Nathalie Letouzé é escritora, doutora em Literatura (UnB) e em Linguística Aplicada (Unicamp).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, sempre. Começo com a rigorosa rotina de um despertador tocando há mais de meia hora e uma cachorra latindo, eventualmente um focinho se levante em vem de encontro ao meu, ainda deitado. Coloco a Matilha para fazer xixi, alimento a Matilha, tomo um leite, lavo a louça (ainda da Matilha), faço minhas orações sentada em uma cadeira na varanda (mesmo que esteja 10 ºC lá fora), volto pra cama – ler, dormir mais um pouco, ver o que o povo anda fazendo no instagram, responder mensagens – o que der mais vontade no dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor à tarde, o cérebro só acorda mesmo depois das 10h. Não tenho nenhum ritual consciente de preparação para escrita, mas gosto muito de trabalhar em cafés ou na cozinha (durante a quarentena) – acho acolhedor estar perto da comida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Períodos concentrados. Por muitos anos, isso me incomodou bastante, achava que eu tinha de produzir todos os dias ao menos um pouco. Quando estava fazendo dois doutorados ao mesmo tempo, essa era uma grande preocupação, de fato, e me cobrava muito por isso, queria produzir muito todos os dias, mas se tem uma coisa que fazer dois doutorados me ensinou foi justamente a ponderação, o equilíbrio das atividades e a entender e aceitar o meu próprio ritmo de trabalho.
Depois de ter defendido minhas teses (com dois meses de diferença entre uma e outra), um amigo comentou comigo: “você deve ter quase pirado no final para escrever essas teses” e respondi que foi justamente o contrário, eu sabia que se pirasse, não daria conta de nada. Tive de aprender a controlar o emocional para dar certo. A ansiedade reduzia muito minha produtividade e aumentava a quantidade de erros que eu precisava corrigir depois.
Por isso, tive de aprender a ficar tranquila mesmo com o mundo quase caindo – no início foi bem difícil! Tive de lidar com uma orientadora dizendo que eu era a pessoa mais incompetente do planeta que ela havia conhecido – o único problema de orientação que ela teve em 60 anos -, um dos programas de pós graduação tentando me colocar para fora – eu precisando ter um artigo aceito para publicação com urgência para qualificar a tese e me manter no programa (o que aconteceu somente 5 dias antes da qualificação da tese e a orientadora já havia mandado mensagem dizendo que cancelaria a qualificação com os membros da banca) e várias questões familiares acontecendo – 3 mortes de pessoas amadas em quatro meses, questões de saúde familiares, problemas financeiros.
Mas tinha o contrário também, um orientador acreditando em mim mais do que eu mesma acreditava, familiares suando a camiseta comigo durante todo o processo do doutorado, amigos me aconselhando e orientando – quando dois deles, que não se conheciam entre si, disseram para mim na mesma época que eu precisava parar um pouco de tempos em tempos para descansar e um pouco todos os dias para recarregar as baterias – finalmente entendi.
Escrever não é o que acontece quando se senta em frente ao seu texto e se tenta conexão com algum deus do Olimpo, é todo o resto que organizamos em nossas vidas. É ter uma alimentação saudável, adequada ao seu biótipo, contato diário com familiares e pessoas queridas, algumas horas de descaso e lazer por dia, práticas regulares de exercícios físicos, preferencialmente uma que seja prazerosa – durante os doutorados, eu nadava 2500 metros 3 vezes na semana, o que me exigia um tempo enorme, que começava com me preparar para entrar na água e isso incluía me enfiar em uma blusa de borracha durante o inverno (algo que só quem já fez, entende a dificuldade), a tomar banho depois, secar o cabelo, etc, tudo isso antes de começar a produzir efetivamente na tese – mas, os dias em que eu nadava, eram os que eu trabalhava mais, melhor e até mais tarde. Exercícios físicos me parecem ser algo essencial para concentração, ao menos, para a minha. Escrever é também conhecer seus limites, o meu, por exemplo, é não virar noites, jamais, nem por trabalho nem por lazer, arruína uma semana de trabalho para mim, o custo benefício não compensa.
Quanto melhor tudo isso estivesse acontecendo, melhor eu produzia e no fim, entendi meu ritmo também. Quando eu trabalhava muito em um dia, no dia seguinte, não conseguia produzir quase nada. Então, ou escolhia fazer coisas que me demandassem menos atenção ou, até mesmo, não fazia nada da pesquisa, aceitava a pausa. Sabia que no próximo dia voltaria a produzir e estava tudo certo.
Por fim, na medida do possível, busquei salvaguardar o dia de Domingo como sagrada para não se pensar em nada.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre achei difícil começar a escrever sim, muito. Não tenho bem certeza de como é meu processo de escrita, mas sempre anoto todas as ideias que me vem à cabeça em todos os lugares possíveis, pois podem ser úteis depois – mas isso me faz ter dúzias de papeis escritos por toda a casa, vários cadernos começados e muitas anotações dentro dos livros que estou lendo no momento, tantas, que no fim resolvi comprar blocos de post-it largos para escrever e deixar dentro dos livros. Quando não tinha papel nenhum à frente, gravava mensagens de áudio no celular ou enviava mensagens para mim mesma no what’s app. Muito desse material eu acabava nem visitando, mas muito era bastante útil depois.
