Nádia Junqueira Ribeiro é jornalista e doutoranda em Filosofia Política na Unicamp, onde pesquisa sobre Hannah Arendt.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho e a rotina matinal é fundamental para meu processo de escrita. Eu divido minhas horas de trabalho entre a minha tese e algumas assessorias ou consultorias de comunicação que presto. Aliás, devo começar dizendo que aqui vou falar sobre “como eu escrevo” minha tese, que é a escrita mais desafiadora que encontrei até hoje e a que mais me dedico atualmente. Então, apesar de escrever textos jornalísticos e umas poesias de vez em quando, vou falar do processo da escrita da tese.
Eu preciso ter uma percepção de como estou melhor para me dedicar à escrita da tese, tarefa que mais exige de mim, e aproveito aqueles momentos que naturalmente “travo” para me dedicar a esses outros trabalhos. Eu começo meu dia cedo. Estou de pé entre 6h e 6h30 e logo faço algum exercício físico, yoga ou uma corrida leve. Um processo importante para acordar meu corpo, me dar energia para o dia e, sobretudo, colocar a ansiedade em seu lugar. Cuido do meu espaço para que esteja agradável para começar o dia de trabalho, tomo café da manhã, levo mais café para a minha mesa e vou para a escrita. Essa é a melhor hora do dia para escrever. Se fosse possível, gostaria que esse período entre 6h e 11h se repetisse da mesma forma ao longo do dia. Isso porque é quando mais rendo. A cabeça está arejada, estou com pique, o mundo não começou a me “perturbar” e atiçar a ansiedade (a maior inimiga na escrita da tese) e o dia está fresco. Isso não é banal para quem vive no Cerrado. Acho praticamente impossível trabalhar bem escrevendo entre 11h e 15h naqueles meses de seca. Quando os prazos estão batendo na porta ou nesses meses de seca, antecipo o início do dia para 5 horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sem dúvidas, trabalho melhor pela manhã: quando a cabeça está arejada, estou com mais disposição, mais concentrada e o dia está mais fresco. Não preciso de muito para começar a escrever: preciso ter meu ambiente organizado e ter um cafézinho fresco passado. Tendo tranquilidade no ambiente, estou pronta para começar o trabalho. No último ano (pandêmico) acrescentei necessariamente a atividade física nas primeiras horas do dia e achei que o resultado foi evidente na produção.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A minha meta é por seções da tese e coloco um prazo generoso para não me atropelar. Digo isso porque se coloco uma meta diária ou um prazo ousado, sei que vou fazer de tudo para cumprir e isso significa me transformar num trator que me atropela. Desse jeito, quando um capítulo fica pronto, ganho uma infecção de garganta, por exemplo. Isso foi comum no mestrado, mas aboli no doutorado. Ter saúde e prazer para fazer o trabalho são metas fundamentais por aqui. Contudo, no geral, acabo escrevendo um pouco todos os dias. Quando encerro uma sessão, me dou uns dias para sair daquele universo de escrita. Leio outras coisas, faço outras coisas, atendo aquela listinhas de demandas que foram ficando para trás quando a imersão é priorizada. Depois vou voltando para a próxima seção pela pesquisa bibliográfica, seleção de textos, organização de estrutura para chegar naquele momento de escrita diária. Algumas vezes escrevo duas ou três páginas no dia e isso é muito. Algumas vezes escrevo um parágrafo tão importante e estruturante que me sinto satisfeita. Acontece de alguns dias ficar travada e não escrever nada. Respeito também esse momento. É sinal de que a coisa ainda não está clara e preciso dar alguns passos para trás e voltar a outras referências de pesquisa, colocar aquele nó em diálogo com alguém e depois voltar à escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para a escrita não ser penosa e ser fluida é fundamental que o processo anterior tenha sido feito com muita profundidade. Demoro bastante para chegar àquele momento “estou pronta pra escrever”. Mas não antecipar esse momento é essencial para que eu não viva a síndrome da página em branco ou a insatisfação com a escrita. Uma vez que tenho claro quais textos-base mobilizar para uma seção, faço duas a três leituras de cada texto (algumas vezes, quatro ou cinco). A última leitura tem a seleção dos trechos que devo mobilizar e daí já as registro num arquivo, ao lado do meu argumento que se relaciona a esses trechos. Passo para a leitura e seleção de trechos daqueles textos da literatura crítica que devem me ajudar também. Eu deixo essas leituras para uma segunda etapa para não influenciarem muito meu posicionamento frente aos textos-base. Depois que todos esses trechos estão num arquivo, escrevo meu argumento central e coloco a ideia da seção em estrutura, indicando “o que vou escrever em cada etapa”. Distribuo as seleções de texto entre essas estruturas e entro num processo de escrita meio costura, amarrando minhas ideias às seleções de texto, que no final das contas vão se diluindo no argumento conforme o texto vai surgindo.
