Mirian Goldenberg é colunista da Folha de S. Paulo, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho. A primeira coisa que faço é ligar o computador. Respondo a todas as pessoas que me mandam mensagens no Face e e-mails. Leio muitos jornais e revistas na internet. Arrumo a casa. Depois de deixar tudo em dia, começo a trabalhar. Sempre tenho teses para ler, trabalhos dos meus orientandos para corrigir, palestras para preparar, revisão de algum novo livro, dar alguma entrevista, escrever minha coluna para a Folha de S. Paulo. Depois, posso ir ao banco, supermercado, farmácia, correio, caminhar etc. Como não tenho empregada e faxineira, faço tudo sozinha. Durmo muito pouco, tenho sempre insônia e, portanto, tenho muitas horas para trabalhar durante os meus dias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho muito em todas as horas do dia, inclusive de madrugadas. Escrevo até caminhando ou quando estou em uma reunião. Posso sair sem celular ou dinheiro, mas nunca saio sem papel e caneta. Sempre tenho muitas ideias e anoto tudo. Quando chego em casa elaboro minhas notas para meus textos ou palestras. Não tenho ritual, mas preciso de muito silêncio e concentração.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, em todos os horários. Não tenho metas, mas, desde minha adolescência, não passei um só dia da minha vida sem escrever. Tenho um armário repleto de cadernos grandes, de 200 páginas: meus diários. Escrevo, sem parar, desde os meus 17 anos. Diários que nunca reli e não pretendo publicar. Preciso escrever tudo o que acontece no meu dia. Tenho a sensação de que se não registro no meu diário o que vivi, não vivo plenamente cada fato da minha vida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca foi difícil escrever. Escrever é a minha forma de viver. Anoto minhas ideias, sento no computador e escrevo. Sem dramas ou angústias. Ao contrário. Se não escrevo, sofro muito. Preciso escrever.
Escrevi na minha coluna da Folha de 28 de março de 2016:
Fui uma menina muito frágil e magrinha, apelidada de Olívia Palito. Aprendi a ser invisível para me proteger das surras que levava do meu pai e irmãos. Com seis anos, já lia e escrevia. Ainda menina li e reli todos os livros da biblioteca do meu pai. História do povo judeu e o Holocausto, biografias, romances, Sartre, Freud, Erich Fromm… Encontrei nos livros o refúgio para me proteger de um mundo de violência, gritos e brigas.
Ler os livros de Simone de Beauvoir durante minha adolescência, especialmente “O Segundo Sexo”, me ajudou a construir uma trajetória muito diferente da vida da minha mãe. Foi nesta época que comecei a escrever diários, um hábito que me acompanha até hoje.
Posso sair de casa sem dinheiro e sem celular, mas nunca sem caneta e papel. Posso passar dias sem comer, sem dormir e sem falar com qualquer pessoa, mas, desde os meus 17 anos, não passei um dia sequer sem escrever.
Escrevo em todos os lugares e em todos os momentos. Escrevi as mais de 600 páginas da minha tese de doutorado sentada na grama do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Acordo durante a noite e registro meus sonhos, caminho na praia e anoto minhas ideias, escrevo até mesmo no banheiro.
Muitos me perguntam: “Você lê os seus diários?”. Não, nunca li uma só linha deles. Muito mais do que registrar detalhes do meu cotidiano, meus diários são o meu lugar de autoconhecimento, de desabafo e de conforto. Aprendi a resolver os meus problemas escrevendo neles.
Em “Cartas a um Jovem Poeta”, Rainer Maria Rilke disse:
“Investigue o motivo que o impele a escrever: comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se morreria caso fosse proibido de escrever. Pergunte a si mesmo, na hora mais silenciosa da madrugada: ‘Preciso escrever?’. Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples: ‘Preciso!’, então construa sua vida de acordo com tal necessidade”.
Já perguntei a mim mesma, nas minhas noites de insônia: “Preciso escrever?”. Sim, preciso! Eu não saberia de que forma viver se não pudesse escrever.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca procrastino, ao contrário. Assim que recebo um convite ou tenho ideia para um projeto começo imediatamente a trabalhar. Termino sempre muito antes do prazo final. Aproveito o tempo que resta para reler (centenas de vezes) e melhorar o meu texto, procurar pequenos detalhes que fazem toda a diferença. Leio, releio, reescrevo, leio em voz alta, leio para o meu marido. Trabalho muito até o momento de enviar o texto final. Lógico que quero que os meus leitores gostem do meu texto, que ele tenha algum impacto. Mas o que me move é a necessidade de escrever, não as expectativas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis, centenas, inúmeras vezes. Sempre leio para o meu marido. Algumas vezes envio para meus amigos e antropólogos Yvonne Maggie e Marcelo Silva Ramos. E sempre peço para os editores dos meus livros fazerem sugestões e revisões, pois acho que o meu texto pode ser melhorado com críticas e novas ideias.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre à mão, em cadernos, blocos e folhas. Depois no computador. Escrevi minha tese de doutorado de 600 páginas em cadernos, sentada na grama do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Sou muito focada e concentrada e amo ter ideias e escrever. Sou muito observadora e tenho muito interesse e curiosidade pelas pessoas. É automático. Quando conheço alguém, já começo a fazer perguntas, tomar notas. Minhas melhores ideias surgem quando caminho, observo, converso, vejo um filme, leio uma notícia. Gosto muito mais de ouvir e observar do que de falar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Adoraria ter começado a escrever meus diários mais cedo, ter o registro de toda a minha vida, ter anotado tudo o que vivi na infância. Tenho uma certa compulsão para escrever. Uma vez, na análise, minha terapeuta disse para eu parar de escrever e começar a viver. Eu tinha 21 anos. Nunca parei de escrever, mas acho que minha vida ficou muito mais feliz e prazerosa. Minha escrita também. Incorporei o humor no meu texto.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu projeto atual, pesquisando homens e mulheres de mais de 90 anos, é minha paixão. Quero ter mais tempo para observar e entrevistar meus pesquisados. Gostaria de escrever um livro que transmitisse toda a emoção e energia que recebo ao pesquisar homens e mulheres que estão construindo uma bela velhice. Queria que meus textos provocassem risos e lágrimas nos meus leitores. Minha maior angústia existencial é saber que não tenho a maturidade e sensibilidade necessárias para escrever um livro que transmita as mesmas emoções que eles me transmitem. Gostaria de escrever um livro que tivesse impacto na vida dos brasileiros e que eles mudassem a forma de enxergar a velhice, que não tivessem mais preconceitos e medos dessa fase da vida. Gostaria de ler o meu livro, que ainda não consegui escrever (e talvez nunca consiga), e ter a certeza de que ajudei, de alguma maneira, a inventar uma velhice mais bela, livre e feliz, não apenas para mim mesma.