Mauro Bartolomeu é poeta e escritor, autor de A Torre, Nossa Senhora da Eutanásia e Manifesto Onigâmico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha principal rotina matinal sempre foi dormir, mas já depois que tomei gosto pela musculação (coisa que nunca pensei que aconteceria algum dia), passei a dedicar minhas manhãs para atividades físicas. Muitos dizem que esse é o melhor horário para trabalhar, mas eu me sinto mais produtivo ao longo do dia quando começo com os exercícios físicos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Na condição de professor, que a cada ano tem sua rotina completamente mudada em função dos quadros de horários de aulas que lhe são atribuídos, não podia me dar ao luxo de manter uma rotina de escrita. Depois que me afastei da sala de aula, há alguns anos (por opção), passei a experimentar várias rotinas diferentes, e a que tem funcionado ultimamente é a de escrever diariamente das três às seis da tarde, período durante o qual desligo o telefone, me desconecto de todas as redes sociais, boto os fones de ouvido e fico completamente inacessível ao mundo exterior, a menos em caso de incêndio ou terremoto. De qualquer forma, nada garante que daqui a dois ou três meses eu não esteja experimentando outra completamente diversa, mas no momento, é a que tem funcionado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Minha produção até o momento foi quase toda feita de maneira bastante irregular. Meu primeiro livro foi uma seleção de poemas, que levou bastante tempo. O segundo, a prosa poética experimental Nossa Senhora da Eutanásia, levou nada menos de dez anos, entremeados com muitos períodos de puro engavetamento. Já os dois últimos, o Manifesto Onigâmico e a sátira A Torre foram escritos em períodos mais concentrados. No momento, tenho vários projetos iniciados, e tenho me dedicado ora a um, ora a outro, mas tenho conseguido manter uma constância no trabalho, fiel à meta modesta de dois mil caracteres por dia (nesse quesito, tenho por modelo Saramago, que nunca escrevia mais de duas páginas por dia).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minha prosa experimental foi um processo longo e trabalhoso. Tinha de colocar alguma “ordem” em um vasto material esparso, que, a rigor, dada a “não-organicidade” da estrutura (vide a esse respeito a Teoria da Vanguarda, de Peter Bürger), poderia ser colocada em praticamente qualquer ordem, o que, ao invés de facilitar, dificultava o processo de escolha. No caso do Manifesto Onigâmico, que é praticamente um “conto de tese”, ou antes um diálogo filosófico, uma vez feita a pesquisa básica, toda estrutura surgiu imediatamente na minha cabeça, e foi fácil montar a sequência das falas. Por fim, no caso d’A Torre, eu só tinha um esboço dos tópicos de cada capítulo e da caracterização de cada personagem, mas o conteúdo dos diálogos foi surgindo espontaneamente à medida que eu escrevia, e cada dia era uma completa surpresa para mim também, porque eu nunca planejava com antecedência que argumentos cada qual iria usar. Foi quando eu descobri que aquele papo de os personagens ganharem “vida própria” é verdade mesmo. Acho que isso me estimulou a trabalhar de forma mais concentrada nesse caso, porque eu já acordava morrendo de curiosidade para saber como é que o debate iria continuar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Minhas travas são principalmente motivadas pelo meu questionamento radical da importância do que faço. Particularmente, eu não pretenderia escrever nada que não fosse digno de um Nobel, mas ao mesmo tempo me recuso terminantemente a produzir qualquer coisa que de fato se pudesse cogitar concorrer a qualquer prêmio literário de peso, porque me parece que é preciso ser muito “inofensivo” para ser julgado vencedor. Recuso-me a escrever o que quer que seja em função de uma demanda de mercado. Tenho até mesmo aversão de me enquadrar em algum gênero. Imagine de repente fazer um sucesso absolutamente inesperado com um romance de determinado gênero e depois passar a ser cobrado a que continue produzindo dentro desse gênero, pelo resto da vida. É possível que eu apenas ainda não tenha encontrado o meu gênero, ou a minha “fórmula” literária, mas para mim, em princípio, cada obra precisa ser uma invenção. Essa concepção certamente me vem da minha relação com a poesia. Por mais que a voz do poeta captável do conjunto da sua obra possa ser geralmente encontrada em cada um dos seus poemas individuais, a verdade é que cada grande poema traz em si mesmo suas próprias regras, é uma espécie de máquina única de sentido. Não sei se é humanamente possível fazer a mesma coisa no romance, ou mesmo nos longos poemas épicos, porque ainda estou tateando nessa seara. Só sei que essa é a minha pretensão no momento.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Posso dizer que a cada vez que releio os textos em que estou trabalhando, já o faço alterando tudo. Ao final do processo de escrita, terei alterado praticamente cada frase dezenas de vezes. Sou informado de que o Grande Sertão: Veredas passou por nada menos que 52 reescrituras. Creio que sigo esse método de trabalho, ainda que não seja algo propriamente “metódico”. Simplesmente sou incapaz de reler sem modificar. Nem gosto de reler meus livros depois de publicados, porque o impulso de modificá-los me corrói o tempo todo. Quanto a mostrar para outras pessoas, bem, isso é bastante raro. O que costumo fazer é comentar a ideia geral com um ou outro amigo seleto, mas apenas quando estou procurando fechar alguma ideia que ainda não esteja bem amarrada. Mas como sou muito perfeccionista com a redação em si (o que também herdo da minha relação com a poesia), tenho um ego muito grande para aceitar pacificamente críticas ao meu texto. Por isso foi que me decidi pela autopublicação, e não tenho mais nenhuma pretensão de vir a ser publicado por uma editora de grande porte. Isso, para mim, seria um sinal de que eu fiz alguma coisa muito errada…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho sempre papel e caneta por perto, porque as ideias não têm hora para me assaltar. Os poemas nunca me nascem enquanto estou digitando, são invariavelmente rabiscados primeiro. Já os textos em prosa, eu anoto apenas as ideias centrais, mas desenvolvo o texto apenas no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Um bom poema só surge quando recebo a visita das musas, o que equivale a dizer que nunca sabemos exatamente o que desencadeia o processo. Mas é inegável que as ideias brotam do repositório cultural e das informações com que somos constantemente bombardeados, do diálogo que travo com os autores que admiro, bem como com os que eu desprezo. Fernando Pessoa dizia que um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss está mais apto a escrever um bom soneto de amor do que outro que o não saiba. A explicação para isso é que o primeiro poeta demonstra uma curiosidade intelectual nata, que necessariamente amplia os horizontes interiores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
“Desista.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O que eu gostaria de fazer: um poema capaz de mudar a realidade, e não apenas de espelhá-la. Que fosse genial a ponto de espantar os acadêmicos mas ao mesmo tempo suficientemente simples para ser compreendido por qualquer pessoa. E que dotasse o leitor de uma clarividência que fizesse ver toda evidência.
O que eu gostaria de ler: um livro alienígena, talvez de algum autor da constelação de Capricórnio, que não fizesse menção a nada que remetesse ao drama humano, mas que ainda assim conseguisse me tocar por uma identificação misteriosa e profunda.