Tenho trabalhado muito também a partir dos textos já escritos. Antes de voltar à pesquisa bibliográfica, faço uma leitura calma identificando tudo que precisa ser melhorado e acrescentado no texto que já tenho, para guiar com mais consciência esse processo de pesquisa. Depois daquela imersão de leitura, seleção e escritas de ideias-chaves, volto a esses textos e vou marcando o que vai ficar e o que não vai, nessa nova versão. Entre os trechos que vão ficar, indico aqueles que se mantêm praticamente como estão e os que ficam, mas com alterações. E daí eles acabam ficando lado a lado com essas novas seções de trechos e notas argumentativas. Os trechos escritos do zero começam a ser amarrados a esses outros a partir da argumentação indicada nessa estrutura determinada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que esse é o principal aspecto da escrita, o que mais deve ser conversado, principalmente com quem está começando. Eu fui aprendendo ao longo dos anos e hoje vivo isso com mais tranquilidade, mas às custas de sofrimento e caminhos errados. Eu indicaria três coisas importantes: a primeira é que a gente precisa se conhecer e se respeitar. Descobrir quando trabalha melhor, o que faz trabalhar melhor, do que precisa se desligar, para que precisa dizer não. Também respeitar quando não rola. Olhar e entender porque não está rolando. Muitas vezes o mais importante é não forçar a barra – que leva à procrastinação, à ansiedade, à frustração – sair, dar uma volta, conversar com alguém e depois voltar com mais tranquilidade. Por outro lado, é importante também saber que a escrita exige imersão e concentração, mais do que qualquer outra atividade. Por isso, é preciso criar condições para que quando for escrever, tudo esteja favorável. Não é possível escrever quando a cabeça está muito ligada em outras coisas, quando o whatsapp está ligado, quando a família está precisando de você.
A segunda coisa é meio irônica: ao lado da procrastinação mora a alta expectativa de fazer um trabalho genial. Não existe trabalho genial. Existe trabalho. Que exige dedicação, compromisso, disciplina. Ao lado disso, a expectativa tem que ser mais baixa: a gente só precisa fazer um trabalho bacana, redondo, que faça sentido. Não dá para sentar para escrever uma linha pensando que o trabalho vá ser indicado ao prêmio Tese de Capes. Ou que a tese vai revolucionar a área. Claro, pode acontecer, mas isso é consequência. Nesse sentido, percebo muita gente travada, ansiosa, procrastinando, sem conseguir trabalhar, mas ao mesmo tempo com a expectativa de fazer um trabalho genial.
A terceira coisa vem de um processo de sermos mais generosos conosco: é importante saber de onde você está escrevendo. Situar seu trabalho num processo de história de vida mesmo: de onde você veio, quais dificuldades enfrentou, quais limitações têm, quais foram as conquistas, o quanto caminhou. Isso é muito importante para saber comemorar um bom texto escrito e ter generosidade em acolher os problemas e limitações dele. Também entender o quanto vai dar para caminhar, o quanto não vai e dizer: está tudo bem. Todo mundo sai de pontos de partidas completamente diferentes e têm trajetórias ainda mais distintas. Então precisamos olhar o processo de escrita de tese atravessado por esses elementos. Esse processo foi bem importante pra mim. A minha expectativa em relação ao meu texto fica cada vez mais alta quanto mais me aprofundo na pesquisa, mais conheço trabalhos excelentes e vou tendo alcance do que não vou conseguir fazer. Preciso sempre me puxar de volta e dizer: esse não é o trabalho da minha vida. É um trabalho importante, mas com prazo. Preciso fazer o que é possível e acolher o que não vou conseguir. Pelo menos por agora.
