Morgana Rech é psicanalista, mestre em teoria literária pela Universidade do Porto e doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Ah, eu sou daquelas pessoas bem “sunshining day” de manhã. Em geral a primeira coisa é ligar música, às vezes no rádio, às vezes na internet. Depois disso depende um pouco se vou para o consultório logo cedo, ou se fico em casa trabalhando. Isso muda ao longo da semana. Se tenho hora para sair, vou fazendo tudo meio junto: relembrando as coisas marcantes do dia anterior, as conversas que preciso ter, fazendo café, arrumando cama, recolhendo coisas pela casa. Agora, se eu vou ficar em casa, já ativo um ritmo mais ritualístico, principalmente se for escrever; vou buscando um estado mais calmo. Mas, em geral, posso dizer que começo o dia animada, o que já me causou conflitos de adaptação com pessoas que demoram muito tempo e precisam de longos silêncios para acordar. Gosto de comer bem de manhã, fazer uns exercícios na sala, quando dá tempo. Dá até para dar uma dançadinha, se eu estiver com energia. E quase sempre estou com energia, ainda bem.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para escrever, é de manhã. Para atender, é sempre. Tenho rituais, claro. Enquanto estava escrevendo a tese, tinha aquilo de buscar uma calmaria de propósito, fazer chimarrão quase sempre, respirar fundo e principalmente me preparar para encarar o texto. Entender que ele estava ali me esperando, mas sem muita rigidez também; sem me privar por exemplo de conversar com alguém ou me distrair antes de começar, embora essa distração tenha de ser uma coisa rápida, contada no relógio. O ambiente ao redor é muito decisivo e minha relação com ele é bastante dependente do estado do texto. Se sei o que vou escrever naquele dia e naquela manhã, se a coisa já está bem encaminhada, então eu não dou muita bola para o ambiente; não ligo se a sala está arrumada, a mesa limpa ou os livros organizados. Agora, se estou meio no limbo, sem saber qual será o próximo passo ou com problemas teóricos graves para encarar, aí eu preciso de tudo em volta em perfeita ordem. Até me vestir melhor eu me visto. Jamais escrever de pijama ou de roupa velha nesses dias. Já aconteceu de eu trocar mais de uma vez de roupa em ocasiões como essa. É mais angustiante, mas ao mesmo tempo acho bonita a ginástica. Opostamente, já ocorreu de eu estar com o ambiente bem desorganizado, a mesa toda bagunçada, mas feliz da vida porque o capítulo estava indo bem e eu estava empolgada e segura naquela etapa do trabalho.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A tese foi em períodos concentrados, como disse, por causa das outras atividades, principalmente as aulas, os grupos, o consultório e os afazeres na Subversa também. A dissertação de mestrado não, eu estava fazendo só aquilo; passava o dia nas bibliotecas municipais da cidade do Porto, das 10h às 18h, uma maravilha. Aí tinha metas diárias, sim, era o mínimo que podia esperar de mim. Hoje em dia são períodos concentrados, mas acho que eu acabo escrevendo todos os dias, no fim das contas. Mesmo quando fico mais tempo no consultório, escrevo as sessões, ou ando com a lapiseira pelos cantos dos livros que vou lendo. Uma vez por mês eu escrevo um editorial para a Subversa e acontece de um jeito totalmente diferente de qualquer outra escrita: escrevo no dia mesmo, geralmente na hora de publicar, de supetão. Não dura mais de 15 ou 20 minutos. A Tânia, que fundou a revista comigo, me ajuda a cortar meus excessos e me dá os toques fundamentais. São textos curtos com os quais tenho muita intimidade. É curioso isso, me acostumei a fazer assim e agora parece que só pode ser feito assim. Não faz sentido para mim, por exemplo, escrever um editorial na noite anterior…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não acho difícil começar, muito menos se eu tiver as notas suficientes. O difícil para mim é ter essas notas em harmonia. A pesquisa de doutorado dura quatro anos; eu comecei fazendo um tipo de fichamento e terminei fazendo outro. Depois da qualificação e de ter encontrado o método final e a estrutura do trabalho, os fichamentos ficaram mais maduros e mais ágeis. Alguns fichamentos lá do início eram ingênuos e pesados… O difícil foi articulá-los, mesmo porque tinham coisas boas no início. Na minha área, psicanálise e literatura, não acho que exista muito movimento entre pesquisa e escrita porque não acho que exista muita separação entre elas. Por isso a leitura tem que ser feita com um olhar já bem criativo, caso contrário pode cair em lugares que eu considero pouco frutíferos para serem desenvolvidos. Então para mim não é um movimento de sair da pesquisa e ir para a escrita, mas de andar em círculos dentro das duas, até que delas surja o caminho que eu quero seguir.