Mônica Ribeiro é arquiteta, escrevedora e empilhadeira.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia já correndo, pois sou servidora pública municipal (trabalho como arquiteta). Saio cedo da cama – a contragosto – e vou para o trabalho. Esta é uma rotina que me é imposta e que me imponho pela necessidade pessoal de me sentir estável. Como não me dou bem acordando de manhã, é sempre na pressa, sem tomar café, sem arrumar os cabelos que saio de casa. Quando não estou trabalhando, começo o dia tarde e não sigo rotina nenhuma. Caso não tivesse a jornada de oito horas a cumprir, responderia aqui que vivo a rotina do caos.
O horário em que estou mais relaxada para dormir é de manhã. É quando vêm com mais nitidez os sonhos, sempre com enredos surreais. Gosto do sono das manhãs e da vigília das madrugadas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Percebo que a escrita me ocorre mais à noite, e sobretudo de madrugada. É quando surge o silêncio externo e os sons silenciosos internos se dão. Não tenho uma preparação para a escrita. Chamo o que me acontece, quando vem o texto, de Minha Paganíssima Trindade: a cabeça pensa com sua voz sem timbre, as palavras se transferem para os dedos e a escrita se faz verbo visual. Tive esta percepção e esta vivência depois que passei a escrever diretamente no computador, já que digito muito rápido. É como se os três momentos ocorressem simultaneamente, daí o nome.
Acho que ficou clara minha falta de ritual. Curiosamente, apesar de ter TOC, não sou uma pessoa ritualística. Talvez por isto não seja assim. Já tenho muito trabalho com as mirabolâncias que minha mente inventa para vencer a ansiedade que ela mesma cria.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo praticamente todos os dias, mas há períodos mais férteis. Sinto falta quando passo dias sem escrever. Mas basta que a voz interna me diga – o tom é de governanta alemã! – que preciso escrever para que todos os textos possíveis se escondam nos fundos falsos das gavetas de minha cabeça. Antes me cobrava por isto. Hoje vejo que é bom não estabelecer metas, a fim de que a Paganíssima Trindade se constitua. Sim, hoje respeito este “fenômeno” que me ocorre e a irreverência mental de que preciso para escrever. Ou ao menos tento.
Caso estabeleça para mim uma meta, esta sempre será muito alta, sobretudo em termos de qualidade, mas também de quantidade. Tenho o Superego (parece que hoje os psicanalistas dizem Supereu) muito forte, o que me atrapalha em todos os aspectos da vida. Já que a escrita é um prazer, não quero contaminá-la com as ordens de Fräu Helga, a Super Helga, minha governanta alemã interna.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não faço compilações e ainda não escrevi algo, no que chamo de escrita prazerosa, que me requeresse pesquisa. O texto começa a vir e, a partir do prazer de “pensar pelos dedos”, dá-se meu fluxo de escrita. Pretendo, ainda que sem estabelecer metas, tentar algo mais planejado. De forma não reverente, claro.
Quando falo em “escrita prazerosa”, pode parecer que se trata de algo sempre fácil e alegre. Não é. O prazer muitas vezes vem associado à dor, a temas pesados, tristes. Escrevo muito a respeito da angústia de viver, falo muito – quase o tempo todo – de mim mesma e toco muito no tema depressão (sou depressiva crônica).
Voltando ao gostar de escrever, ainda na época da escola sentia enorme prazer quando havia redação, claramente uma escrita dirigida. Não escrevia espontaneamente, talvez pela dificuldade imposta pelo estado depressivo. Lamento que tenha sido assim, mas preciso de parar de pensar no “e se”, já que não há volta.
Tenho a intenção de voltar àquela época de forma positiva, me propondo temas, talvez até mesmo um pouco diversos do meu cotidiano, para experimentar algo que me exija mais do que a Paganíssima Trindade me dá. Como sou, além de depressiva, ansiosa generalizada (ah, os diagnósticos! risos), acabo por me ver em dificuldade quando tento criar algo mais dirigido, planejado. Quero enfrentar esta dificuldade.
