Monise Martinez é editora, pesquisadora e doutoranda em Estudos Feministas no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia pensando ou no que sonhei durante a noite, ou no que vou ter de fazer naquele dia. Eu sonho bastante e geralmente lembro de muitos detalhes. Não tenho o hábito de anotar, mas gosto de ter este momento de ‘silêncio narrativo’ comigo mesma quando acordo. Depois começo a pensar em coisas que precisam ser feitas dali a nada ou, se eu tiver num daqueles meus dias de ansiedade, dali a uns dias, semanas ou anos — essa é a parte que desvio a atenção para uma coisa concreta para evitar entrar no carrossel do ‘e se’. Neste meio tempo, participo também como coadjuvante na rotina da Muxima, minha gata: ela acorda mais cedo do que eu, toma banho, fica impaciente, pede comida, água, uma janela aberta e uma partida de pique-esconde. É ela quem vai levando a gente para a cozinha para o café da manhã. Em tempos ‘normais’ todo esse processo aconteceria num zás-trás antes de eu sair de casa para trabalhar. Na pandemia a coisa vai um pouco mais lenta.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meus trabalhos quase sempre envolvem a escrita e eu sempre gostei muito de trabalhar pela manhã. No verão, sinto que é a parte do dia em que tenho mais disposição. Tento me organizar para fazer o máximo possível antes do Sol estar a pino, mas nem sempre consigo e nem sempre é possível. No inverno a coisa muda um pouco de figura e eu acabo tendo mais pique na parte da tarde — mesmo se eu começar a trabalhar umas 10h, o pico do meu rendimento vai rolar só lá pelas 15h ou 16h.
Não chamaria de ‘ritual’ o que faço antes de escrever porque não é que a escrita não aconteça se eu tiver que dançar conforme a música. Neste momento, por exemplo, trabalho diariamente na minha tese de doutorado. Nesta lida, eu gosto de organizar o ambiente antes de começar. No entanto, pode rolar uns dias de caos feat desespero. Escrevi a parte final do meu projeto de qualificação num trem e já tive que elaborar conteúdos viajando de ônibus. Não vejo glamour nestas situações. Aliás, não gosto de aproximar a escrita da genialidade estereotipada da pessoa multitarefas que sem nenhum esforço produz o texto perfeito, ou da alma solitária que escreve bebericando uma taça de vinho e com alguma miopia num escritório retrô.
Nada contra, até tenho amigues que são. Mas existem muitos fatores e processos sociais que influenciam a forma como entendemos e lidamos com a prática da escrita, e também a maneira de concebermos a figura de quem escreve. Transitar pelo mundo da edição faz a gente perceber que há muito por detrás deste processo. Nem sempre isto é falado. O resultado é a escrita ser eventualmente concebida apenas como extraordinária. Talvez seja mais o oposto disto, digo, o resultado daquilo que o ordinário nos impõe. O dia que eu escrevi no trem, por exemplo, foi um perrengue infernal para mim. E tenho certeza de que muitas das histórias glamorizadas sobre escrita decorreram de uns corres meio cagados na vida de quem escreveu. É um processo curioso ficcionalizar esta prática. Mas o que eu gosto mesmo é pensar mais sociologicamente sobre isto: quem é que pode escrever, ser lido/a, por quem, aonde e por quê? — isto me ajuda a entender o meu lugar na escrita, e a escrita no meu lugar também.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quase todos os dias e não gosto de me colocar uma meta diária. Já tentei fazer assim, mas acho violento impor isso a um processo nem sempre tão linear. Isto porque não acho que o escrever acontece só quando a gente coloca as coisas no papel de uma forma mais ‘finalizada’ — este entendimento eu devo à escritora, amiga e professora Carolina Zuppo Abed, com quem já dividi muitas angústias sobre o tema. Considero que estou escrevendo nas etapas de formulação também, então não me pressiono para produzir um x. Porém como na maior parte das vezes escrevo no mood‘ganha pão’, eu tenho tipo um horário de trabalho.
