Míria Moraes é psicóloga, escritora e poeta baiana, autora de “Sem Poemas” (2019).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Veja, eu costumo organizar o meu dia baseado nas atividades que eu preciso realizar nele. Acabei de começar o mestrado em um estado diferente, então, estou me acostumando à nova cidade e a uma rotina acadêmica mais exigente do que a da graduação. Nos dias em que eu tenho aula eu acordo mais cedo, tomo um banho, preparo meu café e saio para a faculdade. Se não tenho aula ou nenhum outro compromisso, faço a mesma coisa, mas, decido na hora o que vai ser. Agora, se você me pergunta isso em relação à leitura, eu leio ou escrevo em qualquer parte do dia mesmo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite, sem dúvida. Eu sou muito caseira, então aproveito muito as minhas noites quando finalmente estou em casa, de preferência sozinha. Me sinto mais à vontade escrevendo sozinha e à noite, acho que esse seria o meu ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende do tipo de escrita. Minha escrita acadêmica é mais padronizada, escrevo de forma mais concentrada, pesquisando em livros e artigos e costurando teorias e metodologias. Já a escrita literária, poética, eu escrevo muito livremente. Não tenho metas, inclusive se eu tiver não irei escrever. Não consigo escrever sob encomenda, nem com tempo determinado, não poesia. Já em textos mais prosaicos e acadêmicos sim, eu trabalho muito bem com prazos, e metas acabam se tornando necessárias.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu tenho três inspirações que atravessam o meu processo de escrita: a troca de experiências, a música e a natureza. Elas fomentam o meu estilo, meu direcionamento e o meu jeito de escrever. Se estou diante de uma fonte de inspiração acabo escrevendo sobre ela, mas, aquilo pode terminar ali ou em outro momento. A maioria dos meus poemas eu escrevo de uma vez só, mas, finalizo depois, com mais tempo, vou lapidando, trocando um termo por outro, observo a sonoridade, o sentido e o impacto do que escrevi. Às vezes demora, às vezes não. Eu acho importante ter essa maturação porque escrever é uma arma muito poderosa e atinge pessoas de formas inimagináveis, então, escrevo partindo dessa perspectiva, desse cuidado. E essa postura também é essencial na escrita acadêmica, principalmente, quando o que pesquisamos tem um impacto significativo na vida das pessoas. A ideia é se mover com responsabilidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que é muito natural a gente não conseguir escrever em certos momentos. A escrita não é um processo de trabalho reificado, duro, artificial, ela é um processo criativo e subjetivo, portanto, sempre estará influenciada pelo nosso modo de ser e de viver, pelas influências das relações com o outro e com a natureza. Então, quando eu não consigo escrever eu simplesmente paro, até que eu volte a sentir o texto novamente, até que eu volte a me sentir nele também. Em qualquer escrita, o respeito a si mesmo é imprescindível, é isso que eu faço para não sofrer com ansiedades evitáveis. É claro que quando há projetos, também há prazos, nesse caso, eu tento conhecer o tempo que eu tenho disponível e construo esboços, rascunhos, para me ajudar a articular o que precisa ser feito. E uma coisa muito importante: não começo nenhum texto ou projeto achando que ali já é o meu arquivo final, isso é uma fonte de ansiedade perigosíssima, gosto de me desprender dessa ideia falaciosa que diz que escritores/as sempre escrevem facilmente. Isso não é verdade. Escrever é colocar para fora, e nem sempre entendemos o que estamos tentando dizer, e é difícil muitas vezes, e tudo bem. Falo isso porque em alguns momentos isso nos leva a achar que o que estamos fazendo está ruim, mas não, só não está sendo compreensível o suficiente, ou não atingiu determinado objetivo. Não acredito que haja escrita ruim em termos subjetivos e simbólicos, sabe? Para mim, todas as pessoas são escritoras, mas nem todas se sentem confortáveis ou desejam traduzir em palavras o que sentem ou como enxergam a vida, traduzem de outras formas, no canto, na dança, encenando etc. Ser autora sim, é diferente, porque aí você deu um nome ao que você escreveu e deu a ele o seu nome, e isso é publicar, ou seja, é assumir que as palavras serão sua forma de traduzir sua existência. E quando você se conhece e conhece o sentido da sua escrita, dificilmente você irá sofrer por isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depois que elaboro o que pretendo escrever, volto ao início e retomo o processo. Se tenho tempo, para um dia inteiro e volto no dia seguinte, sempre paro para refletir sobre o que estou escrevendo, acabo voltando ao texto com mais ideias ou discordando de tudo que estava escrevendo, e isso é mágico, é uma construção.