Geralmente eu começava pela análise de dados, o que deixava minha orientadora de mestrado quase louca, porque não sabia de onde eu estava vindo e só escrevia o referencial teórico no final. Durante o doutorado, eu alternei um pouco, fiz alguns longos resumos da parte teórica antes, mas não de tudo. A parte teórica costuma me ser a mais difícil para mim, escrever as ideias de outro autor com minhas próprias palavras. Eu gostaria de apenas mencionar os autores que li e me serviram de referência, deixar que os outros lessem as próprias palavras desses autores se julgasse relevante, mas não funciona assim, a gente sabe disso. Curiosamente, na tese que defendi em Literatura, a parte teórica foi bastante elogiada por uma das professoras. Vai entender, a vida é cheia de mistérios, eu também detestava química na escola e, no entanto, foi minha nota mais alta no vestibular.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não faço a mínima ideia… se eu lido de alguma forma, não é consciente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nunca contei quantas vezes, mas são várias, sei que a reescrita é uma parte fundamental do processo de escrita. Porém, aprendi com meu irmão mais velho, que é melhor terminarmos o texto todo primeiro e depois voltarmos a ele para ler, reler e reescrever. Isso, por dois motivos: conhecer o texto todo irá ajudar na fase de edição final, a gente saberá melhor o que é preciso manter, o que é melhor cortar e o que pode ser modificado ou tornado mais claro; segundo, porque evita que se fique estagnado na fase de edição de texto e não se avance jamais na direção da conclusão do texto. Para o meu irmão, muito pragmático, tem um terceiro motivo: você pode até defender um texto ruim e ir para reformulação, mas ele precisa estar concluído para isso.
Então, se tem um conselho que eu deixaria enfaticamente a quem está escrevendo dissertação ou tese seria este: termine o texto todo primeiro, depois revise, reenscreva, etc.
Quando trabalhei na editora da UnB, como coordenadora da produção editorial, algo que percebi que quase todo escritor sofre é o que passei a chamar de ‘síndrome de tricô da Penelope’, se deixarmos um autor tempo demais sem supervisão, ele irá desfazer o texto todo de madrugada e começar a refazer pela manhã e isso durará para sempre. É por isso que editoras costumam ter uma clausula contratual que impedem o autor de fazer alterações no texto após terem entregue a versão final para publicação.
Por fim, como alguém que trabalhou em editora e que trabalha muito com texto, considero essencial ter um revisor de texto. Um que seja bom, no sentido de se adequar ao seu perfil de escritor e as suas necessidades como escritor – fica tranqüilo, Gabriel Garcia Marques também admitiu em seu livro Viver para contar ser dependente dos revisores de texto e dos Beta Readeasr[1] – então, a gente também pode ter um sem abalar nossa auto-estima (mesmo que sejamos da área de letras).
Há mais de um tipo de revisão textual, tem as com beneficiamento textual ou não. As com beneficiamento textual irão fazer sugestões de reescrita para o texto ficar mais claro, melhor organizadas, etc – pessoalmente, eu não gosto desse tipo de revisão, e há a revisão propriamente dita, que irá se ater as normas gramaticais, ortográficas, da ABNT, etc.
De todo modo, acho que é um investimento que vale a pena, vale fazer uma poupança revisão ou algo assim. Lembro que eu investi um carro nos meus doutorados – no início do doutorado eu tinha um carro e no final, não mais, entre passagens áreas, cursos que precisei fazer e revisores de texto em português e em inglês, gastei o carro, acontece – mas a verdade é que, se nós mesmos não acreditarmos o suficiente no nosso potencial para investirmos em nós, quem mais o fará? Então, nossos primeiros investidores devem ser nós mesmos, valemos a pena!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, exceto pelas notas mencionas que escrevo até nas paredes se precisar, porque no fim, passar do papel para o computador me exige um tempo a mais que não tenho, precisamos ser práticos e otimizar onde canalizamos nossa energia. No meu caso, tive a sorte de estudar em um colégio que, por razões que desconheço completamente, nos deu aulas de datilografia – isso quando as máquinas de escrever já estavam em extinção. Porém isso foi uma das melhores coisas que aprendi na época, aprendi a escrever relativamente rápido e isso me ajuda bastante hoje. Se tiver algo equivalente atualmente para se aprender a digitar mais rápido, é um investimento de tempo que recomendo a quem tem essa dificuldade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que vou passar o resto da vida pensando nessa pergunta e não sei se irei conseguir responder.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acho que, de alguma forma elíptica que eu ainda não entendo bem, o caminho tem se feito encontrar a si mesmo; então, não diria nada. Entendo que meus erros me trouxeram até aqui e o que não deu certo também. Tudo tem acontecido no tempo certo da minha maturidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Hummm… essa pergunta eu vou pular, acho que o escritor pode guardar alguns mistérios para si, não?
[1] Beta readers – quem lê primeiro o texto antes dele ser publicado, enviado para revisão, ou qualquer outra coisa, tem a função de fazer comentários, apontar trechos não claros ou desinteressantes, ambigüidades, etc – é mais produtivo ser alguém que se identifique com o tipo de texto que se escreve. No mesmo livro de Gabriel Garcia Marques, ele disse ter sido um amigo seu quem apontou que, em um de seus textos, tinha um general comandando batalhas antes de nascer.