Maurem Kayna é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não sou naturalmente talhada para a rotina, mas como assalariada, cumpro, de segunda a sexta (quando não há viagens de trabalho no meio ou no final da semana) a rotina de acordar discutindo com o despertador; tomar um banho que me permite organizar as ideias e minha amada juba; preparar o desjejum, que faço no escritório, e o lanche da manhã; e zarpar para o trabalho. Sou engenheira florestal e me sinto contente de trabalhar com temas que me são caros e ter espaço na empresa para coordenar ações que julgo relevantes para a sociedade como um todo. Honestamente, não lamento não ganhar a vida como escritora, ainda que lamente ter pouco tempo disponível para dedicar à literatura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Embora não acredite em inspiração e sim em disciplina para escrever, não tenho uma hora preferida. É a rotina de trabalho que me obriga a ficar com as noites ou com os tempos de espera (reuniões que atrasam, aeroportos, viagens longas) para escrever. Não tenho rituais rígidos, mas em geral escuto música e deixo meus dicionários à mão, se estiver em casa. Gosto de beber café, chá ou vinho enquanto escrevo. O tempo de sorver o líquido – variável conforme a época do ano – é precioso na dissecação da frase que esteja construindo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Já tive meta diária (que em geral não cumpria) nas vezes em participei do nanowrimo, mas em geral não me imponho metas em termos numéricos, mas sim em termos de prazo para conclusão ou revisão de uma narrativa. Já trabalhei em períodos muito concentrados, atualmente escrevo em frações de tempo curtos no intervalo para um café, ou esperando uma consulta. O último ano dediquei menos à escrita e mais à leitura. 2019 estou querendo retomar o pique da escrita e pretendo avançar com uma narrativa longa iniciada há algum tempo e parir pelo menos uns cinco contos – acabo de fazer minha resolução de ano novo enquanto respondo essa entrevista com vários meses de atraso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa é sempre entremeada com a criação e as vezes funciona como um subterfúgio para fugir da escrita. Todo novo texto parte de uma cena vista ou sentida durante minhas observações da vida acontecendo ao meu redor. Uma simples cena, um retalho de conversa escutado. A partir desses fragmentos uma ideia de narrativa começa a se estruturar e então busco elementos que permitam consistência e coerência através da pesquisa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A essa altura do campeonato, em que não estou trabalhando com afinco para publicar, tenho cedido facilmente à procrastinação. Aliás, deliberadamente, cedi uma parcela grande do pouco tempo que tenho disponível fora do trabalho e das tarefas necessárias à manutenção da vida saudável ao flamenco e à promoção de clubes de leitura. A conta que fiz foi: considerando que eu não seja vítima de demência precoce, poderei escrever por mais tempo do que conseguirei dançar. E quanto aos clubes de leitura, ainda que escrever seja uma necessidade quase orgânica, adianta pouco escrever se não houver leitores. Essas escolhas tem me feito bem, mas a necessidade de escrever segue pulsante, mesmo que em módulo economia de energia. Acho que é possível administrar-me assim por um tempo. Tenho menos ansiedade hoje por publicar do que por efetivamente criar algo que possa ter algum impacto. Se sentir que esse impacto está perto, aí volto a dar mais tempo ao teclado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo deixar os textos descansando em uma gaveta virtual por bastante tempo antes de retomá-los para revisão. Nunca fiz uma estatística do número de revisões, mas provavelmente nunca menos de cinco ou seis. Reviso e edito até conseguir ler o texto com a mesma surpresa agradável que os textos alheios são capazes de me provocar. Isso pode levar meses ou anos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro escrever no computador. Gosto de digitar (em teclado físico) mas acabo escrevendo bastante em blocos de nota para não desperdiçar frases ou ideais que surjam quando estou longe do computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A observação atenta me parece a melhor ferramenta e o melhor hábito que alguém que escreve pode cultivar. Além da leitura, naturalmente. Estando atenta sempre surgiram germens de histórias interessantes, seja na fila do caixa no supermercado, no tédio de uma sala de espera e na caminhada pelo centro da cidade. Junte-se a isso, claro, a minha forma de ver e sentir o mundo, que é, possivelmente, o que determinada quais cenas, quais conversas vão me tocar e atrair minha atenção para depois se converterem em um conto ou num capítulo de romance. No meio de toda a vida acontecendo – o trabalho, os bichos e as plantas para cuidar, os relacionamentos, os encontros – sempre surgem frases ou cenas que gostaria de registrar e faço isso de modos aleatórios: cadernetas várias na bolsa, mochila, console do carro e muitas canetas espalhadas ao alcance das ideias. Se não encontrar um desses suportes, acabo apelando para o gravador de voz. Não gosto de digitar na tela do smartphone.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que a capacidade de autocrítica vai melhorando à medida que escrevemos mais e lemos mais. Com isso, porém, perde-se um tanto de fluidez e isso faz falta. Se volto hoje a reler meus primeiros textos teria vontade de revisar tudo muitas vezes e possivelmente grande parte não se manteria disponível a outros olhos, mas evito fazer isso porque o que já escrevi e parte da estrada que me trouxe até o ponto onde estou. Sigo tendo a pretensão de escrever textos robustos, que se sustentem ao longo do tempo, mas ainda não cheguei lá. Sou insistente, porém.
Mas focando em mudanças, acho que a principal marca é a busca por mais simplicidade. No começo, tratava as frases como uma escultura rococó, cheia de adjetivos e exibicionismos que hoje prefiro manter à distância – mas provavelmente ainda tenha meus escorregões.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de contribuir para que o projeto Leia Mulheres, que é um clube de leitura que surgiu em São Paulo e acabou de espalhando por quase uma centena de cidades brasileiras, consiga abranger um público mais amplo do que hoje ele cativa – basicamente mulheres brancas, de classe média, com ensino superior. Acredito na relevância de leitoras e leitores mais jovens e de outras camadas sociais terem acesso a uma narrativa feita por diferentes mulheres, além das narrativas que sempre tiveram um espaço tão predominante em todas as estantes. Sobre um livro que ainda não existe? Nem penso nisso, já sofro o bastante sabendo que não terei vida e tempo livre suficiente para ler tudo de fantástico que já foi criado.