Mayã Fernandes é escritora, filósofa, podcaster e doutoranda em Artes Visuais pela UnB.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Faço parte do grupo de pessoas que acordam às 5h da manhã para começar as tarefas diárias. No começo do dia tiro as primeiras horas para estar em sintonia com minha Òrìṣà Nàánàá. Sou candomblecista e esse primeiro momento é primordial para que o restante do dia seja tranquilo e de acordo com meu planejamento. Para além disso, costumo realizar todas as atividades domésticas e de grande urgência neste período, além de ter que resolver questões burocráticas relacionadas à universidade ou à editora Oribê, na qual sou fundadora. Gosto da rotina e minhas manhãs costumam ser parecidas. Adoro a banalidade dos dias, os pequenos detalhes da casa, das relações interpessoais e obviamente, observar as pessoas pela janela do escritório. Pela manhã é o momento em que as pessoas começam a sair de casa, mesmo no período da pandemia, para trabalhar e retomar suas atividades diárias. Inicio o dia observando a movimentação da rua e tomando uma boa dose de café descafeinado, sempre acompanhada com algum tipo de leitura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A carreira acadêmica possibilitou que meu trabalho fosse feito dentro de casa. Há anos que tenho essa rotina de criação e escrita a partir da observação do mundo, de leitura de livros teóricos e literários, de conversas com minha companheira e amigas. Nesse sentido, consegui me impor um horário de trabalho para que não passasse o dia todo me dedicando a essa atividade. Costumo restringir o horário da escrita (ensaios, prosas poéticas, artigos científicos, contos e a tese) e de trabalhos gerais (orientações, pareceres técnicos, leituras críticas e edição de livros) pela manhã e pela tarde. No horário da noite aproveito para descansar e continuar minhas leituras. Sou obsessiva com a leitura. Desde o momento em que acordo até o momento em que vou dormir, estou lendo algum tipo de livro. Pela manhã gosto de ler livros ensaísticos de filosofia, arte e política. Pela tarde sempre consulto algum livro de historiografia da arte, área em que estou desenvolvendo minha tese, e deixo a noite para os livros de ficção. Adoro descobrir novas autoras. Ano passado tive a felicidade de encontrar os livros da Octavia Butler, que para mim é uma das melhores escritoras de ficção científica do século XX. Nessas leituras consigo entender melhor sobre escritas que fogem do eixo branco europeu e de pensar em novas imagens para meus escritos.
Gosto de desenvolver os textos no meu escritório, de ter todos os livros sobre a temática em cima da mesa para utilizar como referências diretas e indiretas. Contudo, escrevo mais de um texto ao mesmo tempo, do mesmo modo que leio vários livros simultaneamente, pois isso me traz uma leveza para a atividade, retirando a cobrança ou a ansiedade que prazos curtos possam gerar. Além do que não consigo pensar em apenas uma história, uma teoria ou uma forma de ver o mundo. Deste modo, sempre deixo vários arquivos do word abertos, para transferir minhas anotações manuais, montando vários textos, como se fossem quebra-cabeças.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias. Não coloco essa atividade como uma meta, apenas flui. Faço desde pequenas anotações que podem transformar-se em textos teóricos, ensaios, artigos científicos, partes da minha própria tese, até trechos que viram ìtàn (contos relativos à cosmologia do candomblé) ou contos diversos. Não gosto de escrever sob pressão, então geralmente costumo me organizar e escrevo com muita antecedência quando tenho prazos. Para mim a atividade da escrita é consequência de muito trabalho, de prática, de retornos e feedbacks de leitoras e aperfeiçoamento pessoal. Então, para mim, estabelecer as metas diárias e uma escrita extremamente concentrada geram frustração e cansaço exacerbado. Por isso respeito ao máximo os limites mentais e físicos do meu corpo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como já relatei anteriormente, pesquiso e faço anotações ao mesmo tempo. Abrir vários arquivos no word é uma regra. Enquanto faço as anotações em uma caderneta consigo pensar em narrativas possíveis para aquelas anotações, ao ponto que formo uma imagem utópica do texto em minha mente. O esforço é fazer com que meus dedos e a linguagem consigam dar vida à narrativa e aproximar-se do que já havia imaginado. Consequentemente, a escrita é mutável, transforma-se de acordo com que me aproximo da imagem utópica, passando de pequenas anotações para algumas páginas e por fim um texto imagético. A partir daí penso na finalidade daqueles escritos. Se deverão se transformar, por exemplo, em um ensaio, em uma prosa poética ou em um ìtàn. A partir disso começo a montá-lo, modelando até que ele ganhe forma. Por isso gosto da imagem do quebra-cabeças. Com essa ideia, posso criar desde um artigo científico que esteja de acordo com uma linguagem academicista, seguindo várias regras pré-determinadas, até pensar em um texto que não segue regras, onde existe o espaço para a experimentação, podendo criar histórias que ainda não existem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não costumo ter travas de escrita. O que me irrita profundamente e me causa ansiedade é não conseguir me organizar em meios às atividades burocráticas do cotidiano, perdendo a noção de rotina. Por isso detesto trabalhar com prazos curtos ou ter que escrever textos de última hora. Raramente ignoro trabalhos solicitados de última hora, mas não os faço feliz, pois sei que o resultado não será o mesmo se tivesse sido feito com antecedência.
