Mauricio Lyrio é escritor e diplomata, autor de Memória da Pedra e O imortal, publicados pela Companhia das Letras.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre que consigo acordar cedo, começo o dia escrevendo. Não tenho muito tempo de manhã, já que, como diplomata, preciso ir para o trabalho que me sustenta.
É um começo flexível demais para ser chamado de rotina. Antes, é um ideal de rotina: acordar às 6h30, escrever durante uma hora e meia, tomar um banho e sair. Em alguns períodos, o plano funciona. Na maioria das vezes, é uma ideia que se frustra à espera de dias melhores.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A melhor hora é a primeira. Ou as manhãs de maneira geral, como nos fins de semana. A cabeça está fresca, os problemas do dia ainda não ocuparam o centro das preocupações. O sono e o cansaço virão à noite, outro momento possível para escrever, embora me sinta menos concentrado.
Não tenho ritual de preparação da escrita, não que eu perceba. No máximo, um café para ajudar a acelerar o começo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever um pouco todos os dias, já que, com o trabalho de muitas horas e o dia-a-dia de pai e marido, não sobram muitos momentos para escrever. Tenho mais tempo nos fins de semana, quando consigo, se as coisas vão bem, escrever por três ou quatro horas seguidas.
Sim, acho que posso dizer que tenho uma meta, frequentemente frustrada, de reservar pelos menos dez a doze horas por semana para escrever ficção. Embora modesta, quase sempre se revela ambiciosa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita parte de uma ideia central, ou de um sentido geral, que, uma vez definido, dificilmente se altera. Levo algum tempo para encontrá-lo, mas assim que me convenço de que tenho um eixo para um romance, começo a tomar notas, a dividir as ideias e possíveis cenas em futuros capítulos, a pensar nos personagens. Às vezes, um personagem é a origem desse sentimento de que tenho algo que pode ser estruturado como romance.
O começo é um pouco difícil. É preciso encontrar um estilo ou uma voz que se ajuste à ideia para o romance. Identificada essa chave (uma narrativa em 3ª pessoa aparentemente dissociada dos dilemas da trama, uma combinação de registros narrativos, ou uma voz um pouco mais próxima dos personagens), o processo de escrever avança, sujeito a impasses no meio do caminho.
A pesquisa é sempre acessória, quase nunca prévia. Busco uma informação ou conhecimento de que preciso para uma cena ou um personagem em particular. Para o meu primeiro romance, Memória da Pedra, tive de fazer uma pequena pesquisa sobre assuntos médicos. Para O imortal, informei-me sobre detalhes da premiação do Nobel e do calendário eleitoral brasileiro, e não muito mais que isso. Dificilmente tenho de pesquisar lugares que servirão de cenário (por ter vivido em um bom número de cidades, uso a memória) ou momentos do passado (nunca tive interesse em escrever romances históricos). Como leitor, não me agradam romances excessivamente pesquisados ou informativos. Para isso, obras de não-ficção me satisfazem mais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Por personalidade, não sou muito dado à procrastinação e tendo a conviver bem com projetos de longo prazo. Talvez seja uma das razões por que escrevo romances, não contos. Com poucas horas por semana para escrever, seria tola a impaciência com o tempo ou com a ideia de conviver longamente com um texto.
O medo de não corresponder às expectativas talvez seja uma preocupação mais concreta, mas é sobretudo uma cobrança íntima. Meu melhor e meu pior leitor sou eu mesmo, e me alegro quando tenho a sensação de ter superado minhas expectativas, da mesma maneira que me frustro quando escrevo algo aquém do que considero digno de leitura.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus textos constantemente. A cada dia, releio o que fiz na véspera, antes de recomeçar a escrever, especialmente os trechos ou frases marcadas para reconsideração. Quando mudo algo, marco o trecho para exame no dia seguinte, uma maneira de avaliar se minha satisfação ou insatisfação naquele momento é um juízo precário, um tanto leniente ou rigoroso demais.
