Milena Wanderley é escritora, doutora em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou apegada a rotinas, até para ter o prazer de subvertê-las. Mas reconheço nelas a funcionalidade necessária para realizarmos atividades específicas que exigem organização e disciplina. Escrever um trabalho acadêmico exigiu de mim uma atenção redobrada para com esses aspectos. Assim, a primeira coisa que eu fiz quando estava com o material colhido e pronto para analisar (esse trabalho também exige organização e disciplina) foi montar um cronograma baseada nos requisitos exigidos pelo programa de pós-graduação ao qual eu estava filiada. O cronograma, diga-se de passagem, vinha também com uma meta de produção diária e a organização do meu dia precisava permitir que isso acontecesse. Pois bem. Eu moro numa cidade bem tranquila do interior de São Paulo, Ilha Solteira, divisa com Mato Grosso do Sul onde fica a UFMS de Três Lagoas, em que também residia quando precisava desenvolver as atividades de docência e orientação. Mas a maioria dos meus dias é na companhia da minha família aqui em Ilha. É aqui que escrevo agora depois de cumprir um ritual semanal de organização do meu pequeno espaço de produção: uma mesa no meu quarto. É para aqui que venho nas manhãs depois de tomar café que, por sinal, ainda faz um bom efeito sob minha capacidade de concentração. Aqui no quarto eu crio um universo de sons e cheiros. Eu consigo escrever bem com música e, durante a tese, uma playlist de música celta dava um tom épico ao processo. Eu me divertia com aquilo. Escrevi a parte anterior no período da manhã depois de ter cumprido com todos os compromissos virtuais do dia de hoje e perceber que meu prazo para responder a essas perguntas é a primeira semana de agosto. Gosto de prazos e, se não estiver acontecendo algo de muito errado comigo, cumpro-os com antecedência, até. Sigo agora num café aqui da cidade. Venho aqui quando preciso me reabastecer de cafeína e ter mais possibilidade de focar no que faço. Mudar de ambiente também me ajuda. Resumindo: a minha rotina inclui a organização de um espaço e de um plano de metas diário. Sou diurna, funciono com o sol, faço largo uso de café e mudar o ambiente me ajuda, assim como a possibilidade de quebrar protocolos sem que isso prejudique o processo. Faço isso como um modo de resguardar meu gosto pelo que faço, pelo prazer que sinto em descobrir, dialogar. Assim eu não sofro, não me sinto oprimida. Pelo contrário, sinto que aperfeiçoo meu tempo para que viva a pesquisa com responsabilidade e serenidade. Agora escuto Francisco Tárrega executado por Tatyana Ryzhkova. Os algoritmos do YouTube me trouxeram aqui. Chato é ter que parar o texto para passar as propagandas. E sim, não entrei na era do streaming.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como falei, sou diurna. Mas o período do dia em que sinto mais disposição para produção é à tarde. Pela manhã, geralmente, eu organizo meu dia, dou conta das pendências de ordem burocrática e doméstica. Três filhos, não havia mencionado… Seis gatos, um cachorro e uma pequena horta de ervas. Há um ambiente favorável para que as coisas aconteçam de modo a não me sobrecarregar e ele é uma construção coletiva articulada por mim, meu companheiro Lucas, meus filhos Ana Cecília, Augusto e Heitor. Há também Lia a quem contratamos no ano passado para que eu pudesse me dedicar com mais exclusividade à pesquisa. Lia é como um abraço que me diz: vai que eu seguro a onda aqui. Esse abraço, as mãos dadas, a consciência de que estamos juntos em tudo, o amor gratuito, o afeto. Tudo isso é um tanto que me impulsiona e me sustenta em meio aos riscos todos que corremos de nos perdermos nessa vida. A bolsa da CAPES foi crucial para que a pesquisa fosse desenvolvida. Caso contrário, não tinha como segurar as idas ao CEDAE, AEL e Biblioteca Nacional durante o doutorado. Com Lia trabalhando com a gente (ela é minha vizinha), eu acordava, tomava café e preparava o ambiente para executar as atividades diárias. Passava a manhã preparando material, lendo, respondendo e-mail, isso depois de ter preparado o ambiente com cheiros e sons, como falei. Pra escrever eu preciso estar entregue. Quando há isso, para mim, as coisas fluem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu, durante a escrita da tese, tinha uma meta diária de escrita: cinco laudas. Era uma meta ambiciosa, mas flexível também. Pus essa meta já conhecendo meu ritmo de escrita e entendendo que um texto longo como uma tese precisa de tempo para ser gestado, visto, revisto e visto novamente. Todavia, quando você internaliza um ritmo e consegue ficar inteiramente focada, envolvida com o que você está fazendo, a coisa flui. Pelo menos foi assim comigo. Alguns dias eu escrevia mais, outros escrevia menos. E ainda havia os imprevistos. A meta era ambiciosa porque eu queria contar, justamente, com a possibilidade de não conseguir cumprir