inclinação para o amanhã levou-o a formar o coletivo KriptoKaipora, com outros escritores paulistanos que apreciam a ficção futurista. No momento Luiz está aprendendo a criar ficção com a ajuda de uma inteligência artificial. Podemos dizer que seus últimos contos foram escritos a duas mentes: biológica & eletrônica. Luiz define os parâmetros básicos da narrativa, incluindo o número de palavras, e pede ao programa que produza o primeiro rascunho, que em seguida é retrabalhado pelo autor de carne & osso. Valerio, ao contrário, tem pavor dos sistemas eletrônicos de escrita. Ele escreve primeiro num caderno & detesta todo o tipo de interferência externa, incluindo a humana. Certa vez um editor tentou melhorar um de seus poemas & também mexer na seleção e na ordenação da coletânea inteira… O final dessa história foi tragicômico. Enfim, segue o baile. Sofia costuma rascunhar diretamente no smartphone & finalizar no laptop, mas somente se sentir que o rascunho tem potencial. Seu smartphone está cheio de rascunhos adormecidos… E de fotos em estado randômico, pois a fotografia é sua segunda paixão. Lua Solaris costuma fazer muitos esboços num sketchbook antes de finalizar o desenho numa folha avulsa de papel. Sol Lunaris também, quando está trabalhando com a irmã oito minutos mais velha. Mas quando está trabalhando sozinho (solzinho?) ele não faz esboço algum. Prefere trabalhar diretamente no papel ou na tradicional tela de algodão. Prefere ver o desenho ou a pintura surgirem espontaneamente diante de seus olhos. Os gêmeos só usam os dispositivos digitais em casos muito específicos (ilustração editorial ou história em quadrinhos).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que vocês cultivam para se manter criativos?
Boa parte de nossas ideias é geralmente sussurrada pelos fantasmas da ayahuasca. Elas vêm do passado distante. Mas também podem vir do futuro. Outra parte surge de um estímulo menos psico-sobrenatural, mais prosaico. De uma conversa, de uma imagem ou de uma música, da leitura de um texto, de um filme… Sofia está sempre atenta às pessoas ao seu redor, reais & virtuais. Ela costuma colher na rua e nas redes sociais o assunto para suas crônicas e para a peça de teatro que está escrevendo atualmente: Senhas assassinas. Luiz costuma buscar inspiração em artigos científicos sobre a revolução pós-humana. Pesquisas sobre engenharia genética, drogas da inteligência, conexão cérebro-computador, robôs & androides, veículos & cidades autônomos, viagens espaciais, esses temas. Valerio não gosta de revelar de onde vêm seus poemas. Aliás, ele detesta “escritor geralmente sem talento que vive tagarelando sobre as firulas de seu processo criativo, de seus rituais estúpidos, em vez de escrever literatura relevante”… (Calma, velhote! Baixa o topete, camarada.) De volta ao território do psico-sobrenatural, os gêmeos costumam dizer que são as ideias − passadas & futuras − que se expressam através de sua arte, não o contrário. Eles seriam apenas uma espécie de tecnocavalo-de-santo das ideias originais.
O que vocês acham que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que vocês diriam a si mesmos se pudessem voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo de escrita de cada alter ego não mudou muito ao longo dos anos. Podemos dizer o mesmo do processo artístico dos gêmeos desenhistas. O que foi mudando com o tempo foi a quantidade de personas criativas. No início havia apenas uma. Anos depois surgiu a segunda. Depois a terceira, a quarta e a quinta, em menos tempo. O apartamento e as vinte e quatro horas diárias ficaram pequenos demais. Nada garante que não surgirão outras entidades. Mas noto que certa promiscuidade anda ganhando espaço… Já não consigo garantir que determinado livro foi escrito apenas por um alter ego. Ou que as personas literárias não estão interferindo inconscientemente, durante o sono, no trabalho umas das outras. Por isso o e-book Bangue-bangue de bolso, com exercícios & reflexões para jovens escritores, foi assinado pelo quinteto inteiro: Paisagem Personas.
Falem um pouco sobre as oficinas de escrita criativa.
Luiz Bras é o oficineiro mais experiente de nosso grupo. Na verdade, podemos dizer que ele é o único oficineiro da casa, afinal não sabemos se o Nelson de Oliveira ainda mora aqui (parece que não) ou se já emigrou pra outro plano existencial. Ou se já se metamorfoseou em baobá, afinal seu grande sonho sempre foi fazer fotossíntese, ser um legítimo animal-vegetal. Luiz atualmente coordena o Ateliê Escrevendo o Futuro, de ficção futurista. Nelson, mais experiente, coordenou a Oficina de Criação Literária durante dezoito anos, em várias instituições públicas & particulares. Num de seus manifestos a favor das oficinas de escrita criativa, ele afirmou: “Escrever é criar mais espaço de qualidade em nossa psique, ampliando nosso território íntimo. Ler é análogo a escrever: uma expansão do mapa-múndi sensorial e intelectual. Conversar sobre um texto pode ser um confronto ou uma aliança. Mas conversar sobre um texto é um esporte cada vez mais raro na Era das Redes Sociais, em que todos escrevem mas quase ninguém lê. E os que leem quase não comentam. E os que comentam raramente se aprofundam. Essa é a grande vantagem das oficinas de criação literária: um bom suprimento de leitores atentos, olho no olho. O segredo de seu sucesso parece ser a instauração, nas salas com ar-condicionado, da primitiva fogueira comunitária.” (Moleskine tropical: dezesseis notinhas sobre a pajelança)
Que projeto vocês gostariam de fazer, mas ainda não começaram? Que livro vocês gostariam de ler e ele ainda não existe?
Que pergunta maravilhosa, meu caro. Respondendo pelo quinteto, gostaríamos de concluir um projeto multimídia envolvendo a telepatia. Essa ideia surgiu durante a leitura do Manifesto: convergência (por uma nova ilusão utópica), publicado no jornal Rascunho. Sobre o livro ainda inexistente que gostaríamos de ler, Lua Solaris está dizendo que gostaria de ler o romance mais recente do primeiro brasileiro a receber o Prêmio Nobel de Literatura. Será que vai demorar muito? Sol Lunaris, por sua vez, gostaria de ler a inquietante versão de Grande sertão: veredas narrada por Diadorim. Após refletir bastante, Sofia percebeu que deseja muito ler a novela gráfica Teoria do caos, que os gêmeos Lua & Sol dizem há anos que estão desenhando, mas nunca mostraram nem uma página, nem um esboço. E o exigente Valerio está pedindo que lhe enviem pelo correio teletemporal, do futuro para o passado, o livro que o Valerio do futuro acabou de publicar em 2055. E o libertino Luiz quer muito ler os três grossos volumes da autobiografia (não autorizada) de seu gato, intitulada As desventuras pansexuais de Tangolomango.