Michel de Oliveira é escritor, autor de “O sagrado coração do homem” (Moinhos) e “Cólicas, câimbras e outras dores” (Oito e Meio).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo sem acreditar. Fecho os olhos e finjo dormir pra ver se a vida me esquece. Se tiver sol, ainda penso que vale o esforço de viver. Se chove ou faz frio, a vontade é que o colchão me engula e tudo seja silêncio. Quando enfim consigo levantar, por causa da bexiga a ponto de estourar, corro pra o banheiro. Depois arrasto os pés descalços pelo apartamento, com um mau-humor suíno, tentando não cometer nenhum crime. Bebo água, como alguma coisa e suspiro outra vez. Escovo os dentes, a alma decide voltar pra o corpo, depois de vagar sabe-se lá por onde, aí começo a dar conta das as prioridades do dia, que é ver qual o último meme e responder às mensagens no Whatsapp.
Se tenho algum compromisso pela manhã, ativo o alarme, levanto motivado pela raiva, com vontade de jogar o celular na parede, mas não tenho dinheiro pra comprar outro, então me resigno a desligar, sentar na beira da cama e suspirar. Penso várias vezes: por que preciso ir? Não sirvo pra ser adulto. Perto de atrasar, me desespero, corro pro banho, troco de roupa e saio ofegante, com uma cara de bicho. Ao encontrar alguém conhecido, sorrio: bom dia, amore, tudo bem?
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de prepração pra a escrita?
Sou um ser humano funcional depois do meio-dia. Então consigo fazer coisas de adulto à tarde, como estudar e escrever a tese. Os demônios da ficção chegam quando o sol se põe. Às vezes chegam cedo, no comecinho da noite, mas em geral são vagabundos e aparecem na hora que as pessoas decentes estão de pijama pra dormir. O ritual é perder a paciência com a ideia que fica rondando na cabeça, então escrevo, pra poder dormir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
A meda diária é sempre não escrever. Passo dias, semanas, às vezes meses, me esquivando das ideias. Se me descuido e alguma delas fica zunindo na cabeça, tenho que matar logo, aí escrevo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa pra a escrita?
Escrevo rápido, sem pensar nas consequências. Quando entro em processo criativo, escrevo de maneira obsessiva, em poucos dias de trabalho tenho um grande volume de textos. Quando percebo que aquilo está dizendo alguma coisa mais ou menos coordenada, descubro que tenho um projeto, é quando paro e organizo a bagunça.
Pesquisa eu faço pra tese, ficção escrevo com as coisas que entram pelos poros ou que saem das tripas. Se no meio da escrita tem algo que não sei e preciso pra história, coloco [pesquisar tal coisa] e sigo escrevendo. Se me disperso, perco o interesse pela história e fica inacabada. Então tenho que começar e terminar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Escrever é um exercício de perda: perde-se tempo, sanidade, sono, dinheiro, pra nada. Não traz retorno financeiro, fama, status, nada. A pessoa tem que ser muito tonta [pra usar uma palavra amena] se não escreve pra não enlouquecer, ou por estar louca. Então busco o bloqueio criativo, é ótima a sensação de brancas nuvens na cabeça. Mas por algum castigo minha cabeça está sempre nublada, aí chovo palavras.
O primeiro momento do meu processo de escrita é sempre muito autocentrado, então não me preocupo com expectativas, apenas escrevo, o que já é tormenta suficiente. Quando a história foi expelida, penso no leitor, é quando começo a edição, limpar o sangue, vestir uma roupinha bonita. Depois de impresso, não é mais meu. Jogo na roda dos enjeitados. Segue seu destino, encontre seus cinco leitores.
Projetos longos são um inferno. Tem personagens que são carentes, pedem mais atenção do que o necessário. Escrevo um conto e ela quer mais. Reluto o quanto posso, até entender que não vai embora, então começo a escrever cenas soltas. Em determinado momento, quando tem muita coisa escrita, compreendo o que é a história. Aí preciso organizar, criar regras internas pra o enredo, costurar as partes e fazer a colcha de retalhos. Minhas narrativas longas são só uma junção de remendos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos pra outras pessoas antes de publicá-los?
Quando me disponho a finalizar um projeto, cumpro com rigor três etapas, herança dos tempos de jornalista: escrever, editar, revisar. A escrita é instintiva, me deixo ser livre. Na edição que dou um jeito. Meu prazer é cortar, cortar, cortar. Vasculhar as frases em busca das palavras desnecessárias e cortar. Ver os parágrafos à procura das frases soltas e cortar. Cortar parágrafos inteiros, cortar tudo. Por fim, vem a revisão, não sou muito bom nisso, sempre passa alguma coisa. Quando alguém lê e encontra uma crase faltando ou uma vírgula fora do lugar, me desespero e penso: tá vendo, sou uma fraude, a pessoa descobriu que não sei escrever.
Às vezes mando contos soltos pra amigos mais próximos, pra testar se funcionam. Uma vez paguei pra um amigo ler o rascunho de um romance, é muita cara de pau pedir que alguém gaste tanto tempo com minhas bobagens. Mas hoje fui cara de pau e pedi pra uma amiga ler o rascunho do próximo livro de contos que organizei.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo muito no celular, nas notas do Keep, porque gosto de escrever deitado. Algumas vezes escrevo à mão, também deitado. Cheguei a escrever metade de um romance na caneta e a outra metade no celular. Quando não estou com preguiça, escrevo na máquina, e não é por nenhuma nostalgia, é que consigo me concentrar mais e os contos ficam melhores. Computador me deixa com déficit de atenção e sempre me dá a ideia de trabalho, sou preguiçoso, não quero me sentir trabalhando, então o notebook é só pra editar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva pra se manter criativo?
As ideias vêm do mundo, das coisas, das pessoas, de mim, dos pombos, das baratas e dos cachorros. Gosto do ordinário, do efêmero, da vida suja e que acaba. Das vitrines e das aparências. Meu único hábito é caminhar, me obrigar a ver que a vida não se resume a mim, e que tem um monte de outras pessoas tentando sobreviver.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Antes anotava tudo, ficava à mercê dos ímpetos de escrever. Agora penso: se a ideia for boa ela volta, uma hora escrevo. Ou então decido: não vou escrever, não adianta insistir.
Diria: pare de tolice, não gaste seu dinheiro publicando livro, vá tomar sorvete.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto é sempre ficar em paz, mas ainda não coloquei em prática, então escrevo. Queria escrever coisas que não têm nada a ver comigo, como uma história de fantasia, um romance policial, uma novela infantil [já me disseram: pelo amordedeus, não, as crianças vão se jogar da janela].
Queria ler um livro honesto sobre os homens, como não existia, escrevi. Agora só quero tomar sorvete.