Mazé Torquato Chotil é jornalista, pesquisadora e escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Para melhor compreensão das respostas, quero dizer que tenho dois tipos de escrita, literária e acadêmica. E um trabalho de 35 horas/semana, que não tem a ver com o mundo acadêmico. Portanto, tenho sim uma rotina, uma organização do tempo que tenta usufruir cada minuto.
Instaurei um ritual de trabalho em função das minhas disponibilidades. Me espelhei no escritor Josué Montello, que o entrevistei em meados dos anos 1980, quando ele era embaixador do Brasil junto à Unesco aqui em Paris. Ele que sempre trabalhou, me disse que para escrever levantava às quatro horas da manhã, quando toda a família ainda estava dormindo, tomava um café e ia para a máquina de escrever. Pelas oito, tomava o café com a família e ia para o trabalho ganha pão. Ganha pão sou eu quem diz. Um rigor que achei interessante e necessário quando se tem pouco tempo e vontade de escrever.
Então, com a idade chegando, sem a necessidade de dormir oito horas por noite, estabeleci um programa de trabalho que compreende levantar as cinco e vinte da manhã, tomar uma ducha, e me mandar para o trabalho. Tenho a sorte de ter uma pequena distância casa-trabalho, 15 a 20 minutos, à pé, de forma que chego às seis da manhã, com o pessoal da limpeza e vou para o meu lugar de trabalho, até às nove estou tranquila para cuidar dos meus “negócios”. Depois começo o tempo da empresa.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que prefiro escrever neste período da manhã, entretanto, quando tenho tempo à noite, ou em outros momentos, até às vezes no horário do almoço, tento avançar no trabalho que estou levando no momento. Depende da urgência ou não de terminar o texto. Gosto das manhãs em geral. Mas não me pergunto se estou inspirada ou não, vou em frente, me arranjando com as disponibilidades. Posso escrever em qualquer lugar, em qualquer tempo, mas acho que prefiro estes momentos matinais.
Esse tempo, três horas, não é somente para a escrita, já que começo, quando me instalo frente ao computador, a ler e responder as mensagens que me foram enviadas. Muitas vezes comunico uma obra, um Encontro literário que realizo…
Em seguida, o prazer de voltar ao texto. Sou lenta, paro todas as horas, inclusive às 7 da manhã para tomar o café que termina se alongando por 15 a 20 minutos, quando tem alguém por perto e termino batendo papo.
Posse escrever também em casa quando tenho tempo, às vezes à noitinha depois do jantar. Quando escrevo em casa, em geral é deitada no sofá, em posição confortável, com almofadas sob a cabeça e os pés e o computador no colo. Os finais de semana são reservados aos amigos, aos filhos e às atividades de dona de casa: compras, limpeza de casa que divido com o cara-metade… Entretanto, posso também continuar um texto se houver necessidade ou ir pesquisar na Biblioteca Nacional, entrevistar alguém, como é o caso atual para uma biografia que estou preparando da cantora brasileira radicada em Paris desde o final dos anos 1950, morta no ano passado, Maria d’Apparecida. Ela que foi a primeira afro-brasileira a cantar Carmem na ópera de Paris, que registrou com Baden Powell, gravou mais de 20 discos, recebeu a alta homenagem francesa, a legião de honra, Légion d’honneur das mãos do presidente François Mitterrand e que caiu no esquecimento nos seus últimos anos de vida, depois que deixou de cantar em público.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse, escrevo todos os dias da semana ou mais algumas vezes, tento rentabilizar o máximo o tempo disponível, mas não tenho meta diária. O que fixo é o tempo total do projeto de escrita, o tempo total de realização dele. Por exemplo, um ano para concluir a biografia em preparação atualmente. O pós-doutorado, uma pesquisa sobre o exilio de trabalhadores brasileiros durante a ditadura levei cinco anos considerando todo o trabalho de pesquisa, de trocas com o diretor de pesquisa, a edição do livro em francês, a tradução para o português e seus respectivos lançamentos.
Às vezes, tenho que deixar um projeto por uns dias, para atacar um outro, por necessidade ou para me dar o tempo, a distância necessária para retornar a ele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não sei se tenho um método, mas vou escrevendo aos poucos, desde que tenho a informação, arquivando em pastas o material das pesquisas (entrevistas, fotos, textos…), de uma forma que me é particular e que se adapta ao projeto.
