Maurício Melo Júnior é jornalista e escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, tenho uma rotina matinal. Costumo acordar cedo, muito cedo. Leio, nos fins de semana, ou vou à academia, nos dias de semana quando não bate a preguiça e fico lendo. Como ainda trabalho regularmente, fora da literatura, cumpro meu expediente no primeiro horário. Chego ao trabalho por volta das oito horas e sigo por lá até por volta das 15 horas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sempre pela manhã. Quando possível, vou para minha mesa de trabalho em casa, por volta das oito horas da manhã, e escrevo. Não há ritual. Simplesmente escrevo. Quando não posso fazer isso pela manhã, à tarde vou para o escritório e escrevo, sem me preocupar com as interrupções naturais do cotidiano. Gostaria de ter rituais, como Gabriel García Márquez que tinha sempre uma rosa amarela por perto enquanto escrevia, ou José Saramago que escrevia ouvindo música clássica. No meu caso, nada faço senão escrever, mas, se isso serve como ritual, tenho sempre vários dicionários à mão, principalmente o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, e os consulto permanentemente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou jornalista. E esta é uma profissão que exige muito tempo. Estar informado, ler as notícias do dia, ver os noticiários da TV, escrever notícias, gravar programas, entrevistas… No meio do caos escrevo e conto minhas histórias. Minha única meta é terminar a história que estou escrevendo. Depois vem o trabalho mais terrível e mais prazeroso, que é reescrever, reescrever, reescrever… Ou seja, primeiro conto a história e sobre ela vou temperando com pesquisas, releituras, etc.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O começo nem sempre é difícil. Como tenho a história mais ou menos definida na cabeça, busco uma frase de impacto que traduza a ideia, o enredo. Preciso da história contada, como já falei. E vou contando até que ela chega ao fim.
Durante este processo, faço as pesquisas e leio os livros e textos que a história pede. E aí, enquanto reescrevo, vou dourando o texto com os elementos que colhi na pesquisa. Até que desisto do texto e entrego para o editor.
Há, no entanto, uma obsessão pela frase inicial. Ainda vou escrever um texto que comece como Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. (…) O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo.” Ou como Quarup, de Antonio Callado: “Vivos ali só Nando com a lamparina de querosene e Cristo na luz da sua glória.”
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tenho muita experiência com o texto travado. Vou escrevendo aos poucos, a medida que o tempo permite, mas sempre termino a história. Por vezes o resultado me desagrada, e muito. O maior exemplo é o romance Noites Simultâneas. Eu o escrevi em 1988 e detestei o resultado. Deixei na gaveta por 20 anos, apesar de ter encontrado editor para o monstrengo, e o reescrevi por onze vezes até me dar por satisfeito. Ou melhor, até desistir do bicho.
Meu novo romance, Não me Empurre Para os Perdidos, reescrevi dezessete vezes.
Às vezes, no entanto, acontecem entraves por conta de minhas outras atividades. Vamos lá, o romance que estou escrevendo, tive que interrompê-lo por conta de uma encomenda. O editor Álvaro Modernell, da Mais Amigos, me encomendou um texto infantil sobre bibliotecas. Parei o romance e escrevia A Biblioteca da Traça Teca. Para retomar o texto que fazia, apenas reli o que tinha escrito e retomei do ponto onde parei.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não há um número determinado de vezes. Lembro apenas um texto que praticamente não reescrevi. Na novela Caminho Só de Ida, publicada no livro Andarilhos (Bagaço), o protagonista tem uma visão onírica do quilombo dos Palmares. Mudei muito pouco da primeira versão. Foi uma experiência, que me lembre, única. Tanto que tomei um porre de uísque depois de concluir o texto. Estava mesmo satisfeito. Mas o normal é a insegurança, sempre, diante do texto. E aí incomodo os amigos, vários, pedindo para ler e opinar sobre meus textos. Não tenho nenhum problema com isso. E reescrevo, reescrevo, reescrevo…
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Outra vez o vício do jornalismo. Direto no computador e antes era na máquina de datilografia. Mas neste ponto há também um processo, uma mania. Texto escrito, imprimo e sobre o texto impresso, faço quatro revisões com canetas de cores diferente. Volto para o computador e passo tudo a limpo. Reimprimo, retomo as canetas, e assim segue a vida até que me dou por satisfeito ou deixo o cansaço me vencer. E o computador é uma facilidade com a possibilidade de retirar e acrescentar trechos, capítulos inteiros, sem ter que copiar tudo, como no tempo da máquina de escrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Hábito nenhum. Ou talvez um. Carrego sempre um bloco, um moleskine, onde anoto algumas ideias que surgem, uma lição que aprendi com Ignácio de Loyola Brandão. E elas surgem de maneira inesperada.
