Nara Vidal é escritora, autora de Sorte.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa com um dos meus filhos tentando me acordar à procura de café da manhã. Já disse que, com sete e nove anos, eles podem fazer o próprio café, mas eles insistem em me chamar às sete da manhã, às vezes mais cedo. Acordo com má vontade pois gosto muito de dormir, ficar deitada, sou bastante preguiçosa. Mas melhoro porque eles têm uma alegria pelo nada, sorriem pra mim como se a vida fosse um mar de rosas e meu filho sempre me diz que sou bonita quando acordo. Ele não sabe o que diz, mas acho generoso e vou ficando de bom humor e o dia começa, enfim. Geralmente só começo a escrever depois de levá-los pra escola. Sento pra escrever a partir de 9h30 da manhã. Acontece de algumas vezes eu acordar de madrugada e precisar escrever. Ultimamente ando calma, mas às vezes tenho urgências de registrar ideias, fluxos de pensamento, bobagens ou coisas importantes. Acontece a qualquer momento, inclusive pela madrugada. É preciso dormir de olho aberto. Nunca sei se um dia vou escrever algo que seja interessante, então é bom não desperdiçar esses rompantes.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu acho tão bacana quando ouço escritores falarem que têm uma rotina e seguem religiosamente uma disciplina de criação! Eu definitivamente não tenho esse luxo. Escrevo quando dá, no barulho ou no silêncio. Tenho crianças em casa e é comum que brinquem e briguem aos meus pés e eu siga escrevendo. A ironia disso é que, às vezes, quando tenho tempo só pra mim, especialmente nos finais de semana, geralmente não sei o que fazer com essa liberdade toda. Acabo fazendo bobagens, perdendo tempo, essas coisas. Sempre prometendo pra mim mesma que da próxima vez vou fazer melhor, vou fazer corretamente e não vou perder tempo. Mas nunca cumpro com a minha palavra pra mim mesma e logo caio em tentação. O ócio me atrai imensamente e me seduz constantemente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu tento escrever todos os dias mesmo que tudo que tenha sido escrito vá parar na lixeira e isso acontece muito frequentemente. Tento escrever diariamente simplesmente porque sinto uma dificuldade imensa de voltar a escrever. Chego a entrar em pânico com a falta de jeito. Pra mim, escrever é um exercício e se eu deixo de praticá-lo sinto-me um pouco inadequada e acho difícil mesmo pegar um ritmo. O que eu faço religiosamente todos os dias é ler. Quando tenho mais tempo leio romances, contos. Se o dia foi corrido, ao menos um poema eu leio toda noite antes de dormir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo predominantemente por intuição. Isso significa que, na maioria das vezes, a história que começo não tem fim ainda, ela se altera e avança de acordo com o momento. Acredito que seja mesmo um fluxo, um desejo de registrar alguma coisa que, na minha cabeça, faz sentido contar. Mas pra mim, escrever é um pouco feito uma experiência fora do corpo, por mais tolo que isso possa soar, não acho outra forma de explicar. Nunca sei responder à pergunta: o que você quis dizer com isso ou aquilo. Era como se já tivesse passado um tempo enorme. Leio e releio meu trabalho inúmeras vezes, mas uma vez publicado, não leio mais. Não consigo, não é mais meu.
O meu livro de contos A loucura dos outros foi muito intuitivo e escrevia durante o dia e à noite, com as crianças debaixo da mesa ou quando bebia vinho à noite. Bebo vinho tinto sempre que posso, ou seja, todo dia. Só um pouquinho pra manter o coração batendo feliz. É um prazer que tenho, que descobri depois dos trinta e cultivo esse gosto sem qualquer vontade de parar.
Já o meu livro mais recente, Sorte, foi muito intuitivo pra escrever, mas precisei fazer muita pesquisa pra ele e acabei aprendendo a fazer um esqueleto que me foi muito útil pra não fazer confusões com informações, datas, práticas históricas. Mas, enquanto escrevia Sorte escrevi um outro romance que foi uma dessas experiências fora do corpo. Não me lembro de ter escrito nada dele. Quando releio fico pensando e tentando me lembrar quando foi que fiz aquilo.