Em alguns momentos da redação do livro, sinto-me tentado a reler tudo o que escrevi desde o começo, e quase sempre é útil ceder ao impulso. Ajuda a avaliar se o livro como um todo está redondo na direção e no ritmo.
Mostro o texto a algumas pessoas próximas e amigas antes de mandá-lo à editora. Por serem pessoas que admiro como leitores, quase sempre sou sensível às ponderações e aos comentários feitos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo diretamente no computador, o texto em si e as notas. Tudo se concentra num grande arquivo, dividido em capítulos, e o material de pesquisa e para futuro aproveitamento é deixado na parte final.
Difícil imaginar como se escrevia sem o auxílio do computador. Minha única tentativa de escrever um romance à mão foi aos 18 anos. Naquela época o que havia era a máquina de escrever, muito imprópria para um redator indeciso e volúvel. Logo abandonei o projeto, por incompetência literária de pós-adolescente, mas eu bem poderia alegar que desisti pelas imensas dificuldades de corrigir e refazer um texto escrito à mão.
Por isso me assombro com a literatura do passado, como se fosse uma quimera, uma criação imaginária que Borges enfiou num de seus contos. O que Cervantes, Proust, Kafka, Stendhal, Flaubert, Joyce e tantos outros teriam feito se contassem com um computador e um processador de texto? Balzac, o mais prolixo, bem poderia ter redigido uma biblioteca inteira.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Imagino que nem um bom psicanalista poderia dizer de onde vêm as ideias de seu paciente-escritor, para além de fórmulas genéricas como as experiências vividas, as pressões do inconsciente, as causas éticas, artísticas ou políticas que o movem. A origem parece aleatória e fortuita demais para que o escritor possa identificar os fios que remontam ao começo. No meu caso, o primeiro romance deriva genericamente da morte de meu pai. O segundo, de minha vida como diplomata. Tentar ser mais preciso que isso, se não é enganoso, é vão. Podemos quando muito identificar a inspiração de um personagem ou de uma cena, e nesse caso levar o livro ao divã é um exercício interessante para o autor, embora irrelevante para o leitor.
Desconheço e, portanto, não tenho hábitos ou técnicas para manter-me criativo. O que é muito útil é anotar ideias. No momento em que se imagina algo de algum interesse, tem-se a convicção de que não será esquecido até o momento de escrever. É falsa essa expectativa. Melhor parar, anotar e avaliar mais tarde se a ideia dará fruto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo tornou-se menos lento e tortuoso. Como tantas outras coisas na vida, também no caso da ficção, quanto mais se escreve, mais o ato parecerá natural. Imaginar personagens, cenas, ideias é um hábito que se pode ganhar ou aprender com o tempo. Meu começo foi penoso. Escrevia muito pouco e nada que me agradasse muito. Ao longo do tempo, e com boa dose de paciência, passei a escrever com mais fluência e a gostar mais do que fazia. É bom sinal que eu goste mais de meu segundo romance do que do primeiro. Ou me tornei mais complacente comigo mesmo, nunca se sabe.
Não creio que faria algo muito distinto do que fiz, se pudesse recomeçar. Talvez tentasse retomar o hábito de escrever ainda na juventude, sem o longo interregno entre minhas primeiras tentativas – o romance esboçado antes dos vinte anos – e o começo, já com trinta e tantos anos, da redação de meu primeiro romance publicado.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho alguns projetos de romances e um esboço de uma peça de teatro. Avançam em ritmos diferentes. No momento, concentro-me num romance contrafactual. Verei se continuará a caminhar bem. Seja qual for o projeto, e ainda que seja no ritmo suave que me é permitido, imagino que escreverei ficção enquanto puder. É a manifestação artística que mais admiro. E ao mesmo tempo uma forma de terapia e de construção de algo que não se extingue comigo, mesmo se adormecido numa prateleira qualquer.
Não consigo pensar em livros que eu gostaria de ler e que não existem. Já basta torturar-me com a grande quantidade de livros que existem e ainda não tive tempo de ler. Melhor pensar nos livros que eu gostaria de escrever.