Ter um horário não significa que eu vou ser produtiva de forma constante. Há um hiato grande entre começar e finalizar a escrita. No rolê acadêmico, por exemplo, sei que alguns dias vão ser mais de parágrafos e páginas e outros mais de leituras e esquemas mentais. E tento usar experiências positivas a meu favor para driblar a ansiedade que chega nos dias em que não sai nenhuma linha. O meu relógio ansioso funciona acelerado e sempre numa corrida meio catastrofista — às vezes me vejo escrevendo como se um apocalipse fosse acontecer caso eu não consiga terminar. Porém, é válido dizer que nas atuais conjunturas os ponteiros têm corrido mais na direção de eu sentir que está mais para o mundo acabar enquanto eu escrevo do que o contrário. Por estas razões, metas de produtividade diárias não funcionam para mim. Trabalhar com prazos finais e falar com pessoas próximas sobre a escrita enquanto ela vai acontecendo, sim. Eu falo muito com as pessoas enquanto estou em processo. Às vezes até choro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita é intenso. No caso da escrita acadêmica, começo pensando numa situação ilustrativa a partir da qual eu vá poder trabalhar dimensões diferentes do debate e da análise que quero propor. Penso e pesquiso sobre os elementos que constituem essa narrativa inicial enquanto vou escrevendo e imaginando mais ou menos como será a divisão do texto como um todo. Nunca finalizo esta parte de uma vez porque ela funciona como começo e fim. Só consigo terminá-la quando todo o resto está feito — e de fato, se eu pudesse desenhar como eu escrevo, eu faria um ciclo. Deste escrito inicial vou para a discussão teórica que quero fazer. Já começo escrevendo um parágrafo, me deparo com a necessidade de mais pesquisa, encontro novas bibliografias, leio, tomo notas, e volto a rever e a escrever depois deste tour. Sinto que essas três etapas acontecem quase que ao mesmo tempo no meu caso porque não consigo me desligar de nenhuma delas enquanto estou fazendo a outra. Independentemente do momento do percurso, faço montes de anotações em folhas de papel. A maior parte delas nunca volto a ler, mas me ajuda a encadear as ideias.
Quando escrevo apenas por fruição, o processo é mais ou menos o mesmo, mas com algumas particularidades. Começa quando algo me atravessa de forma meio inesperada e me leva para um verso, uma frase ou um período — quando escolho tema de pesquisa é assim também. Se der, anoto no bloco de notas do celular ou no Word. Se não tiver forma, gravo um áudio; minha irmã sempre recebe uns áudios destes no WhatsApp porque uso o nosso chat como ‘audiobloco’ (perdão, Gabriela). Se nenhuma dessas estratégias puder se realizar, tento decorar para anotar quando der. Às vezes as ideias morrem rapidamente depois disso. E muitas vezes ressuscitam — teve um poema que comecei a escrever mentalmente fazendo esteira na academia, continuei no bloco de notas do celular, no vestiário, e terminei um ano depois, num sarau.
Na tarefa de dar ‘continuidade’ aos ‘começos’, migro o pensamento para as intertextualidades, linguagem, sensações e reflexões que quero provocar ou transmitir. De alguma forma, faço um pouco disso nos meus textos acadêmicos também, incluindo a parte de às vezes ter um insight no meio de uma conversa nada a ver e mandar áudios com elucubrações para a minha também. É por essas coincidências que defendo que a escrita acadêmica não precisa ser chata se a gente conseguir movimentar um pouco as fronteiras sabendo dominar bem o que cada contexto exige (é o que eu tento fazer, pelo menos).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação acontece quando tenho um pico de ansiedade com um texto. Nesses momentos abro abas no Google para pesquisar coisas aleatórias, invento assuntos urgentes para falar com as pessoas e tomo banho. Sinto que perco mais tempo do que deveria nesse rolê. Mas, no meu caso, costuma ter um limite. Quase nunca se torna uma questão que compromete o que precisa acontecer, então encaro como parte do processo e tento fazer disso algo inusitado, do tipo ler interpretações de mapa astral de autores/as que eu estou usando na minha pesquisa. Até rola uns ‘sabia que era de Peixes essa’ (risos).
Com o lance das expectativas eu sou péssima. Morro de medo de machucar alguém e também tenho medo de me machucar. É com a escrita que às vezes eu firo e que eu sou ferida também. Meu nível de cobrança e exigência é muito alto. Rola perfeccionismo e, sobretudo, medo de falhar. Costumo dizer que a escrita é sempre o lugar de onde eu fujo e para onde sempre volto. Fujo porque há muitos desafios que tenho de encarar para estar ali com ela. Volto porque eu gosto de desafios. Tenho muita coisa ainda para resolver neste processo de ida e vinda.
Sobre a ansiedade com projetos longos: milagrosamente não tenho. Na verdade, eu fico ansiosa quando não há projetos à vista ou quando os que existem estão chegando ao fim. Odeio terminar as coisas, mas gosto muito de começar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Trabalho muito com edição, preparação e revisão de textos. Por conta disso, quando eu escrevo vou fazendo várias coisas que poderia fazer numa segunda etapa, do tipo cuidar as repetições de palavras, viúvas e órfãs, verificar proporção entre os parágrafos, estilar as coisas etc — basicamente é escrever preparando e revisando. Não consigo contar quantas vezes reviso o texto antes de considerar finalizado. Uma vez alguém me disse que a gente nunca acaba um texto, só abandona mesmo. Então acho que é assim. Mas sempre faço uma revisão final tendo o todo como perspectiva.
