Nayara Fernandes é escritora e poeta, autora de “Asas de pedra” (Selo Edith, 2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O trabalho é melhor remédio para acordar o espírito. Acordar é uma vitória, mas acordar cedo é vitória dupla. Contrariando a necessidade, meu dia começa lento, embora dona de uma rotina conturbada. Demoro um pouco a entrar no ritmo exato. Pouco a pouco animo o corpo, avivo a mente e reinicio. O café da manhã reacende minha inquieta e espreguiça minhas asas para o longo dia.
Enquanto autora costumo escrever durante a noite, – pelo silêncio e a quietude me sinto inegavelmente mais concentrada neste período. Em geral durmo tarde e acorda tarde, por isso começo meu dia almoçando e em seguida procuro responder e-mails, atualizar sites e resolver assuntos relacionados à literatura. Como estudante de Jornalismo diariamente minha rotina é voltada ao roteiro universitário, de modo que o curso nos exige tempo integral.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um ritual aplicado, perante a rasa concentração dependo de um ambiente favorável. Na busca pelo tom certo o primeiro passo é o silêncio, visto que silêncio é a gente mesmo (demais). Escrever nos instiga a refletir sobre vida e, consequentemente, nos aspira as vivências de outrem. Quando nas entrelinhas apercebemos o quanto outras muitas vidas interagem ou interpretam versões da nossa mente.
Nos últimos tempos as horas estão miúdas, mas sinto as ideias ganhando formas e forças durante a noite. Não importa o quanto às vezes seja difícil, o quanto às vezes eu me atrapalhe, o quanto às vezes eu seja a densa nuvem que esconde o meu próprio sol. Ao longo da noite repousam as perguntas e despertam as respostas, descansa a inquietude e fomenta a criatividade. Os desafios e limitações da escrita não deixam de existir, deixam apenas de ocupar o espaço todo. Histórias e sons, momentos e observações, – tudo vira matéria prima dentro da produção literária.
Para tanto, a escrita requer do autor um conjunto de habilidades que ultrapassam a leitura de bons livros e escrever de forma correta. O texto científico emprega palavras sem preocupação com a beleza, tampouco o efeito emocional. No texto literário, cada palavra tem uma intenção, cada expressão diversas interpretações dentro de um contexto costurado ponto a ponto. “O acaso é um Deus e um diabo ao mesmo tempo”, diria Machado de Assis. Assim sendo, talento é o fruto do risco e o risco é a alma da criatividade. Portanto, quando não se tem talento a semente ainda rara é desperdiçada, porém o homem de talento escolhe cada pedacinho de chão para semeá-la.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever é um exercício e como tal não passa de treino contínuo. Não importa se nascemos com predisposição para escrita ou acredita-se não ser incapaz de organizar pensamentos em palavras. É preciso treinar todos dias, letra após letra. “O papel de um escritor não é dizer aquilo que todos somos capazes de dizer, mas sim aquilo que não somos capazes de dizer”. Portanto, trabalhar a escrita frequentemente, mesmo que este trabalho não seja necessariamente escrever literatura, é o ponto de equilíbrio entre o calvário e a redenção.
O escritor é um homem que mais do que qualquer outro tem dificuldade para escrever, – uma nova produção literária sempre será uma nova produção literária. Inédita e incomparável. Escrever profissionalmente ou não requer escrever todos os dias independente da inspiração. Encadear palavras, frases e ideias para que, no final, algo faça sentido tanto para nós quanto para o mundo exige tempo, dedicação e paciência. Eu escolho uma trilha sonora, pesquiso referências sobre o tema, abro um ou mais dicionários e começo a costurar ideias. Sim, o ato de escrever é particularmente difícil e penoso, mas apaixonante.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como dito anteriormente escrever é difícil e penoso, porém interiormente reconstrutivo. Apaixonante. Escrever é a arte de enfrentar o desafio de sentir-se continuamente vulnerável diante de uma página em branco. Converter sentimentos em palavras é um mergulho às cegas dentro de si e, sobretudo, dentro do outro. Visto que, o ser humano é matéria de uma só substância, o que difere um homem do outro é a nitidez dos olhos. Ou seja, como ambos protagonizam a própria história.
Escrever é uma arte e como tal exige entrega, espera e tempo de colheita. Olhar para o papel, muitas vezes durante horas, e esperar até que as palavras certas cheguem é difícil, e muitas vezes frustrante, mas nada mais prazeroso do que senti-las correndo nas veias e deslizando para o papel. Ao longo deste processo gosto de analisar as inúmeras nuances do tema antes de rabiscá-lo, espreito e absorvo assuntos relacionados, e pouco a pouco construo minha identidade.
Escrever é um parto na sombra da inquietude. Entre uma contração e outras da alma a inspiração pare no peito. No entanto, é necessário estímulos seja pelo som ou silêncio, pela leitura ou lembrança de conversa corriqueira. Para além da conjugação das palavras, o ato de escrever é descrever ao mundo sentimentos ocultos em inúmeros mundos intrínsecos. Independente de sinais gráficos e regras ortográficas – absolutamente importantes – escrever é emocionar e provocar leituras homeopáticas. Contudo, tratando-se da palavra “não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus”, diria Saramago.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sentar e escrever sem procrastinar é um dos grandes desafios de um escritor, inclusive meu. Acredito que, em maior ou menor grau, todo mundo tem medo do fracasso em linhas. Afinal, escrever é apenas uma das partes do processo criativo. Conceber a ideia, treinar, reescrever, publicar, administrar medos e frustrações, tudo demanda tempo e, sobretudo, paciência.
