Natália Corazza Padovani é doutora em Antropologia Social e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu na UNICAMP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu tenho uma rotina matinal sim. Em períodos de escrita, acordo cedo, como seis horas da manhã, tomo café e, como trabalho em casa, gosto de estar com o ambiente arrumado. Assim que, depois de ajeitar a casa, sento em frente ao computador, que fica em minha escrivaninha bem em frente ao janelão do meu quarto / escritório, abro a janela e coloco uma música para tocar. Abro o arquivo e começo a trabalhar nele. Escrever, para mim, é como um exercício diário de trabalho. Penso que sou meio como um operário padrão que funciona melhor no horário comercial – das 8 até umas 19 horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O horário em que mais me sinto bem trabalhando é mesmo pela manhã. Adoro manhãs. Quanto aos rituais: bem, já tive muitos e percebo que eles foram mudando ao longo dos anos.
Já fui bem mais metódica do que sou agora. Teve períodos em que eu não sentava para escrever sem que tivesse por perto uma xícara de chá mate ou preto. Era paralisante não ter a xícara de chá como companhia. Atualmente nem me lembro da existência dela e apenas muito raramente tomo chá enquanto escrevo. Do mesmo modo, houveram períodos em que eu precisava de silêncio absoluto para trabalhar. Agora, só consigo começar a escrever tendo ao fundo uma trilha sonora. Essa pode ser desde uma música ou o som da rua: das crianças indo ou voltando da escola, brincando, provocando umas às outras; das pessoas indo ou voltando do trabalho e cumprimentando-se, contando novidades ou falando sobre o jogo da noite anterior com os vizinhos, do carro dos ovos, das mulheres varrendo as ruas, dos cachorros saindo eufóricos para passear. Esses sons cotidianos que são mais vívidos em horários específicos do dia (manhã e final da tarde), certamente fazem parte das trilhas que embalam meu exercício de escrita. Cada vez mais.
Sons são, atualmente, meus rituais de escrita. O silêncio e a fumaça do chá foram substituídos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É importante dizer que, como antropóloga, meu trabalho (em tese) se divide em períodos em que a pesquisa etnográfica está mais no centro de minhas atividades, tomando todo meu cotidiano. Há outros períodos em que a leitura e os estudos são mais centrais, de mesmo modo em que há semestres em que cursos e disciplinas na universidade consomem muito mais tempo. Há, contudo, aqueles períodos em que a escrita é demandada para a produção de um artigo acadêmico ou da tese, por exemplo. Por mais que a escrita (e a pesquisa) faça parte de todas as atividades do trabalho antropológico, há momentos em que ela assume centralidade na rotina. Assim, para responder essa pergunta, devo esclarecer que o fazer antropológico (ou etnográfico) implica em períodos concentrados de escrita. Mas isso não significa que eu perceba minha rotina como tendo períodos concentrados de escrita. Estando no período em que a escrita é o elemento principal da produção, faço um pouco a cada dia. Organizo a rotina centrando-me no exercício da escrita e faço pedacinho por pedacinho do texto. Acho que escrever é uma atividade artesanal, ao menos é o que sinto como sendo minha quase habilidade manual.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Penso que não há uma separação muito estrita entre processos de escrita e pesquisa. Ao contrário. Já aconteceu de eu estar absolutamente travada e um telefonema de alguém dando notícias de campo ter me feito voltar a escrever. De mesmo modo, a escrita é um processo de pesquisa. Por mais que a antropóloga Marylin Strathern já tenha discorrido sobre o “efeito etnográfico” e os diferentes momentos de imersão no campo e de imersão na escrita, de minha parte, considero o cotidiano um efeito etnográfico. Não por acaso, escrevo de frente à janela. Preciso da rua para produzir a cadência da escrita. Preciso dos barulhos das vivências mais ordinárias. Nesse registro, talvez a escrita etnográfica, para mim, seja mais próxima de crônicas e contos, como os de Jorge Luis Borges e John Maxwell Coetzee. Os contos e as crônicas me parecem efeitos etnográficos. Ou é do efeito etnográfico estar atenta às crônicas do cotidiano?
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Ah, certamente com as trocas com as amigas mais queridas. Ligações noturnas de desespero, nesses momentos, não são incomuns. As travas a gente desfaz coletivamente!
Por isso acho que a escrita não pode ser considerada solitária. Sempre estranho quando ouço alguém dizer que a escrita é um processo solitário. Penso que devo mesmo ser um bocado esquizofrênica. Afinal, quando escrevo, tenho ao meu lado desde as amigas intimas para as quais recorro por telefone quando bate o desespero, mas também as longas conversas com autores que amo e odeio, com interlocutoras do campo, com páginas de livros, cadernos…
Nos momentos das travas, são as trocas que desatam. Trocas de todos os tipos e sentidos.
