Mikha é escritora, formada em design gráfico nos Estados Unidos.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Desde junho deste ano (2019), consegui reestabelecer a minha rotina matinal, graças aos céus, pois sou muito mais produtiva durante a manhã e a tarde, do que durante a noite. Nos últimos três anos tive meus horários completamente bagunçados por ter voltado aos estudos, pois chegava em casa depois da meia-noite nos dias da semana, organizava as tarefas do dia seguinte, jantava à 1h00, 1h30 da manhã e só depois tomava um banho, assistia ao noticiário etc. E até a cabeça desligar… era um sufoco! E eu gosto do dia. Acordo normalmente às 7h00. Nos últimos dois anos, meu alarme tem sido pontual, até mesmo nos sábados e feriados: o ensurdecedor barulho de betoneiras, aqueles caminhões barulhentos de concreto que ficam girando o dia todo e se parecem com abelhas gigantes (para a construção de um edifício de 21 andares em frente à janela do meu quarto) me desperta. Então, para abafar o ruído e manter o bom humor, a primeira coisa que faço ao entrar na cozinha, é ligar o rádio. E continuo o ritual: pego a garrafa térmica, desenrosco a tampa, abro o armário debaixo da pia para pegar a chaleira e colocar a água para ferver no fogo, dobro as abas do filtro de papel que vai no cone plástico, jogo o pó lá dentro e observo o líquido com pequenas bolhas de ar descer, até sobrar só a mistura, feito terra úmida no fundo. São os meus minutos de conexão com o dia, pelo aroma que envolve a cozinha, de silêncio interno (mesmo com a música e o som externo) e de sensação de recomeço. Depois, como alguma coisa, bebo alguns copos de água, checo as minhas mensagens e verifico os afazeres da semana na agenda. Já nesses momentos, as músicas estão bem presentes.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu prefiro trabalhar durante o dia, mas nem sempre isso é possível, já que a maioria dos projetos envolve equipes com pessoas de ritmo e senso de responsabilidade distintos. Por exemplo: quando fazia revistas, independentemente de eu estar com o meu trabalho adiantado ou no prazo, acabava amarrada na finalização e entrega dos colegas. E muitas vezes também, na desnecessária desorganização de algumas pessoas da redação, para fechar as matérias (nunca trabalhei com jornalistas que dependessem de notícias “quentes”, portanto, não havia desculpas). E como a minha área de formação é o design, e não a escrita, não havia o que fazer, pois a parte gráfica é sempre a última ponta de um trabalho editorial impresso. Já para a escrita, que comecei a me aventurar (em público) recentemente, com a publicação do meu primeiro livro de contos, o “Formigas & Rabanetes”, ainda não estabeleci nenhum ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho uma meta diária estabelecida. Mas escrevo todos os dias. Uma vez um escritor conceituado me disse, quando perguntei se ele poderia me dar uma dica para começar a escrever: “Ué. Senta e escreve!”. O que ele queria dizer, era que, para escrever, você realmente precisa focar. Sentar. E escrever. Ponto. Nem sempre (ou quase nunca) teremos textos ou tramas geniais, mas uma vez que você tenta, diariamente, escrever um parágrafo que seja, já começa a desenvolver algo concreto. Não adianta ficar sempre no campo das ideias, pois como dizem: “ideia todo mundo tem”. O diferencial é ter a disciplina para colocar em prática e os cojones para colocar no mundo. Sabe aquele comentário desdenhoso que sempre ouvimos em museus, diante de alguma obra que, a princípio, não demonstre uma grande técnica ou os anos de repertório e estudo do artista: “Ah, mas isso até eu poderia fazer!”? Pois na escrita é exatamente o mesmo. Poderia, mas não fez. Então, se acha que pode mesmo, faça. Sem medo, até porque sempre vai ter gente para criticar e entortar o nariz. E toda expressão de arte, seja ela qual for, nasce de uma necessidade de comunicação, de um impulso criativo. E isso, por si só, quando concretizado e compartilhado, já vale.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Muitas vezes eu acabo pesquisando algum tema conforme a escrita vai sendo desenvolvida e pede uma maior compreensão ou explanação do tema. Tenho alguns tópicos que gostaria de abordar um dia, então vou anotando, normalmente em cadernos, pedaços de papel, envelopes já utilizados… basicamente, no que estiver ao meu alcance. O problema é depois achar onde coloquei as anotações. Esses dias mesmo peguei um caderno de desenho para dar para o filho de uma amiga rabiscar, e quando vi, havia páginas e páginas de textos escritos à mão. Não mexia nessa gaveta fazia uns bons cinco anos. Mas, por exemplo, quando decidi ver se tinha fôlego para escrever um romance, primeiro fui conversar com as pessoas que poderiam me contar um pouco sobre alguns lugares, tradições, comidas, etc. Depois fiz as pesquisas online para ver as paisagens e tentar chegar em uma descrição crível, para só então desenvolver a trama. Consegui terminar depois de um ano suando no teclado. Registrei a história, mas sei que o que escrevi é apenas um rascunho do que pode, um dia, vir a ser um romance, pois precisa de muitas melhorias. E tudo bem. Vou deixar a história decantar um pouco para quem sabe, quando estiver mais madura na escrita, voltar a mexer nela.