Entre produções e expectativas, projeções e hora certa, após publicar o primeiro livro e entender o universo detrás dos holofotes, alcancei o benefício da maturidade. Mesmo inicialmente “ingênua” na cena literária, eu nunca idealizei lançar livros em subsequência. Movida contrariamente, sempre questionei a utilidade da escrita: o tempo investido e o trabalho, os estudos e a razão de iniciá-la. Acredito que estar ciente do papel de transformar emoções em palavras, é o ponto de virada de qualquer escritor.
Foram anos ininterrupto produzindo o primeiro livro. Lancei! Colhi todos os frutos e hoje bebo do futuro. Decidi respirar outros ares para liberar a mente da obrigatoriedade. O encanto pela escrita é uma paixão desde a infância, assim serei a pegada do passo por acontecer. Escrever é uma prática diária que exige entrega. Por isso, além da escrita em si, é preciso aprender a controlar a sua concentração. Deste modo, escrita, às vezes, é desapego. É aceitar se doer inteiro até florir de novo. Neste intervalo o que prevalece é o silêncio sem fisionomia, onde as palavras ganham rostos e identidades. Lágrimas não são argumentos e o medo é a própria fonte da recriação do eu lírico.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrever é prática. Entretanto, para escrever bem deve haver uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida. Ler, reler, reescrever, revisar e editar são tarefas oriundas de um bom escritor. Assim como um oleiro molda o barro, é papel do escritor moldar seu texto. Porque escrever bem é, de fato, entender que podemos continuamente nos aprimorar.
Para tanto, invisível aos olhos o defeito é à prova da realidade. Sair da zona de conforto é o antídoto contra a utopia literária. É necessário ouvir outras opiniões como impulsos para a ascensão criativa. “Uma parte de mim pesa, pondera. Outra parte delira”, a máxima de Ferreira Gullar define o que digo. O delírio nos surpreende e a ponderação nos equilibra.
Todo escritor carece cultivar aquele punhado de insegurança homeopática, porque é a instabilidade (precisa) que excita a evolução constante. Um escritor preso num ciclo de vaidade é, consequentemente, um escritor perecível. O mal de quase todo literato é aceitar o elogio que o envenena e rejeitar a crítica que o desintoxica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Compreendo a palavra como uma arma poderosa e, nas mãos corretas, é um instrumento transformador. Decerto, é uma sensação ímpar modelar letra pôs letra num papel em branco. Nada como o cheiro de texto novo, a textura das folhas.
Na efemeridade da vida, portanto, a demanda dos dias implica o uso dos meios tecnológicos para agilizar e aprimorar o processo criativo. Entre words, bloco de notas e nuvens diversas digitalizar rascunhos nos oferece acessos a qualquer momento e, consequentemente, “abrevia” o trabalho inteiro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Talvez um dia entenda. Ou entendo desde sempre, mas não sei descrever em palavras. “No começo há mistério, e no final, confirmação, mas é no meio que reside a emoção e faz com que a coisa toda valha a pena”, diria Nicholas Sparks num trecho retirado da internet.
Conceber a ideia, estudar o tema, treinar, escrever, reescrever, descansar. Administrar medos e pensamentos, estalos e frustrações. Ler, reler, reescrever, revisar e editar. É impossível um escritor viver da sensibilidade. Neste inverno de agonias há uma enorme ferida (dentro dela vivemos, dentro dela choramos). Entre dias lutas e dias raras glórias o poema “então queres ser um escritor?” de Charles Bukowski traduz em absolutamente o que digo. Ser escritor é mito, ser palavra é multidão.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Distinta, atenta e perfeita a visão do mistério é a linguagem do pensamento. Entre recuar em direção à segurança ou avançar em direção a incógnita crescer é enfrentar o que nos limita.
Sou inquieta e, sobretudo, sistemática. Alfabetizada em casa, desde as minhas primeiras sílabas, ainda tremidas e sem moldes, busquei oferecer o melhor. Nunca estou inteiramente satisfeita, embora isso exigindo um alto preço. No entanto, aprendi que a escrita é construção, tempo e espaço. “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”, diria Mariana Basílio.
Hoje apenas aplaudo o ato de entrega, sacrifício e afinco aplicados ontem. Para o amanhã o grito existe e o espanto rasga, por isso com as veias cheias de coragem o coração aguarda a direção nova.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Mais que os dias sou movida a desafios, então o projeto futuro é, invariavelmente, mais interessante que o presente. Porém, entendo que a cada objetivo existe o momento cabível. No momento, curso Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Nesta esfera universitária, a mente viaja entre inúmeras ideias e esquemas, mas é necessário deixar o caminho fluir naturalmente. Como escritora tenho metade de um livro na gaveta, onde escrevo textos em prosa. Sem intenção alguma de lançamento póstero.
Quanto a leitura de livros não disponíveis no mercado, o mundo é infinito e os idiomas diversos. Não consigo ser, suficientemente, pretensiosa a ponto de responder tal pergunta. Jamais saberei dizer se existe um livro que desejo ler e que ainda não existe. Deste modo, cada escritor possui suas especificidades, uma forma peculiar de expressar as vozes artísticas que permeiam sua essência. A partir disto, conhecer uma série de tonalidades criativas é essencial para aguçar a imaginação e, posteriormente, encontrar novas perspectivas de produção.