Tenho o hábito de guardar ideias em papéis. Tenho um bloco de anotações, mas quando a coisa é urgente mesmo, até em envelope de conta pra pagar tem coisa escrita. Às vezes uso aquilo e muito me vale. Às vezes olho e penso: quanta bobagem! Mas vale o exercício, a tentativa. Escrever nada mais é que viver tentando. É um fracasso contínuo. Um belo fracasso. Um belíssimo fracasso. Mas é só isso mesmo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Um dos defeitos que eu sei que tenho (claro, há os que a gente não sabe que tem) é ser consideravelmente insolente. Há nisso uma certa petulância e desrespeito às regras, ao esperado, ao que é considerável aceitável. Tenho constantemente ligado o “dane-se” enquanto escrevo e não penso nem por um minuto em quem vai ler. Imagina ter que tentar agradar cada potencial perfil de leitor? Sou extremamente egoísta nesse aspecto e não ligo. Também mudo de ideia sempre. Alguns amigos me dizem que não há saída pra mim porque sou de Libra com ascendente em Gêmeos, vai saber! Procrastinar é um sonho, sabe por quê? Porque eu adoraria viver dos meus textos, ter prazos e ter que lidar com procrastinação. Como nunca vem dinheiro da escrita, não sinto que deixo ninguém na mão. Também não tenho expectativa. Fico torcendo pra que quem quer que leia meu livro seja tocado de alguma forma. Ansiedade acontece só em lançamento. Sempre acho que vou ficar sentada sozinha rodeada por moscas sem ninguém pra me fazer companhia. Um quadro tristíssimo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio e releio infinitas vezes. Precisa ver os arquivos que eu mando pros editores. “Final”, Final final”, “Final de fato”, “Final mesmo”, “Final mesmo mesmo”, “Definitivo”, “Definitivo mesmo” e por aí vai. Até que o editor me manda parar e avisa que o livro foi pra gráfica. Não mando pra leitor crítico, mas tenho um relacionamento ótimo com meus editores e sei que eles enviam meu manuscrito para alguns leitores e a partir daí, vamos avançando.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Algumas ideias urgentes eu encontro em algum papel. Mas escrevo mesmo no computador. Quem me vê acha até que estou trabalhando. Há uma seriedade de verdade no abrir do laptop, abrir um papel em branco e começar. É bacana, me sinto muito próxima do que sou quando escrevo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sou apaixonada por artes plásticas e balé. Essas artes me tiram do normal, me elevam, me preenchem, me incomodam, me fazem sentir viva. As artes têm esse poder e elas me comovem demais, diária e frequentemente. Meus filhos são uma fonte de curiosidade e fascínio pra mim. Acho que tudo que me intriga me dá ideias e me ajuda na criação. Gosto de coisas que têm camadas, que são inacabadas, que são feitas de possibilidades, que são imperfeitas. Vê o mar, por exemplo, o mar nunca me emociona porque é superlativo demais. Não há discussão: é lindo e é enorme. Preciso de rachaduras, cacos, pedaços, curvas, detalhes e insignificâncias. Isso sim, me emociona.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria pra ter calma. Diria que escrever é a melhor perda de tempo que pode existir no mundo. Diria que não há saída e escrever é companhia, dessas pra sempre. Sempre seremos eu e minha escrita até o final.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Minha cabeça borbulha de projetos e ideias. Às vezes acho que deveria parar, descansar, deixar de inventar coisa, mas acho difícil. Gosto especialmente de trabalhar com projetos que criam oportunidades e pontes para nós escritores. Seja pela Capitolina, a livraria que eu mantenho, seja por projetos de antologias, seja por traduções e entrevistas, seja por eventos. O Facebook é um campo fértil pra construir pontes, mas também pra construir muros. Já conquistei inimizades nas redes sociais inclusive com gente que nunca conheci ao vivo. Às vezes, as pessoas cismam com você e aí já era. Sempre que alguém da literatura desfaz amizade comigo sem que eu saiba a razão, uma fada morre dentro de mim. Mas como Papai Noel não existe, tudo bem! Estou sempre pensando em formas de fazer uma função, uma festa, um encontro. Depois disso, gosto de solidão, só pra me cansar dela e procurar festa de novo.