Naná DeLuca é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia alimentando o Tuba, o gato, cujo maior prazer na vida é comer, então não permite que eu faça nada antes da ração no potinho. Tuba alimentado, eu leio jornais. Alguns textos do dia, outros que guardei. Então, trabalho. Às vezes tenho que dar aula em algum lugar, outras preciso corrigir redação modelo ENEM ou FUVEST; tem vezes que é o TCC do engenheiro ou a antologia poética que precisam de revisão. E outras manhãs são dos que chamo meus textos. Tirando o Tuba, que precisa ser alimentado todo dia e ronrona para a ração toda manhã como se fosse a primeira vez, e os jornais, tudo é instável.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu não me sinto uma pessoa noturna ou matinal ou vespertina. Acho que me habituei assim; educação popular, escrita literária, pesquisa acadêmica, trabalho com textos, é serviço demais pra pagar os boletos, são instáveis, mas têm uma vantagem só deles: eu escolho quando. Procuro me organizar por semana, já que cada uma é uma. Então, tem semana que a sexta-feira manhã, tarde e noite, é tudo pra escrever; em outras, a sexta de manhã é pra dar aula e a tarde é da revisão, então a escrita vai pra quarta a tarde. E aí muda o ano e tudo muda de novo. O que é importante pra mim é ter projetos em andamento, estar construindo, no ritmo que for possível, qualquer que seja ele.
Quanto à preparação, aí é o texto que manda. Para O Sexo dos Tubarões, primeiro livro que publiquei, meus rituais envolviam música. Precisava de uma determinada trilha sonora, uma playlist que montei só pra isso. A música me ajudou muito a construir os fundamentos poéticos do texto.
E, antes de continuar a escrever qualquer texto, sempre, releio tudo que escrevi. Não consigo retomar de onde parei, preciso voltar para a primeira palavra. Faço a releitura revisando, corrigindo, repensando e é da releitura que começa a escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
As metas e ritmos de escrita dependem do texto e em que pé está e o que quero dele. Quando escrevi a minha dissertação de mestrado, o prazo era rígido (somado a linguagem acadêmica, digamos, não tão flexível), o que exigia uma escrita diária e calculada. Nesse caso, eu fiz toda a estrutura da dissertação antes de entrar na fase de escrita, um mapa da mina: cada tópico e subtópico e uma breve descrição do raciocínio que eu queria desenvolver. Cada dia estabelecia quais pontos eu deveria terminar e assim fui até o fim. O romance, por outro lado, levou cinco anos para ser escrito e teve duas versões anteriores a que foi publicada. O Sexo dos Tubarões é um texto cujas personagens não têm marcação de gênero. Custou para construir esta linguagem e me permiti tomar todo o tempo preciso.
No cotidiano, faço muitos exercícios de escrita, porque geralmente tenho vontade de experimentar formas. Por exemplo, eu agora ando com fissura de fragmento. Teve uma época que foi das narrativas curtas. Alguns textos são só exercícios-trampolim; sem querer, acabam gerando um outro texto, imprevisto. Gosto de escrever resenhas também. No dia a dia, na verdade, eu tenho metas rígidas apenas de leitura. Pra mim, a leitura retroalimenta a escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tem aquelas ideias que vingam. E é estranho quando elas pipocam, dá para sentir elas criando raiz, fincando uma bandeirinha em algum lugar. E o que de início era um fiapo de ideia, começa a ter corpo vivo, complexo. E aí escrevo. Vingou, tem que escrever. O processo de pesquisa começa com o processo da escrita. Enquanto escrevo, é a junção do que já escrevi com aquilo que quero escrever que me leva a buscar certas leituras e referências.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tento aceitar essas travas e ansiedades como partes necessárias do processo. Acho que escrever sem querer escrever, ou sem poder se concentrar, é estéril. Trabalhando no romance, eu percebi que é como perseguir o próprio rabo. Escrever é difícil. E cada texto demanda um certo conjunto de técnicas, um tipo de energia, tem tempo próprio. Então, quando eu travo, me jogo em algum videogame. Gosto de RPGs e jogos de estratégia, que mantém o raciocínio vivo, a imaginação a toda, mas deixam a mente descansar (coisa que escrever não deixa).