Sou uma colecionadora de novos projetos, principalmente os de longo prazo. É sempre uma alegria ver um projeto gerado durante anos ganhar forma e ser realizado e depois de um tempo alcançar o seu auge.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Quando termino de modelar um texto e sinto que preciso de uma segunda leitura, encaminho para minha editora. Ela se chama Ana Carolina Lima, poeta e multiartista, e todos meus textos, inclusive este, passam por suas mãos. É no diálogo com ela que consigo desenvolver todo meu potencial de escrita e de criatividade. Esse é um serviço oferecido pela Oribê (www.oribeeditorial.com). É muito importante o serviço de leitura crítica, de edição de textos e de revisão ortográfica. A pessoa que faz o serviço de edição lê o seu texto e indica possíveis modificações, estabelece um diálogo sobre as recepções das imagens que criamos ao longo da escrita e que para nós são límpidas, enquanto que para outras pessoas possam ser indecifráveis. Como meu objetivo não é escrever textos para uma leitora só ou para engaveta-los, faz-se necessário deixá-lo ventilar, receber críticas e, se for o caso, passar pelo processo de remodelação.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Meus primeiros rascunhos são feitos sempre à mão. Tenho inúmeros cadernos, de vários tamanhos, que registram frases soltas, histórias pela metade, colagens, textos inteiros e palavras-chaves. Depois de registrar no papel vou montando essas frases no word, para que elas possam virar um texto coeso. Uma coisa importante é que sou muito organizada com o arquivamento dos textos, então guardo uma cópia em e-mails diferentes e em nuvens. Leio em média 8 livros ao mesmo tempo e utilizo aplicativos como o “Minha leitura” ou o “Cabeceira” para organizá-los.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias surgem de situações simples, desde o observar das pessoas andando na calçada do outro lado da rua, às situações que vivencio no cotidiano. Elas aparecem por meio da leitura de temas aleatórios, de textos que me tirem da zona de conforto, de conversas com outras pessoas e de brincar com meus animais. Elas vêm por meio sonho, quando por vezes, sonho itàn inteiros e quando acordo só tenho o trabalho de escrevê-los. Os hábitos que busco cultivar são para viver bem, me alimentar, dormir, me nutrir de afeto e de espiritualidade. Isso basta para que as ideias surjam.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sempre conto a história de quando eu tinha 6 anos de idade, quando suspeito, ter aparecido as primeiras nuances de uma possível dislexia. Lembro que quando era criança e comecei a ser alfabetizada na escola, uma professora me colocou para ler e repetir o trecho escrito no quadro: Quantos anos você tem? e eu respondia: 6. Ela, impaciente, tentava me forçar a ler em voz alta a pergunta, que na minha cabeça não fazia sentido algum repetir, mas sim responder na sequência. A professora desistiu e me colocou de reforço durante 2 anos até alcançar os demais na arte da repetição. Essa época foi muito traumática, assim como várias outras dentro da universidade. Tive que aprender a ter uma escrita analítica como forma de me proteger, de ser acusada de não ter um rigor acadêmico. Mas durante minha banca de mestrado, tive meu trabalho mal avaliado, seguido de inúmeras falas misóginas e que hoje, compreendo que eram também falas racistas. Ao ler o livro da Grada Kilomba memórias de plantação, me dei conta que a misoginia às vezes aparece conjuntamente com o racismo. A autora sugere que invertamos os papéis nessas situações traumáticas dentro da universidade. Por exemplo: e se no meu lugar fosse uma mulher branca, ou um homem branco, alguns membros da banca teriam me mandado servir café? Alguns membros da banca teriam rido da minha pergunta sobre uma possibilidade de realizar um doutorado? Ou alguns membros da banca teriam me mandado pagar alguém para escrever minha dissertação? Possivelmente, se eu fosse um homem branco, ou uma mulher branca, essas imposições e questionamentos não seriam feitos a mim. Se pudesse voltar no tempo diria para não mudar nada do que escrevi, pois meus textos eram testemunhas de tudo o que passei, de todo esforço e trabalho. O que aprendi com isso tudo foi a entender o meu valor, entender que não estou sozinha no mundo e que tenho a proteção de Òrìṣà. Assim, vejo a cada dia o crescimento de minha escrita de acordo com minha confiança no que produzo. Minha escrita está em potência e espero que alcance outras pessoas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho nenhum projeto que faça parte de meu desejo que ainda não tenha colocado em andamento. Coloquei como meta da minha vida buscar e alcançar tudo o que eu quero e não tem um dia que não trabalhe para realizar meus objetivos. Gostaria muito de ler os livros que ainda não escrevi, os que ainda não editei e que certamente me apresentarão novos horizontes.