com a meta. E eu não tinha pretensão de dobrar a meta. A minha meta já era dobrada. Quando eu comecei a escrever nesse ritmo, pensava: mas e se você escrever cinco páginas que não prestem pra nada? Sim, mas e se salvarmos pelo menos duas ou uma? Já é alguma coisa. No processo eu descobri que, de fato, não se trata de número, mas que estabelecer essa meta me colocou num ritmo bom de produção. A consciência do interminável, de que um texto nunca tem fim, de que há um tempo para o aperfeiçoamento das coisas, a liberdade para analisar o material e ultrapassar os limites dos objetivos iniciais da pesquisa, os diálogos em torno dos resultados nas apresentações nos eventos científicos, as publicações, tudo sinalizava que o caminho era aquele mesmo. Eu acreditava na minha pesquisa e as contribuições estavam vindo de todos os lados. Foi bonito.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha pesquisa tem um cunho bibliográfico e arquivístico. Eu, quando leio algo, procuro dialogar com o que estou lendo. Eu ficho, faço observações nas margens, escrevo em post-it e colo na página, uso marcador de página, se o livro for fotocopiado, eu escrevo atrás, enfim. Eu dialogo e registro. O registro me leva a ideia que tive durante a leitura e me ajuda a retomar. Antes de começar a escrever eu sempre estruturo o texto, ou seja, eu sistematizo numa folha um plano: o que vai ser analisado, com que leitura anterior é possível dialogar durante a análise, as relações que são possíveis de estabelecer com a pesquisa como um todo, os tópicos e subtópicoss que devem compor os capítulos, isso tratando de um texto longo. Quando se trata de um artigo, eu costumo estabelecer no resumo: o cerne da análise, o método, os objetivos e a fundamentação teórica. Com a estrutura pronta, eu não costumo encontrar dificuldade de começar o texto. As anotações, inclusive, são valiosas como princípios articuladores quando há alguma dificuldade para iniciar o processo de escrita. No que se refere ao mover-se da pesquisa para a escrita, é importante que se diga: se a pesquisa, os dados, não estivesse organizada, eu não iniciava a escrita. O meu primeiro movimento depois de colher os dados foi o de montar um arquivo em PDF com os documentos, imprimir, estruturar a ordem de análise e só depois analisar e escrever. Como já havia dito: organização foi fundamental. Planejar, pesquisar, estruturar, analisar, escrever e revisar loucamente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Olha, quando trava, trava. Aprendi que não adianta lutar contra mim mesma. Quando eu travo, eu procuro conhecer de onde vem essa trava. O que está me bloqueando? Algumas vezes tenho respostas, outras não. Mas o que me ajuda nessas horas é fluir. Eu paro mesmo. Paro porque tenho a possibilidade de parar e porque sei que trabalho, que encaro minha atividade de pesquisadora com seriedade. Eu paro, respiro, vou ver o mundo, prestar atenção nas coisas que não costumo prestar, vou descobrir uma cantora nova, um mundo diferente, vou sentir por mais tempo o abraço dos meus filhos, vou fazer carinho nos meus gatos, vou jogar o bichinho pra Tob pegar e me trazer de volta, vou sentir o cheiro das ervas, vou assistir a uma série que está pendente e, algumas vezes, vou fazer vários nadas até sentir-me livre novamente. Geralmente minhas travas vêm das pressões, das obrigações, da falta de alma nas coisas e nas gentes, da inquietação diante de um sistema acadêmico insalubre em que as pessoas são estimuladas o tempo inteiro a provar que são maiores, melhores. Eu quero ser detalhe, rejeito as hierarquias e os protocolos que nada dizem. Já me disseram que eu deveria mudar só pra entrar no sistema e depois subvertê-lo. Nessas horas eu penso nas coisas mínimas que são grandes e que lattes nenhum vale minha sanidade, minha paz de espírito. Após isso, eu costumo voltar feliz para a pesquisa só porque ela vale à pena. Falo no presente porque, embora eu tenha defendido já a tese em fevereiro desse ano, eu ainda continuo pesquisando. Pesquisar pra mim também é um ato de resistência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A minha dissertação de mestrado teve umas nove versões antes da versão para a defesa. Da defesa para a versão final, as alterações foram poucas. Já a tese, teve umas quatro versões diferentes e todos os dias antes de reiniciar a escrita dela eu revisava a parte anterior. Quando fui fazer uma revisão final, não tinha muita coisa para consertar. Inclusive, consegui ir com ela quase finalizada para a qualificação. Já nessa ocasião, ela foi bastante elogiada e foram apontadas algumas modificações para a versão da defesa. Da versão da defesa para a que foi para a biblioteca, as alterações também foram poucas. Isso não quer dizer, contudo, que os textos estejam perfeitos. A escrita é um processo interminável e deve ter passado alguma coisa, eventualmente. De digitação, talvez. O meu primeiro