Sim, eu sempre mostro meus escritos aos meus melhores amigos/as e a pessoas do universo literário. É importante essa troca, enriquece muito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevi à mão, escrevia nos cadernos da escola, e da faculdade, escrevia na parede do meu antigo quarto, escrevo na mão, literalmente, mas, confesso que o celular vem ganhando espaço, tem sido mais prático e rápido escrever em um bloco de notas. Eu tenho um grupo no whatsapp onde eu sou a única participante, risos, é onde escrevo boa parte dos meus poemas. Meu segundo livro, Sem Poemas, escrevi totalmente no celular. Porém, vejo um risco nisso. Recentemente, meu celular restaurou sozinho e eu perdi tudo que havia escrito, a maioria eu já tinha enviado para o meu computador, mas perdi muita coisa. Atualmente, ainda escrevo no celular, porém, salvando tudo. Não é bom confiar cegamente na tecnologia, não um livro ou um projeto inteiro. É sempre bom ter vários arquivos, é o que eu recomendo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como disse, das experiências, da música e da natureza. O primeiro concurso de poesia que eu ganhei, foi na minha escola, em Monte Santo/BA, onde nasci e me criei. Lembro que o tema da minha poesia era “As chuvas de novembro”. Durante a minha infância passamos muitas dificuldades com as estiagens, a água sempre era escassa, e eu sempre prestava muita atenção na mudança das folhagens, na cor do capim e das serras ao longo do ano, o cinza era muito presente, e novembro era quando tudo ficava verde com as trovoadas. Então, a natureza sempre foi algo que eu prestava atenção e acabava escrevendo sobre ela. As músicas me trazem recordações de lugares, pessoas, de outros tempos, sou uma pessoa muito nostálgica, gosto de falar sobre a saudade, mas, não sou saudosista, não me apego ao passado, é muito importante para mim vivenciar o aqui-agora. Saber sentir saudade é uma coisa muito difícil, mas, que pode trazer muita paz ao espírito, é isso que encontro escrevendo sobre o que me lembro do passado, escrevendo sobre o que ele reverbera ou não no meu presente. Já a troca de experiências são as conversas mesmo, é tudo aquilo que está no campo do diálogo, do crescimento com a vivência do outro, suas abstrações, filosofias, em como eu me relaciono com as pessoas. E naquilo que aprendo enquanto leio outras pessoas, ler sem dúvida, é algo que inspira escrever, porque é como se um livro me chamasse para um debate. Então, trocar experiencias significa basicamente isso, conversar. Acredito que esse seja o traço mais marcante da minha escrita. O que explica eu gostar de escrever em formato de cartas, como fiz ao meu pai, no meu primeiro livro, e como fiz sobre o fim de um relacionamento, no meu terceiro livro. Manter a leitura, as trocas e o autoconhecimento para mim é um hábito que me faz estar sempre em contato comigo e com a minha criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu comecei a escrever desde pequena, ganhei esse primeiro concurso de poesia aos 13 anos e aquilo me marcou bastante. Sem dúvida, a minha escrita tem mudado desde então, assim como eu. Houve uma pausa na minha escrita que foi quando me mudei do meu interior para Salvador, eu saí de casa aos 17 anos, então eu tive que organizar uma vida que eu não sabia como e nem por onde começar, eram muitas dificuldades e pouco tempo, foi difícil. Eu nem percebi, mas tinha parado de escrever. Depois de alguns anos morando lá, próximo ao fim da minha graduação, eu me lembro que voltei a rabiscar alguns poemas, na época eu namorava um rapaz, e era com quem eu dividia algumas coisas desse tipo, me lembro de quando eu mostrei os poemas, e ele riu do que eu escrevi, então, acabei ficando com vergonha, me deixei levar pelo riso dele, e acabei deixando de lado. Um ano depois eu estaria escrevendo meu primeiro livro, que fala justamente sobre relações abusivas, ridicularização e violência contra a mulher, justamente sobre o relacionamento com esse rapaz e o seu impacto na minha vida. Então, se eu pudesse voltar lá atrás eu voltaria mais rápido nessa menina que sentiu vergonha do que escreveu e dizia o seguinte: “não há escrita ruim, às vezes, a pessoa só não entendeu ou não mereceu suas palavras. Continue”. Mas, sinto que voltei nela, quando escrevi Pai, não grite com a sua filha, voltei em mim mesma muitas vezes e em muitas épocas da minha vida em que tive mais medo do que amor, do que incentivo. Eu acredito que nossa escrita muda naturalmente ao longo do tempo e isso é um processo existencial. O que eu acho que mudou na minha foi essa compreensão de que o que eu escrevo não pode existir apenas quando o outro gosta ou entende. Tem que existir porque eu existo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho um projeto, e ele está começando, está relacionado ao meu mestrado, onde busco compreender os feminismos e suas representações para mulheres em contexto de ruralidades, é algo que está me fazendo crescer muito como pessoa, como psicóloga e como pesquisadora. Basicamente os meus projetos futuros, que ainda não começaram, e que estou escrevendo hoje, estão relacionados a essa perspectiva, feminista, literária, rural, interseccional. Mas, muita coisa ainda precisa acontecer, e acontecerá.