Sobre mostrar para outras pessoas, eu faço isso desde a escola, quando eu escrevia redações e ligava para minha tia Célia e lia o texto para ela ao telefone. A técnica mudou com o passar dos anos, para alegria de quem já foi vítima do meu golpe do telefonema-texto (salve, família e amizades!), mas ainda gosto muito de partilhar o que eu escrevo com pessoas próximas e ler o que elas escrevem. Nos últimos tempos isso tem rolado mais com textos acadêmicos. Há companheiros/as de jornada acadêmica com quem partilho muito e também tenho orientadoras presentes, que me dão feedbacks construtivos, embora eu sempre tenha vergonha e medo de mostrar as coisas para elas. Sou muito grata às pessoas pela generosidade e pelo olhar crítico, e principalmente a quem segura a minha marimba quando a síndrome da impostora bate (obrigada, Dani) ou quando acho que tudo está realmente muito terrível (no caso, quase sempre).
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador. No papel, só esquemas, palavras-chave, ideias meio soltas. No processo da escrita acho que mobilizo as duas coisas. E gosto da complementariedade que elas assumem pra mim neste contexto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tudo aquilo que me deixa indignada impulsiona a minha escrita. Quem me conhece bem sabe que quando eu fico brava tudo roda a mil grau. Mas não é só daí que as ideias vêm. Eu gosto das memórias também. Quando tive de escrever uma autobiografia de gênero para uma das disciplinas do doutorado mergulhei num universo que fragmentei depois num texto que ainda não publiquei oficialmente, mas fiquei feliz de produzir. À parte disto, qualquer paixão que eu tenha costuma resultar em alguma coisa, assim como histórias sobre perrengues — faço isso desde criança. Na verdade, acho que se eu tiver num dia bom, encontro rápido um assunto para caber na minha vontade. Não tenho muita metodologia nisto da criação, mas eu sei que ouvir histórias das pessoas me ajuda bem. Converso com qualquer pessoa que goste de falar e elas sempre aparecem na minha vida (às vezes acaba em discussão, risos). Faço isso desde menina e, como tenho uma memória boa, acredito que muito do que eu escrevo surge nesses papos aleatórios — uma vez, por exemplo, eu escrevi uma crônica sobre uma senhora húngara com a qual conversei em Budapeste. A questão é que eu não falo húngaro e foi nessa língua que ela se comunicou comigo por cinco minutos numa praça (risos).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que fiquei mais rígida. E aprendi a usar mais o ponto final. Sempre fui uma pessoa das vírgulas e um dia uma das minhas orientadoras, a professora Adriana Bebiano, me mandou uma real sobre o assunto. Fiquei meio sentida, mas depois entendi que o excesso das vírgulas e a ausência dos pontos finais dizia muito sobre a minha ansiedade na escrita. ‘Uma ideia, um ponto’ (roubei dela) — e aprendi a respirar melhor. Também notei que a minha escrita mudou um pouco quando comecei a ler e a escrever mais em inglês, por ossos do ofício. Nesta lida, a professora Maria João Silveirinha, que me orienta também, teve um papel especial. Foi com ela que eu me senti livre para enfrentar meu medo dessa língua. E isso foi um grande passo no meu processo de escrever. Apesar destas vivências positivas, quase sempre acho que tudo o que eu faço está aquém do que deveria. Isto me paralisa na coisa de botar mais a cara no sol. Não gosto de falar sobre o que eu não sei, e para eu achar que sei alguma coisa o suficiente, levo tempo demais.
Na escrita de fruição, a graduação em Letras mudou muito a minha forma de pensar. Passei a ter mais medo do papel e a gostar mais de analisar do que de ser analisada. Viver em Portugal também contribuiu com isso — a língua portuguesa opera de outra forma aqui e a colonialidade não acabou para muita gente. De uns tempos para cá tenho tentado achar o caminho de volta para a escrita de fruição. Na verdade, quando eu olho para a minha trajetória, vejo que nunca saí dele. Se eu pudesse voltar atrás eu só diria ‘Que bom que você escreveu’. Não gosto de tudo o que eu já fiz, mas gosto de pensar que esse ‘tudo’ está na base do que venho me tornando. Tenho muito orgulho dos primeiros versinhos que mandei para a Editora Ática quando tinha doze anos, por exemplo — eles não foram publicados, mas pensei muito neles quando comecei a minha carreira na edição como estagiária nesta editora nove anos depois.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Parece clichê, mas eu gostaria de escrever um livro. Sempre me boicoto e não vou atrás de botar isso em prática. Já tive várias ideias começadas que larguei pela metade ou fingi que tinha esquecido. Então vai parecer meio ególatra, mas eu queria um dia ter a possibilidade de, como editora, ler um livro escrito por mim sem que eu fosse eu mesma. Talvez assim eu conseguisse achar bom e pensasse ‘Olha, vamos publicar!’ — e daí quem sabe eu até contratasse meu outro eu para revisar o livro e me tornasse uma ‘seguimora’ do perfil de influencer que não tenho no Instagram.