Trabalhar em projetos longos nos exige confiar que o caminho vai ter um tanto do que a vida vai oferecer e outro tanto do que você vai determinar. No final das contas, os dois são absolutamente imprescindíveis pra coisa ser legal. A gente precisa tomar os remos e dizer: vou por aqui na pesquisa bibliográfica, vou priorizar esses eventos, vou fazer essas disciplinas, vou estudar com aquela professora. Por outro lado, em cada etapa o percurso do rio vai mudar e saber navegar nesses fluxos é muito legal. Acho que não ter um plano de rota é altamente arriscado. Mas ser rígido no processo pode provocar um processo de muita ansiedade de ver a coisa ‘saindo do controle’ e impedir abrir caminhos que podem ser determinantes para o trabalho ser incrível. Eu não tinha ideia, no primeiro ano de doutorado, do que seria o “coração” da minha tese. Se eu começasse querendo determinar isso nos primeiros meses teria implodido de ansiedade. Foi o caminho que me mostrou.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas, muitas e muitas. O doutorado me ensinou a me desapegar do meu texto. Eu chego a ter seis versões de cada texto, porque meu processo de escrita é absolutamente coletivo. Isso porque tenho um grupo de estudos ativo, qualificado e exigente. Assim como a minha orientadora, Yara Frateschi, que faz uma questão absoluta de que esse trabalho seja mesmo coletivo. Foi o maior presente que a Unicamp me deu. Depois que meu texto está “pronto”, eu leio mais umas três vezes e envio a primeira versão para minha orientadora, depois para meu grupo de estudos, depois chego a mais uma versão, que talvez não seja a última rs. Muitas vezes discuto alguns nós e “travas” do texto e da pesquisa com uma colega, Nathalia, com quem compartilho temas parecidos de tese. Entre muitos benefícios desse processo, um dos mais importantes é deixar o texto cada vez mais claro e que vai refletir em uma argumentação concisa. Isso deixa o trabalho cada vez mais acessível a qualquer pessoa que se disponha a lê-lo: desde os ‘especialistas’ do tema a algum aluno de graduação, por exemplo, que tenha interesse naquele assunto. Os dois maiores erros inventados e perpetuados por aí são que o processo de escrita é um trabalho solitário e que para demonstrar domínio do tema sua escrita deve ser cheia de rococós e frases que o leitor precisa reler para entender. A gente precisa tornar nosso trabalho – financiado com dinheiro público, na maioria das vezes – acessível às pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Misturo: para a pesquisa bibliográfica, começo com post-it, depois vou para o computador. Para anotar as ideias, estruturas e argumentação, começo no caderninho, depois vou para o computador. Eu ainda penso na escrita como um trabalho manual mesmo. Preciso, literalmente, de desenhar o que está na cabeça para que depois o desenho vire texto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Desde criança, sempre gostei de perambular em áreas diferentes. Curiosa demais, com vontade demais de conhecer e viver tudo que tem por aí. Quando comecei a cursar Filosofia, eu estudava canto, piano, tinha um grupo de coco (que tenho até hoje), dava aulas de Inglês e logo ingressei também no curso de Jornalismo. Todo e qualquer dinheiro que conseguia guardar eu gastava viajando. Todo mundo dizia que uma hora eu ia precisar me decidir: ou jornalismo, ou filosofia, ou música. Que sem me dedicar unicamente a um deles, eu nunca seria boa em nada. Neste ano completam 14 anos que não deixei nenhum deles. Vi que é um pouco cruel essa frase de que “você tem que escolher uma coisa”, quando a gente cresce é na pluralidade e diversidade do que a vida oferece.