A forma como escrevo é a mesma e ao mesmo tempo diversa tanto no caso de prosa quanto no que chamo de empilhamento. Ainda não sei dizer como se dá. Por muitos anos escrevi só prosa. O empilhamento surgiu certa vez em que, pensando na impossibilidade de edição do Facebook, comecei a dar ENTER num texto. Dali para a frente, fui experimentando novos formatos, novas brincadeiras com as palavras e não parei. Sim, sempre com base na intuição. Intuição? Ou seria falta de planejamento?
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido nada bem. A depressão crônica e o transtorno de ansiedade generalizada (diagnósticos novamente!) fabricam a insegurança crônica e, por isso, acabo não acreditando muito em minha capacidade de escrita. Se me dizem escritora, corrijo: “sou escrevedora!” Se me dizem poeta, “sou empilhadeira!”
Ao mesmo tempo, como tomo muitos medicamentos psiquiátricos por causa da depressão – passei por uma crise forte da qual ainda estou me recuperando –, vez ou outra cismo que estes estão me roubando as palavras. Vejo, no final das contas, que não é o remédio que faz isto, mas minha própria cisma, além da depressão e da ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
O Facebook tem sido minha ferramenta de escrita e de edição de textos. Muitas vezes, então, eu os publico da forma como surgem, sem burilar. Acabo, portanto, mostrando meus trabalhos previamente para quem quer que esteja ali vendo minha linha do tempo. Só assim tenho funcionado.
Quando tinha um blog, o Monicômio, eu escrevia sem mostrar para outras pessoas antes da publicação. Entretanto, eu revisava muitas, muitas, diversas vezes. O prazer da edição era muito grande e pretendo retomá-lo. Mesmo depois de o texto estar publicado eu relia, editava, avisava na caixa de comentários que havia editado e, assim, o próprio processo de escrita ficava até certo ponto visível para os leitores.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Houve um tempo em que eu só conseguia escrever à mão. Eram rascunhos bem maluquinhos: eu desenhava flores, estrelas, caracóis e outros signos para marcar os trechos em que queria colocar novas frases, parágrafos, escritos que vinham surgindo. Se hoje falo em trindade pagã, o que me ocorria poderia ser chamado de legião. Ah, explicando estes termos: não sou uma pessoa religiosa. É puro palavreado.
Depois de um tempo passei a escrever diretamente no computador e, com a rapidez da digitação, meu processo mental de escrita mudou significativamente, assemelhando-se mais a um pensamento por escrito, como já mencionei.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Esta é a pergunta mais difícil até agora. Diria que minhas ideias vêm basicamente do umbigo: falo muito de mim mesma, num ponto que chega a me incomodar. Ao mesmo tempo, não consigo evitar a escrita. Então, deixo que venha.
A criatividade: já contei que sou insegura, não? Esqueci? Eu sou! (risos) Então, me dizer criativa não é do meu feitio. Falarei, portanto, do que me levou a começar a escrever: a leitura. Eu era uma criança introspectiva, ou mais, extremamente tímida. Quando lia, sentia-me de certa forma liberta de todo aquele peso já tão grande para alguém ainda tão jovem. Notei, à medida que fui caminhando na leitura, que tinha prazer não apenas com o conteúdo, mas com a forma como as histórias eram contadas. Porém, na infância só conseguia escrever, já falei, sob demanda escolar. Hoje, se nem admitir que tenho criatividade consigo, não faço nada que se diga voluntário para me manter… criativa? (palavra difícil!) não. É… a timidez diminuiu, mas não se extinguiu.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou a forma como escrevo, já que hoje pouco manuscrevo. Mudou a roda que move minha escrita, já que antes eu escrevia sob demanda, nas redações de escola, nas provas em que se pediam resenhas de livros, nos trabalhos de faculdade.
O que eu diria a mim mesma?
– Mônica, o que lhe dá mais prazer na vida é escrever. Escreva. E acredite mais em si mesma (esta última frase é um daqueles clichês importantes que a gente precisa introjetar).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro, de ter minha escrita transmutada – puxa, como estou usando termos religiosos! Será por ser a escrita minha crença? – no objeto livro. Nunca trabalhei em um projeto longo, mas pretendo tentar. Aí terei de enfrentar a lida com a ansiedade e com meu maior talento, que é o de procrastinar.
O livro que eu gostaria de ler que ainda não existe? Todos aqueles que ainda não li me são inexistentes.