Outro dia, há muitos anos, estava em um banco quando entrou uma figura extemporânea, um hippie, com bata indiana, cabelo encaracolado, chinelo de couro, calça de flanela, colar com o símbolo de paz e amor. Logo me veio a pergunta: O que restou da contracultura? Somente agora estou tentando responder na confecção de um novo romance.
Também o ponto de partida do romance que estou publicando este ano pela Patuá, Não me Empurre Para os Perdidos, surgiu de um desses estalos. Estava lendo a biografia de um escritor de origem germânica que viveu no primeiro quartel do século XX e que um dia sonhou morar na América. Neste tempo moravam e conviviam no Recife grandes figuras de nossa modernidade como Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Joaquim Cardoso, Vicente do Rego Monteiro. E se o tal escritor tivesse uma passagem pela cidade para conversar sobre modernidade com essa gente? Escrevi para responder essa pergunta e realizar o sonho do tal escritor de um dia morar na América.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou tudo, mas sobretudo o processo de refletir sobre os assuntos, os temas. Nada é linear, reto, asfaltado, é preciso compreender e enfrentar as veredas e ondulações do caminho. Daí que hoje pesquiso mais e exploro mais os temas. Um exemplo? Paralelo ao novo romance, escrevo um livro de contos. Num dos textos, um parlamentar se encontra com Antonio Salazar, então presidente de Portugal. Li uma biografia do ditador com 815 páginas apenas para tornar o meu Salazar mais verossímil.
É isso, mudaram a disposição e a determinação de conhecer em profundidade os temas sobre os quais escrevo.
Outro exemplo vem do Não me Empurre Para os Perdidos. Durante as pesquisas descobri que houve uma briga entre modernistas e passadistas durante o lançamento do livro Bailados Brancos no Recife, escrito por um poeta modernista esquecido, um certo Paulo Torres, isso em 1924. Vasculhei tudo o que podia até encontrar e ler o tal livro que, a propósito, teve apenas aquela edição de 1924.
Também para este romance encontrei e li toda revista Ilustração Brasileira de junho de 1924 que faz um amplo panorama de Pernambuco daquela época. Foi uma leitura fundamental para pontear bem a cidade de minha ficção.
No entanto, é bom que se diga, não é prudente ficar preso à pesquisa. Exemplo? Descobri uma loja de modas perfeita, onde devia trabalhar uma personagem, Armínia. O problema era o endereço da loja que ficava fora do alcance de outro personagem, e era necessário o encontro entre eles. Não tive dúvidas em mudar o endereço da loja, mesmo mantendo seu nome real.
E o que eu diria a mim mesmo seria apenas isso: vai ler e trabalhar, vagabundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São muitos os projetos. Até uma tetralogia para o teatro revendo figuras históricas. Mas isso não é coisa que me tire o sono. Vou trabalhando de acordo com meu prazer e com os desafios que me são impostos, inclusive por mim mesmo. Recentemente escrevi uma novela infantil sobre livros e bibliotecas a pedido de um editor, como já contei. A vida segue assim.
Apesar do que já escreveram João Almino, Almeida Fischer, Garcia de Paiva, Paulo Dantas, Lima Trindade e outros tantos, acho que a saga dos construtores de Brasília ainda está por ser contada, mas não serei eu a enfrentar esta pedreira.