É verdade que nesse momento a filosofia tem tido mais minha atenção, mas passei também a unir a comunicação e a filosofia quando ingressei no doutorado, por exemplo. As coisas vão se ampliando, se unindo, abrindo novas possibilidades, novos horizontes. Bom, e o que isso tem a ver com sua pergunta? Eu acho que vêm daí minhas ideias: em cada momento estou num lugar, fazendo alguma coisa diferente, dialogando e interagindo com pessoas diferentes. Além de me manter criativa, penso que me mantém com os pés no chão: eu nunca perco de vista que existem outros campos de saberes, de atuação e que existem pessoas grandiosas fazendo coisas completamente diferentes de mim. Quando ficamos imersos demais fazendo uma só coisa percebo que acabamos cultivando uma certa arrogância ao olhar para o que é diferente desse campo. Em 2020 comecei a aprender a tocar violão: é muito bom ver como somos péssimos em uma coisa e sermos desafiados num universo diferente. Então, para me manter criativa, mantenho a criança curiosa ativa: conhecendo e fazendo o que puxa o interesse.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O respeito pelo processo de escrita e pelo meu ritmo. Eu diria um sonoro “take it easy, Nádia!”. Essa coisa de forçar a barra, escrever à base de café, entrar madrugada, chegar de um expediente de oito horas e enfiar a cara no computador porque precisava cumprir aquela meta. Isso é agressivo e contraprodutivo. A outra coisa que mudou foi esse aspecto coletivo da escrita, que acabei ganhando na Unicamp. Eu gostaria de ter compartilhado meu texto com mais pessoas, ter dialogado mais, com mais gente. Eu achava que bastava ficar sozinha, concentrada em minha mesa pro bom texto sair. Hoje sei que ele começa e termina ali, mas existe um ‘entre’ bastante coletivo que é o que faz com que o texto fique legal de verdade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nesses anos de doutorado, duas vontades surgiram. Comecei a trabalhar a partir delas, mas gostaria de ampliar mais esse trabalho – quando a tese for defendida, quem sabe. A primeira delas é contribuir mais com a divulgação filosófica, estabelecendo canais de diálogo entre a comunidade filosófica e a sociedade, em geral. Tenho contribuído nos últimos anos, nesse sentido, com a Anpof; contribuí recentemente com a Escola As Pensadoras, mas tenho vontade de colaborar com mais iniciativas, colocando a comunicação à serviço da divulgação desses estudos e reflexões tão urgentes nesses tempos sombrios que vivemos. O segundo diz respeito à divulgação dos trabalhos de mulheres na Filosofia, uma das áreas com maior desequilíbrio de gênero no Brasil e com grande invisibilidade de mulheres no cânone. Eu me juntei à minha orientadora e a outras professoras contribuindo com o Blog Mulheres na Filosofia, colaborei com eventos acadêmicos sobre mulheres na Filosofia, além de outras iniciativas a partir da comunicação da Anpof. Também tenho vontade de poder contribuir mais com esse caminho, para que a Filosofia seja menos hostil às mulheres e para que os trabalhos das mulheres sejam cada vez mais lidos, conhecidos e pesquisados.
Eu nunca tinha pensado em qual livro gostaria de ler e ainda não existe. Penso que a graça está mesmo em me encontrar com um livro e me surpreender com o que está ali. De todo modo, há exatos dois anos eu li um livro que me bateu uma sensação como a da sua pergunta: caramba! Era o livro que gostaria mesmo de ter lido! “Why read Arendt now?”, do Richard J. Bernstein, publicado em 2018. Eu me encantei com a sua capacidade de síntese nessa obra e de colocar o pensamento de Arendt como ferramenta para pensar nossos tempos em um livro tão curto, de forma tão clara. É uma bela lição de como podemos (e devemos) transformar nossos longos anos de pesquisa em algo tão claro e acessível a tanta gente.