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu já tive mais medo de projetos longos, hoje não tenho muito, pelo menos não no trabalho. Essa parte já está resolvida. Acho que esses medos que você citou eu aplicaria mais à minha vida pessoal; à maneira que lido comigo de modo geral, mas isso também vai passar um dia. Já passou no trabalho, o que já é uma grande coisa. Tenho tratamentos longos em curso, a revista também existe há bastante tempo e acho que abracei bem o doutorado, que costuma ser bem desgastante para a maioria das pessoas. Durante a escrita acadêmica, geralmente é um livro específico que me tira da crise. Na dissertação, foi o Foucault que me deu a mão. Na tese, foi o Rancière. Eu procrastino um pouco, mas não muito, e é mais quando estou passando por uma parte mais árida do texto, e isso se ele for acadêmico. Aí eu recorro àquelas coisas bem concretas que falei acima: arrumo o ambiente, troco de roupa, tomo banhos, se for preciso. É uma tentativa de arrumar as ideias arrumando o corpo e o espaço que o corpo ocupa. Sair para andar, porque às vezes simplesmente não adianta insistir. Ou não adianta naquele dia. Na poesia não existe procrastinação, eu acho. Deixar de escrever um poema por procrastinação é uma escolha, no meu ponto de vista. Na tese, houve um período bem difícil, mais ou menos no segundo ano, em que eu estava achando que a minha pesquisa não ia prestar para nada, estava cara a cara com o desânimo e ele estava me assustando. Então comecei a escrever poemas, que chamei de poemas-pesquisa. Eles me ajudaram muito e me deram a empolgação que eu precisava. Tenho uma porção deles guardados e quero publicá-los em breve. Mas agora não sei se publico um livro chamado “Poemas-Pesquisa” ou se dou um outro nome que está na minha cabeça, porque, no fim, comecei a escrever outros poemas que já não eram salvadores de bloqueios de pesquisa, porque eu consegui ultrapassar essa fase. E também porque vivi uma situação muito triste, e então tudo mudou de cara.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se está pronto e eu acho que está bom, fico ansiosa e reviso muito menos do que deveria. Fico animada com a sensação de ter terminado algo bom e quero logo mostrar, publicar ou entregar a quem o está esperando. Se estiver pronto e eu não estiver muito satisfeita, reviso mais, mas aí já é um revisar querendo melhorar. Reescrever, se for possível. Sempre mostro para as pessoas em quem mais confio, mas para cada tipo de texto, sei que tal ou tal pessoa vai ter um olhar mais certeiro ou mesmo mais paciência para ler. Porque cada um tem suas coisas para fazer. Já o texto acadêmico, não temos muita opção senão enviar para o orientador assim que o prazo terminar, não é mesmo? Foi o que fiz sempre, muitas vezes recebendo críticas duras logo em seguida. Muita risada, amigos e cerveja para aguentar os episódios de grandes críticas da orientadora; mas no fim nos entendemos bem e nos surpreendemos uma à outra, positivamente, acho eu.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu não tenho propriamente uma relação com a tecnologia, mas com os textos. Se você for ver, a dimensão textual está em alta. Sem críticas, mas a verdade é que todo mundo virou um narrador permanente do seu cotidiano. Todo mundo emite texto a toda hora e tenho a sensação que a tecnologia depende desses textos para existir. E a minha relação com esses textos vai alterando minha relação com a tecnologia, que não se limita ao computador. Acho interessante, por exemplo, os textos que acompanham os eletrodomésticos, a maneira como as tecnologias se expressam e afetam as pessoas. Ela é um meio de uso dos intertextos que estão aí no mundo, e faz com que eles andem mais rápido, o que às vezes é bom, às vezes é ruim. Das redes sociais, às vezes participo mais, às vezes menos. Na pesquisa, em geral escrevo muito à mão no início, sublinho, faço setas. Quando estou mais à vontade e segura com o que estou fazendo, começo a fazer fichas diretamente no computador, com citação, página e comentário. Poesia funciona bem no computador também. Os versos em papel às vezes ficam ótimos, mas esquecidos. À mão, deixo para escrever cartas, postais e bilhetes. Eu adoro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm da minha cabeça e dos meus sentidos. Mas basicamente da atitude de colocar essas duas dimensões em conflito e em contraste. É uma investigação interna que precisa estar em contato com a realidade, mas aí ela pode ser qualquer coisa. Uma vez me disseram que a inspiração está aí, que quem catar primeiro leva. Gostei muito de pensar assim, porque cai um pouco aquela ideia de ser possuído por uma divindade que dá o talento para uns e outros. Então a inspiração é um pretexto para escrever e materializar a disposição de se permitir sentir uma coisa bem esquisita diante de alguma coisa bem esquisita do mundo, e ver como isso vai sair em linguagem. Ou seja, a inspiração dá bastante trabalho. Não cultivo hábitos específicos, além de ler, me manter o mais saudável possível e deixar sempre um espacinho para a surpresa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o processo de escrita muda todos os dias. Terminei minha tese há dois meses e já estou estranhando o texto. Tanto no sentido positivo, de me dar conta da trabalheira que foi e do fôlego que eu tomei, como num negativo, de rejeitar o uso de certas palavras ou repetições. Na escrita acadêmica, a evolução é muito óbvia: o que eu me diria há um tempo atrás era para estudar mais, rs. O texto acadêmico evolui conforme consigo explicar coisas difíceis de uma forma simples. Na poesia não é tão lógico assim o processo de evolução. Às vezes estudar muito pode prejudicar a produção e enfraquecer o poeta; ou não, pode acontecer também o contrário. Tenho poemas antigos que eu considero muito imaturos, até mesmo que não deveriam ter sido publicados. Eu só queria cantar o amor. Por outro lado, eles têm uma forma que reflete aquela ingenuidade e que eu já não consigo alcançar. Hoje já sei que não se pode cantar o amor de qualquer jeito e me exijo mais na maneira de encontrar esses novos jeitos. Isso não quer dizer que minha forma de escrever poesia evoluiu, muito menos que foi para melhor. A escrita acadêmica parece ter melhorado, sim, principalmente na medida em que eu consigo priorizar a experiência do leitor e levá-lo mais em consideração do que a minha vaidade de pesquisar e divulgar o meu texto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto da Subversa é tão grande e importante para mim que eu não fico muito inquieta querendo fazer outras mil coisas. Estou satisfeita com o projeto que criamos, pois ele vai se ramificando em possibilidades múltiplas e se mantém vivo. Felizmente tenho contato frequente com outros artistas e pesquisadores e isso me mantém permanentemente envolvida não só com o meu projeto, mas com o projeto dos outros. Acho isso bastante importante, principalmente hoje em dia. Não ficar girando em torno do próprio umbigo e/ou do umbigo dos melhores amigos, mas realmente lançar um olhar amplo para a arte brasileira – no meu caso, que moro aqui – em sua multiplicidade. Quando digo multiplicidade não quero dizer as diferentes formas que as mesmas pessoas encontram, mas de poder ver que existe autor de poesia contemporânea, autor de poesia tradicional, autor lírico, autor de poesia cafona (mas boa) etc. Pôr no mesmo lugar um autor conhecido da zona sul carioca e um professor do interior de Minas que escreve poemas para os alunos e para as plantas da região. Não gosto da poesia que é feita só entre amigos que compartilham do mesmo estilo de vida, mesmo porque existe competição entre os poetas; desde sempre houve e precisa haver. Negar essa competição é, de certa forma, impor uma ordem mais totalitária ao fazer literário. Para que exista poesia, os poetas têm que competir uns com os outros, precisam querer se ultrapassar. A poesia não é um mar de rosas onde existe espaço para todo mundo. Por isso fico feliz com a Subversa: porque conseguimos criar um projeto em que realmente existe espaço para todo mundo, mas sem desprezar a competição inerente à sobrevivência da literatura. Então, de certa forma, os projetos que ainda quero fazer estão mais ou menos dentro da revista. Agora, respondendo à segunda pergunta – e já me despedindo – o livro que eu gostaria de ler e ele ainda não existe… Acho que poderia se chamar “Dicionário de arte para psicanalistas”, com várias definições de conceitos psicanalíticos explicados à luz da teoria literária e das teorias de arte (que conheço menos), com bastante ironia. Já li algumas coisas que são próximas dessa proposta, mas os que conheci eram livros tristes e pesados. Queria ver um livro desses mais alegre. Tomara que alguém bem talentoso esteja lendo isso!