Se tem um prazo e vem a trava: na dúvida do que escrever, escrevo o caminho que a dúvida me obrigou a seguir (essa é a melhor técnica que criei para seguir o baile).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso incontáveis vezes. Uma das maiores ansiedades que a escrita me dá é o caráter estático. A escrita registra e fixa, por natureza. A escrita fica. E, no entanto, ela sempre poderia ser modificada, transformada. Tem sempre aquela frase que poderia estar invertida, aquela palavra que era melhor não ter repetido, uma expressão que na hora pareceu boa, mas depois vira um flope. Então, reviso meus textos mais de uma vez por dia. E no caso de publicações online, passo dias relendo (mesmo depois de publicado) fazendo pequenos ajustes. O Jorge Luis Borges dizia que depois que publicava um texto, nunca mais lia, justamente pra não sentir esse impulso de transformá-lo e a angústia de não ser mais tempo. Dá pra entender. Por exemplo, eu odeio o último capítulo d’O Sexo dos Tubarões. Não releio nunca, porque reler dá vontade de refazer. E refazer já não parece tão possível.
Acho essencial a leitura de outros, não só depois que o texto está pronto, mas durante o processo também. Quanto mais perspectivas são levadas em conta, melhor o texto fica. A gente escreve pro mundo, tem que mandar o texto pra ele o quanto antes. Amigos, conhecidos, professores, familiares, qualquer pessoa interessada, que seja só pra garantir que tu, que escreve, não está louco (às vezes, é preciso). Não há literatura sem leitor. É tudo essencialmente coletivo, então acredito que abraçar esse aspecto sem medo aprimora a escrita, transforma o texto de jeitos que não seriam possíveis no bloco do escritor sozinho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A escrita é a tecnologia primordial nesse processo, o resto acaba sendo suporte. Eu mantenho cadernos pessoais e diários que escrevo à mão, nem saberia criar esse material de outra forma; são cadernos que levo comigo e registro de tudo, mas são sempre pessoais. São só pra mim. Para outros textos, eu uso computador. Uso a nuvem (me viciei nas nuvens). Gosto de como é mais simples manipular o texto assim e ter uma visão do corpo todo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para manter a criatividade?
Estas duas perguntas são muito difíceis. Acho que todos temos muitas ideias todos os dias. Boas ou não, inteligentes ou não, originais ou não. É uma mania de gente, ter ideias e elas vem sem pedir muita licença, seja por conta da leitura de um livro seja um capítulo da novela, uma notícia de jornal, um tweet, uma conversa com o vizinho ou um tédio na rodoviária. Acho que a única coisa que diferencia artistas (escritores e outros) é o fato de que essas ideias são executadas de alguma forma. A gente não fica só na ideia, a gente coloca ela no mundo, o que são outros 500. Acho que eu não tenho nenhum conjunto especial de hábitos. Eu leio, trabalho, estudo, vejo netflix, jogo videogames, saio com meus amigos. O conjunto de hábitos que mantém minha criatividade é, na verdade, só o hábito de criar. Vou escrevendo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ando numa fase de muita indisciplina com minha escrita literária. Uma certa rebeldia infantil contra esse eu-adulto-trintão que começa a tomar posse. Há dez, cinco, três anos, eu tinha muita disciplina para escrever e trabalhar, até demais. Confesso que cansei. Não de escrever, mas de me levar tão a sério. Estou me dando todos os tempos possíveis, todas as brechas, todas as pausas e respiros. Deixo o processo criativo rolar de forma mais orgânica, menos rígida, menos técnica. Também por conta do momento que o Brasil atravessa. Tudo anda pesado demais e ando sentindo que escrever (e sobretudo publicar) o que quer que seja é uma responsabilidade imensa, e não deve ser um ato irrefletido. Então, talvez seja esse o conselho para o meu eu mais jovem: tempo, tempo, tempo. Tudo tem o seu. E tudo bem parar pra respirar e colocar as coisas na balança.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de traduzir a obra da Violette Leduc para o português. Em breve, pretendo publicar um trecho traduzido em uma revista, mas gostaria de traduzir livros inteiros, sobretudo a trilogia autobiográfica.
Quanto ao livro que eu gostaria de ler e não existe… Tenho medo de dizer que não existe e não ser o caso, às vezes fui só eu que não encontrei. É um livro brasileiro, com certeza, e é um livro de horror. Desses que dá muito medo e tira o sono.