ouvinte/leitor geralmente é meu companheiro. Todos os dias quando ele chegava e eu achava que tinha escrito ou feito alguma análise muito relevante, era ele o primeiro a escutar ou ler. Algumas vezes no banho eu tinha uns insights e pedia pra ele escrever e eu poder trabalhar depois. (Isso aqui também é ele quem vai ler primeiro). Eventualmente eu peço ajuda a alguns amigos, mas é raro. Importante mencionar que durante o mestrado contei com o olhar atento da minha orientadora na época. No doutorado o processo foi mais autônomo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha relação com a tecnologia é tranquila. Aprecio as funcionalidades e as possibilidades do mundo digital/virtual. Quando estava produzindo a tese, enviava uma cópia para o meu e-mail todos os dias. Acabou que eu escrevi um diário do processo como modo também de dialogar comigo mesma, de me noticiar dos meus processos e poder revisitar depois esses escritos. Foi o que fiz agora. Vi que os dez primeiros dias foram bastante caóticos. Aconteceu de tudo… Desde socorrer Lia até Cecília ser supostamente picada por uma abelha e eu correr na escola para levá-la no hospital de viatura e tudo. Não foi nada, graças a Deus. Lendo o diário, encontrei essa mensagem que mandei para mim mesma. Foi quando eu comecei a engrenar o processo. Isso, depois de dez dias. Outra coisa que eu estava sublimando: eu estava fazendo terapia. Isso me ajudou a manter o eixo também.
Acredito que eu tenha escolhido esse e-mail porque queira ficar com uma parte feliz dessa narrativa. Mas, lendo os outros, vi que houve dias muito difíceis também. Recordo agora com as mensagens enviadas a mim mesma. Não foi nada fácil.
Uma coisa que me ajudou bastante no processo de escrita quando procurava construir um ambiente que favorecesse o desenvolvimento do processo foi pôr o celular em modo avião. Fazia isso duas vezes por dia e avisava às pessoas com as quais me comunicava diariamente que o faria. Isso me ajudou bastante a manter o foco e mudou, definitivamente, meu modo de lidar com o WhatsApp. Ele era um peso. Hoje não é mais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
“Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve, e como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora… Ah, eu quero chegar antes. Pra sinalizar o estar de cada coisa, filtrar seus graus”. Esse trecho de Esquadros, Adriana Calcanhoto, me significa quando penso no que me alimenta, do que me faz pensar. Outro trecho de canção que também me significa em relação a isso é o refrão de Divino Maravilhoso de Gil e Caetano: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Eu leio tudo. O que é verbal, o que não é. Leio a mim constantemente e sempre encontro abismo. Algumas vezes é claro, outras só breu. Mas eu teimo. Quero aprender tudo, ver, escutar, sentir, ir no profundo das coisas, vazar as gentes, ser atravessada por elas. Por isso a poesia é meu ponto de retorno. Ela me mantém atenta e forte. Sem ela, pereço.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Mudou o modo como eu me relaciono com a própria língua. Sinto que fluo com ela nos diversos espaços de articulação discursiva em que interajo. Hoje eu penso mais metalinguisticamente do que antes e tenho mais consciência arquitetônica. Eu saí recentemente da tese e hoje já trabalho nela para a construção de um livro, ou seja, já estou voltando nela e vendo de que modo posso melhorá-la. A distância necessária para uma avaliação mais crítica ainda não foi tomada, há de se ter tempo para que as descobertas se acomodem e se estabeleçam como positivas ou negativas no espaço acadêmico. As coisas foram como foram. Houve muito aprendizado e haverá ainda.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho a impressão que já comecei a fazer os projetos que gostaria, pelo menos por enquanto. Hoje eu trabalho na articulação de um pós-doutorado baseado no material colhido com a pesquisa anterior, tenho trabalhado na tese para transformá-la num livro, articulo um coletivo artístico virtual, o Virtù, desejo antigo de reunir artistas das mais diversas linguagens num site com publicações nas redes sociais (Facebook, Instagran e Twitter), tenho escrito diariamente, tenho compartilhado conhecimento em sala de aula com pessoas que passam a gostar de Literatura quando o texto literário cumpre seu papel transformador por meio de uma abordagem intersemiótica, tenho prestando atenção nas coisas mínimas, tomado cerveja, conversado com amigos, cantado, dançado, participado de um coletivo feminista daqui de Ilha, o ISAmulher e, principalmente, tenho sido a mulher que gostaria de ser. Resisto como posso de onde estou e sei a energia que procuro reverberar. O livro que ainda não existe e que eu gostaria de ler é o Tratado de Zoologia de Edson Avlis, um escritor pernambucano cujos textos têm me inquietado bastante. Ele participa do Virtù e posta seus tratados em sua página no facebook.