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando eu percebi que precisava de uma maior organização com os meus textos espalhados pela casa, fui buscar ajuda. Entrei em uma oficina de leitura e escrita criativa em São Paulo, ministrada pela Professora Doutora Malu Zoega, onde acabei ficando por uma década, em encontros semanais. Além de ter o meu trabalho criticado e avaliado, dividia o horário com mais duas colegas, escritoras já com livros publicados. Como eu ainda não tinha desenvolvido a disciplina para escrever sozinha, o curso foi fundamental para eu me organizar e dar um impulso na escrita, afinal, eu precisava levar textos novos semanalmente para discutirmos em grupo. Se sozinha eu ficava encontrando desculpas para não escrever ou procrastinar, naqueles anos, eu tinha uma obrigação com as minhas colegas e professora: se não criasse, não haveria a troca de opiniões e sugestões, razão exata da existência do curso. Acredito que ter participado desta oficina foi absolutamente crucial para mim. O livro que publiquei agora e mencionei acima, é apenas 1/3 de uma parte de contos selecionados durante as aulas com a Malu. A escrita é uma criação extremamente solitária, então eu acho que poder compartilhar com alguém, ou com colegas, quando você começa a se aventurar por esse caminho, pode ser muito produtivo e facilitar imensamente o processo. Um curso onde você precise apresentar seu trabalho, ou seja, ser exposto, ajuda muito a perder o medo de não corresponder às expectativas ou de receber críticas. Além de apresentar novos escritores, estilos e possibilitar parcerias. Nos últimos anos, publiquei dois livros com uma das minhas colegas de classe.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso bem menos do que deveria, inclusive, o que poderia me livrar de certos constrangimentos. Não sou de ficar lambendo a cria, nem na escrita, nem na arte. Gosto de criar e de soltar logo para já ir para um próximo projeto. Dependendo do conteúdo, eu mostro para algumas pessoas. Para o lançamento do meu livro, eu convidei seis atores para lerem trechos, especificamente selecionados conforme a personalidade de cada um, ao público, que foi abordado de forma discreta e sem saber que eram atores falando os meus textos. Acabou sendo uma experiência interessante, pois recebi o feedback de cada um, dos convidados e ouvi interpretações completamente descoladas da história funcionando de uma forma totalmente diferente da que eu ouvia dentro da minha cabeça. E mesmo assim, os fragmentos fizeram sentido para quem os escutou, pelo que soube mais tarde. Para publicar, claro que tive que reler os textos várias vezes, desde para aprovar o projeto gráfico, até entender as correções e sugestões da revisora. Só que li tanto (4 ou 5 vezes), que desde que o livro foi impresso, ainda não peguei para reler. Acho que, como no romance que escrevi e precisei me distanciar, eu talvez precise de mais um tempinho para mergulhar novamente nos contos e poder ter prazer na leitura. E até mesmo para tentar entender o porquê da seleção da editora e a ordem apresentada, apesar de ser um livro que pode ser lido até de trás para a frente, por não ter uma ordem cronológica específica, mesmo com as histórias entrelaçadas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou completamente “mané” para formatar qualquer coisa minimamente mais sofisticada no Word. Apenas abro o arquivo e descambo a escrever. Mas ajuda muito na hora de editar. Como eu gosto mesmo é de escrever textos curtos, como contos, muitas vezes a caneta é mais veloz. O problema é depois entender os meus garranchos, mas aí é outra história. Então eu acho que tenho uma combinação bastante equilibrada na escrita à mão e no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei se seria um hábito, mas cultivo muito o ato de observar. Gosto de textos descritivos, com riqueza de detalhes, pois sou muito visual e quando consigo imaginar a cena, aí sim, embarco mesmo na história. As ideias vêm de todos os lugares: de histórias pessoais, de possibilidades que nunca experimentarei na vida, de uma “orelhada” de um bate-papo entre duas senhoras em um café, de observar um rapaz no metrô amarrando os sapatos de forma estranha, do meu julgamento (sim, assumo que julgo) sobre certos comportamentos de conhecidos, desconhecidos e familiares (e até do meu mesmo)… ou seja: tudo pode virar um texto. E ajuda muito, quando possível, consumir cultura de todas as formas, como cinema, teatro, música. E ler, sempre. Estudando teatro nos últimos anos, ficou muito claro para mim, que o meu prazer como leitora reside na literatura mesmo. Não sei se é por falta de hábito ou por ter tido pouco contato com outros estilos de escrita (apenas três anos), mas tenho certa dificuldade em embarcar em dramaturgias e roteiros.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Talvez o que tenha mudado no meu processo de escrita é ter perdido completamente o medo de que digam que a minha escrita é ruim ou medíocre. Eu sei que não deixarei nenhuma “A Divina Comédia” nos meus próximos quarenta anos de vida, se tiver a sorte de chegar lá, então não preciso esconder a minha expressão atrás de uma cortina de ansiedade e de medo de fracasso. Posso, e vou, apenas fazer o que eu sou capaz de fazer. E torcer para que alguém, que seja um leitor apenas, possa ser tocado, ou no mínimo, esboçar um sorriso ou mesmo desconforto, com aquilo que eu escrevi. Se eu conseguir contar uma história que possa ser compreendida, por menos mirabolante que ela possa parecer, terei tido êxito como comunicadora. E conseguir comunicar de forma clara, já é uma arte e um desafio.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu adoraria ter tempo de registrar todas as histórias incríveis que já ouvi, que não são poucas. Mas precisaria de mais uma centena de vidas para isso. Fui xeretar se haveria um livro da vida para ser lido, um que realmente explicasse, com provas e dados científicos convincentes e compreensíveis, o porquê de existirmos neste hiato tão curto e absurdo. O curioso é que constatei, em uma busca rápida, que foram publicadas ao menos umas dez obras com o título exato de “O Livro da Vida”, provenientes de vários países, inclusive. Ou seja: os livros da vida existem aos montes, mas nenhum que tenha me inspirado a demorar sequer dez minutos na internet para encomendar e receber o conteúdo no conforto da minha casa. Acho que, portanto, não vou conseguir responder a sua última pergunta.