Mô Amorim é escritora.

Escrevo de olhos fechados, me sentindo uma novata dos filmes de Godard, sempre imaginando que sou outra pessoa, que moro em outro lugar, que tenho outra vida. Escrevo de olhos fechados pra enxergar o que ninguém vê. Escrever me lança como personagem de uma história que não escrevi ainda. A folha em branco me pede respeito e me sugere a inauguração de uma nova conversa comigo e com o leitor. E é assim que escrevo: conversando, mas tentando me esconder atrás das palavras, que já são minhas íntimas companheiras. Escrevo para ser este mistério, de me aperfeiçoar na arte de aparecer sem aparecer. Eu quero que a palavra apareça, que ela faça o que tem de fazer. Não sei se tem dado certo.
Escrevo com os pés em dois mundos: no real e no imaginário. Gosto de inventar que sou aquela que escreve sob a lua, num bar capenga, aguardando um drink antes de pegar a estrada num Mustang roubado. Mas preciso confessar que sou bem mais simples que estes desenhos mentais: escrevo de pijamas, descabelada e com a pia cheia de louça pra lavar. Rituais para escrever? Café. Muito café. Costumo me embebedar com muitas xícaras ao longo do dia.
Fontes de inspiração para escrever? Quando estou meio borocoxô, ouço as músicas que o Yann Tiersen criou para a trilha sonora do filme ‘Amélie Poulain’, mas depende do que quero escrever. Já escrevi poemas e crônicas ouvindo Nina Simone, The Smiths, Björk, Chet Baker, Ella Fitzgerald, Black Pumas, Gilberto Gil, Paulinho Moska, Elza Soares, música cubana e uma renca de outros sons e cantores. Sim, eles me ajudam a escrever.
Gosto de assistir a documentários sobre outros escritores. É algo que costumo fazer com frequência. Gosto de saber o que sentiram as pessoas que fizeram o mesmo que estou tentando fazer agora, que é me entregar à escrita de um jeito que minha vida seja um filme bonito de se ver. Não, isso não é tudo. Agora vem o principal: a leitura. A fonte que mais me alimenta são os livros. Gosto de ficar rodeada deles pelo apartamento. Criei uma espécie de cenário da mulher que escreve com o corpo todo. Há livros por todos os lados, esparramados pelo quarto, na sala, na cozinha. É preciso manter os sentidos acesos.
Dos motivos e não das técnicas? Escrevo como se fosse tarde, como se estivesse atrasada, sempre atrasada. A escrita é essa urgência que já me fez desistir de casar algumas vezes. Escrevo como se não fosse dar tempo, como se fosse tarde demais. Sou uma colecionadora de palavras-sensações. A gente é frágil, a palavra não. É ela quem vai ficar. Não concebo a escrita como simples fazer técnico nem acato conselhos rasos. É preciso namorar com a palavra, aguardá-la, muitas vezes. As palavras têm algo de humano, gostam de ser sentidas e são bem mais espertas e vivas do que a gente pensa. Não pensamos as palavras, elas que nos pensam. Essa coisa da letra, da linguagem, isso tudo é infinito e mágico pra mim. Quando dou uma sumida básica e passo uns dias sem soltar um poema ou crônica e os amigos ficam preocupados, explico que estava lendo, estava me abastecendo. Não tem como encomendar palavras sem abrir os livros. Então, se eu tiver de responder sobre como escrevo, minha resposta contém cinco letras: lendo. Leio e elaboro. Leio e transbordo. Tem um mundo nisso, sente?
Não sou muito de escrever pela manhã. Na verdade, eu não existo direito antes do almoço, mas disfarço bem. Vou aquecendo na parte da tarde. E quando a noite chega, já virei usina, fico elétrica. Tenho mil ideias e quero fazer tudo ao mesmo tempo. Quando vou dormir, deito meio contrariada, desejando que amanheça logo para continuar escrevendo. Escrever tomou uma proporção grande na minha vida. Já saí mais cedo de festas porque queria voltar pra casa pra poder escrever. Nem todo mundo entende, eu sei.
Sobre lugares pra escrever, preciso contar que, apesar de ter uma escrivaninha no quarto, escrevo na sala, na cama, na mesa de jantar. Gostava muito de escrever em cafés pela cidade antes da pandemia chegar. Escolhia uma mesa no cantinho onde pudesse enxergar o movimento das pessoas. Dali, discretamente, eu me colocava atenta e seguia escrevendo sobre elas. Pessoas desconhecidas são excelentes desenhos em movimento, avulsos, desconhecidos. É possível conseguir bastante material narrativo e construir personagens diversos só observando as pessoas num café. Ainda sobre os possíveis lugares para escrever, não há limites pra mim. Já escrevi em metrô, ônibus, até no meio de sessão de cinema. Uma das coisas que acontece muito comigo é o fato de ser interrompida por alguma palavra ou frase enquanto estou preparando o jantar ou mesmo quando já estou deitada e pronta pra dormir. Quando isso acontece, geralmente, obedeço. Se estou com um bloco de notas por perto, deposito ali a ideia. Se estou sem vontade de acender a luz e levantar para escrever, uso o gravador do celular e ao acordar, passo para o computador. Ah, e outra coisa: não gosto que falem mal da minha procrastinação. Se enrolo pra não escrever? Sim, sou dessas. Gosto de escrever, claro, mas também gosto de ter preguiça. Eu sei o que me espera quando começo a escrever: porque quando a gente puxa uma palavra, vem com ela um país inteiro de ideias. E uma frase se transforma numa imagem poética que a gente precisa dar conta. Não dá pra largar as palavras ali, no chão, sozinhas. É preciso catar cada uma delas e posicioná-las com o respeito que merecem. E isso leva horas. O escritor não quer ser lido. Quem quer isso é a palavra.