Parar de escrever para ler, ou até mesmo para dar uma caminhada, são sempre boas opções. As trocas do corpo com a rua ou dos afetos com os livros desatam. Claro que nesse processo há um tanto de melancolia também. Nas palavras do meu companheiro de vida, Douglas Gonçalves, em períodos de ruminação das leituras e das trocas – períodos de travas (?) – eu posso “parecer um trapo humano”. Mas a ruminação é parte do processo da criação. E quem disse que a melancolia dessa digestão criativa não é produtiva?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nossa, acho que os textos nunca estão prontos! Agora, há dois encaminhamentos: se há uma data limite para entrega de um texto, bem, é essa data que irá definir quantas vezes o texto será revisado; se não, há um ponto final que bate no topo do estômago. É um pronto! Agora chega! Mas, claro, esse ponto final será editado e corrigido por amigas para quem eu sempre encaminho as primeiras linhas de minhas escritas. Quando as linhas voltam, o processo de finalização já se transformou em dúvidas angustiadas: “será que aquela ideia faz sentido?; será que me fiz entender?”. Aí tem um processo engraçado, existem aquelas amigas leitoras que já nos conhecem tanto que sabem, exatamente, o que você quis dizer mesmo que o texto não esteja tão inteligível assim. Eu acabo duvidando um pouco de minhas próprias escritas e enviando para leitores novos, amigos também (sempre), para que o texto possa ser sabatinado.
Depois dessa experimentação, o que estava “pronto” volta quase como esboço. Aí é hora de lapidar. Mas entendo os processos de escrita como sensoriais e árduos. Uma condensação de socos e borboletas no estômago com a dura labuta mental.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Depende do material. Quando são ideias ou impressões de pesquisa, fichamentos de textos, estudos, escrevo nos meus caderninhos com lápis e lapiseira. Quando também são linhas menos acadêmicas, escrevo à mão. Mas projetos de pesquisa, tese, artigo… bem, esses são direto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que, como já coloquei, minhas ideias vêm das trocas do cotidiano.
Esses dias, desde esse contexto político presente, me peguei sorrindo com a cena de uma mulher que carregava seu filho no colo enquanto ele insistia em brincar com as alças de seu sutiã. Ela se permitia rir da criança e brincar com ela. Depois, escutei três senhores discutindo política de modo raivoso enquanto tomavam café em um boteco. Na briga, havia um ódio no dissenso das ideias, ao mesmo tempo em que o cuidado em disputar quem iria pagar a conta do amigo desempregado. Na mesma caminhada, dois homens mais velhos sentados na calçada tomavam cerveja e faziam carinho em um enorme cachorro preto vira-latas. Da escola pública do bairro, aos fundos, escapava o barulho das professoras conversando, fumando um cigarro e escutando o Rap dos Racionais, ao mesmo tempo em que no portão principal os carros policiais da “ronda” estavam estacionados, como que se ostentando. São essas pequenas cenas dos imperceptíveis, essas resistências que ficam quase sempre relegadas aos “fundos” das escritas que me inspiram. Meus esforços têm sido em não deixar escapar atenções para essas micropolíticas dos afetos e dos sorrisos criativos que fazem (r)existir e reavivam os quereres das escritas antropológicas, mas não só.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Talvez possa dizer que a tese foi um marco na minha produção de escrita. Não gostava (não gosto muito) de como minha dissertação de mestrado foi escrita. Um texto muito fechado, formal e institucional. Não me reconheço nela. Quando fui escrever a tese, fiz questão de me deixar mais solta, de permitir enredar uma escrita literária com as análises antropológicas. Acho que posso dizer que gosto do resultado, que gosto de minha tese. Foi uma delícia escrevê-la.
Uma grande amiga minha que, infelizmente, alçou outros voos de existência, amiga para quem a tese é dedicada, Paula Togni, dizia: “aproveita esse momento! Você só percebe como ele é bom quando termina!”. Ela tinha razão. Em que outro momento da rotina acadêmica temos a chance de nos dedicar à escrita de uma obra sobre uma pesquisa densa de quatro, ou dez anos? Em que outro momento podemos nos dedicar tão zelosamente à produção de um texto senão na escrita da tese?
Acho que diria para mim mesma o que eu tive a sorte de ouvir da Paula: “aproveita!”. E diria: “se joga na escrita!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Adoraria ter tempo hábil de escrever um livro de crônicas e contos, faço meus experimentos nas crônicas por aí, mas admiro quem se dedica a essa forma de escrita e adoraria poder dedicar-me à literatura.
Quanto a um livro que ainda não existe… quem sou eu para dizer?! O mundão é muito grande, tenho certeza que o livro que eu gostaria de ler está por aí, empoeirado em alguma estante, todo rabiscado em algum sebo, todo dobrado em alguma biblioteca, não levado à sério por alguma universidade, jogado na mochila de algum secundarista. Com certeza!