Um livro que eu gostaria de ler? Acho que eu gostaria de ler todos os livros que as pessoas deletaram, excluíram ou rasgaram por medo ou por não acreditar em seu potencial ou em suas palavras. Eu gostaria de ler todos esses livros.

Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
A ideia em si é muito crua quando um projeto surge, mas vou planejando e organizando na medida em que ele vai se desenvolvendo, e tomando forma, isso em um projeto como o Ruralidade Universitária, por exemplo, no qual sou coordenadora. Se for um livro, o processo é semelhante, primeiro vem a escrita, o colocar para fora, depois vem a organização, o enredo, a releitura e a finalização. Quando escrevo poemas, sim, começo quase sempre pelo final deles, e depois faço o início e o desenvolvimento.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minha semana de trabalho é organizada por prioridades: prazos de entrega, nível de exigência do trabalho/projeto e nas minhas condições de realizá-los. Gosto de manter um cronograma realista e justo, mas não fico presa a ter que terminar a tarefa por obrigação, sobretudo a escrita. Na academia os prazos são mais exigentes, então começo a esquematizar com mais antecedência e vou indo e voltando até encontrar o ritmo e o sentido. No campo literário, minha escrita não tem uma regra porque a gente muda bastante o tempo todo, prefiro escrever poesias e narrativas de forma mais livre, depois passo para as etapas de organização e finalização. Sobre os projetos, eu sempre tive muitas ideias na cabeça, muitos planos e sonhos. Hoje já estão mais organizados aqui dentro, tenho preferido me concentrar em um número possível de projetos em que posso trabalhar com mais qualidade e dedicação.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que mais me motiva como escritora é, sem dúvida, o compartilhamento. A possibilidade de estar ao lado de outras pessoas em suas alegrias, dores e mudanças. Acho que gosto de dizer, “olha eu passei por isso e vejo por esse ângulo, tive esse aprendizado”. Como psicóloga acredito que o outro e a outra nos confirmam e constroem o mundo conosco, e isso é muito rico para nós escritoras/es. Já a minha dedicação à escrita é um processo que está caminhando aos poucos, estou finalizando minhas formações na pós-graduação em Psicologia, e me estabelecendo na área clínica. Dedicar-se à escrita, aqui no Brasil, é uma escolha que exige muito planejamento, então, posso dizer que estou me dedicando às leituras, à escrita e aos estudos literários desde que publiquei meu primeiro livro, em 2018, porém, de forma cuidadosa e planejada.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Eu acho que não senti dificuldade, porque eu não pensei em escrever e ser escritora, eu escrevia porque era bom e me fazia bem. Depois que eu publiquei o meu primeiro livro, foi quando eu me perguntei qual seria o meu estilo. Hoje consigo pensar nisso com mais apropriação e sinto que o meu estilo é muito influenciado pela minha origem rural, pela minha experiência como mulher e pela minha formação profissional. Outro elemento característico do meu estilo é que sempre me coloco na escrita endereçando-a alguém, o que explica um pouco os meus livros em formato de carta e o uso frequente da segunda pessoa.
Em relação a quem influencia a minha escrita, posso dizer que me sinto muito influenciada pela escritora Chimamanda Adichie, ela escreve de uma forma afetuosa e simples, e isso me toca muito.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Recomendo o livro de Aline Bei, O Peso do Pássaro Morto, livro de uma força impressionante e que te faz pensar empaticamente sobre a trajetória imposta às mulheres, e a dor da violência. O livro de Elizza Barreto, Afetos em Ruínas, uma reunião de poemas que adentra de forma leve e crítica em nossos medos e decepções, nos perdoando quando a gente desmorona e reforçando nossa capacidade de reconstrução. E SEMPRE, o livro de bell hooks, O Feminismo é para Todo Mundo: políticas arrebatadoras. Esse livro me ensina diariamente a pensar o feminismo como um novo olhar para a humanidade, justo e interseccional.