Como se dá o processo de escrita comigo? Funciona de um jeito meio caótico, sem ordenação. Às vezes, sinto que escrever é como mexer, sem querer, num livro – nada suspeito – que estava descansando na estante de uma biblioteca qualquer e descobrir, de repente, uma porta de entrada para outro mundo. Falar de como escrevo é falar de como eu leio. Ler e escrever funcionam dentro de um mesmo processo dentro de mim. Não sei bem quando começa um e termina o outro. Concordo inteiramente com Maurice Blanchot quando diz que “ (…) o leitor faz a obra; lendo-a, ele a cria; é o seu verdadeiro autor, é a consciência e a substância da coisa escrita. ” Pra mim, todo leitor é um escritor, mesmo que não saiba disso. Ler não é ato passivo, é ato criativo! É isso… E desde que me deparei com Maurice Blanchot numa livraria em Buenos Aires, ele tem sido o amigo mais íntimo que uma escritora suburbana e desclassificada como eu poderia ter.
Sobre hiatos, travas e medos para escrever? Gosto muito de uma coisa que o Fernando Sabino falou numa entrevista: “Escrever sobre uma coisa que você não sabe é como você pretender ir dormir pra sonhar alguma coisa que você não sabe o que é.” Ele, ao dizer isto, nem imaginava que iria me ajudar, tirando um peso que carreguei durante muito tempo. Eu presumia que só teria permissão para escrever sobre um assunto que dominasse muito, mas consegui entender perfeitamente o que Fernando Sabino quis dizer. Hoje, escrevo, essencialmente, sobre o que não sei. E isto me encanta.
Outro momento que me salvou de um hiato severo que tive há alguns anos, foi quando li Antonio Candido, em seu livro ‘Timidez do romance’ nos dizer que “(…) a literatura é uma atividade sem sossego. Não só os homens práticos, mas os pensadores e moralistas, questionam sem parar a sua validade, incluindo com frequência e, pelos motivos mais variados, que não se justifica porque afasta de tarefas mais sérias, porque perturba a paz da alma, porque corrompe os costumes, porque cria maus hábitos de devaneio. Não é raro ver os escritores envergonhados do que fazem, como se estivessem praticando um ato reprovável ou desertando de função mais digna. Então, enxertam na sua obra um máximo de não literatura, sobrecarregando-na de moral ou política, de religião ou sociologia, pensando desse modo justificá-la não apenas ante os tribunais da opinião pública, mas ante os tribunais interiores da própria consciência”. Depois que me deparei com estas palavras, foi como sentir uma força me empurrar para a vida. Durante muito tempo uma voz silenciosa e desonesta rondava meus ouvidos dizendo que escrever não me levaria a lugar nenhum, que poesia era coisa supérflua, que não enchia barriga, que só me fazia perder tempo. O que ele disse me apaziguou e hoje ainda me alimenta em meio a esta onda neoliberal cada vez mais forte em nossos tempos. Percebi que literatura não enche barriga, mas me enche a vida toda de um repertório que me capacita para firmar minha emancipação como mulher-sujeito. Escrever foi minha primeira liberdade.
Dos motivos, interesses e projetos? Não escrevo para me distrair. Escrevo pra ficar acordada, lúcida, ainda que seja no mundo ficcional. Não gosto de pensar na escrita como algo fácil de ser encaixotado, de ser concebido como receita de bolo, numa tentativa cartesiana de impor como a linguagem deva se comportar. Não tenho paciência pra isso. Sou muito mais a liberdade de Clarice que se permite ser fluxo.
Iniciei um projeto há alguns dias no Instagram. Resolvi escrever um livro e mostrar trechos dele antes de publicá-lo, quase num formato de novela. Faz algum tempo, percebi que algumas personagens estavam querendo nascer. Eu não tinha um roteiro de livro pra colocá-las. Decidi, então, pincelar minha escrita com pitadas de ficção e compartilhar. Isto tem facilitado as coisas. Criei ‘A novela do meu livro’ para poder assumir a carga de ficcionalidade em meu processo de escrita, porém, com o cuidado de não subtrair minha posição consciente de quem sou no mundo. Sim, ainda sinto que escrevo como se estivesse defendendo minha subjetividade a cada letra, mesmo que tenha criado personagens para isto. E esta personagem escritora que inventei, escreve como se fosse bater o ponto às oito da manhã n’algum jornal da cidade. Ela é diligente e bebe muito café. Ela também fuma quando briga com o editor do jornal – mas, eu não. E, por fim, não escrevo querendo ser alguma heroína sábia que tem algo a ensinar. Escrever, neste ponto da vida, tem funcionado como uma máquina de respirar, contraindo e expandindo; absorvendo e expelindo. E por causa disso, não posso parar.