A grande dificuldade é que nem sempre sei que forma vou dar ao texto final, e termino “perdendo tempo” na passagem para a fórmula final quando o corpus é importante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
O trabalho de doutorado, sobre o uso da informação para as pequenas e médias empresas brasileiras, não publicado, me foram necessários três anos de trabalho. Poderia ter utilizado dois anos a mais, segundo a lei francesa, mas preferi não passar dos três anos, tempo oficial, mesmo levando em paralelo o trabalho diário na minha empresa. Penso que é preciso se dar um tempo, um limite, caso contrário temos sempre uma boa desculpa para deixar para o outro dia. Portanto, me dou um tempo que penso ser necessário em relação à minha forma de trabalho, ao meu ritmo, mas gosto de findá-lo antes do tempo, para não ter que fazer as coisas na última hora, ficar estressada. Prefiro o rigor do trabalho quotidiano e regular.
Em relação aos textos literários faço a mesma coisa em matéria de tempo, mas quando eles não são urgentes, não tem ainda um editor, posso colocá-los na gaveta e revê-los tempos depois.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando escrevo sinto-me como uma bordadeira que pega uma coisa aqui outra lá, juntando pedaços, ideias, uma bordadeira de palavras. Em seguida, reviso inúmeras vezes, até sentir que ele está fluindo e que tem as ideias que quero transmitir. Somente depois procuro alguém sensível, ou especialista do tema, que possa ler e me dar o retorno que não consigo ter pela falta de distância necessária do texto. Depois desses olhos exteriores, das anotações que fizeram, volto ao texto. Depois tem o trabalho do editor, novas correções… E sempre alguma coisa que passou despercebido!
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quase não escrevo mais à mão. Somente algumas notas aqui ou acolá. Nas pesquisas tenho sempre o computador, acho mais fácil escrever diretamente no Word. Também utilizo muito o celular para fazer fotos de textos, de fotos, de materiais destinados à leitura e análise mais detalhada depois. Faço muitas entrevistas à distância, quando não posso estar perto da pessoa. Por telefone, que gravo para transcrever depois, por mensagem, Messenger, todos os meios disponíveis e possíveis. E com a Internet, faço muita pesquisa em banco de dados à distância. Uma maravilha quando os documentos são digitalizados. Grande dificuldade é quando uma revista ou outro material só é consultável numa biblioteca, ou quando se precisa de um documento oficial tendo que passar pelas burocracias dos cartórios, por exemplo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Temos temas que nos são particulares. Nascida no Mato Grosso do Sul, sou sensível ao universo de colonização do final dos anos cinquenta naquela região. Em seguida, sou próxima da periferia da Grande São Paulo, onde vivi cerca de dez anos e, nos últimos trinta anos, o universo parisiense me é familiar. Escrevi três livros “enfincados” na realidade do Mato grosso em que nasci (a divisão do estado veio depois). Universo que utilizei, para escrever outros textos ainda não publicados, entre outras histórias, uma “recente” de roubo de quadros que passa pelo Paraguai, Mato grosso do Sul, São Paulo e França. Acho que escrevemos a partir de realidade que temos afinidade. A biografia do líder da greve de 1968 de Osasco, José Ibrahim, publicada neste ano, tinha ligação com Osasco onde fui morar quando cheguei em São Paulo para estudar jornalismo. Trabalhando na imprensa local, conhecei o Ibrahim na sua volta do exilio. Depois de ter escrito “Trabalhadores exilados”, trabalhadores brasileiros exilados durante a ditadura, passei à biografia do Ibrahim. Foi, digamos, uma continuidade.
A ideia da biografia da cantora Maria d’Apparecida surgiu com a minha surpresa de ver alguém que não conhecia, mas que divulgou a cultura musical brasileira aqui na Europa, sobretudo na França, por cerca de meio século e ter corrido o risco de ser enterrada numa vala pública tal como Mozart e alguns outros artistas conhecidos. Não tinha afinidade com ela, mas com o lugar onde vivo, e tenho a mesma digamos “expatriação” que a cantora.
As ideias, os projetos vão surgindo e como são consumidores de tempo, nem sempre os realizo com a rapidez que gostaria, mas a minha vontade é escrever romances policiais históricos. Tenho muitas ideias anotadas esperando a vez de serem tratadas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Digamos que comecei como jornalistas, escrevendo textos curtos. Depois, passei a escrever textos literários de memória, mais longos que um artigo e mais poéticos, pude me colocar nos personagens lhes dar vida. Quando passei aos textos acadêmicos, o corpus ficou mais importante e as regras a respeitar mais restritas. De forma que meus textos têm mudado. Atualmente diria que eles são o resultado, a soma do que aprendi com a escrita jornalística, o que soube fazer como escritora e o rigor da pesquisa que aprendi no mundo acadêmico. É a soma de tudo isso. Procuro lhes dar fluidez, vida e rigor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou esperando a aposentadoria francesa para ter mais tempo para os projetos engavetados. Como disse, gostaria de escrever romances policiais históricos, porque penso que podemos transmitir através deles muita coisa que não conseguimos com textos acadêmicos de leitura que requer muita atenção e de público restrito.