Maura Voltarelli é doutora pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como parte dessa resposta, gostaria de comentar um pouco a frase que traz um dos motivos pelo qual o blog “Como eu escrevo” foi criado: “Eu criei o “como eu escrevo” pensando nas pessoas que sofrem para escrever”. Quando li a frase, a primeira coisa que me veio à mente foi uma postagem publicada pelo Carlito Azevedo em sua página no Facebook um tempo atrás. A postagem recuperava um texto escrito por Yasushi Ishii que, por sua vez, citava algo escrito por um copista do século XII falando do sofrimento físico ligado ao ato de escrever. O trecho dizia o seguinte: “Se não sabem o que é o ato de escrever, podem pensar que não é uma coisa especialmente difícil. Deixem-me dizer que é uma tarefa árdua: estraga sua visão, entorta sua coluna, espreme seu estômago e suas costelas, belisca sua lombar, e faz seu corpo todo doer…”. Quando li pela primeira vez, achei sensacional porque o trecho trazia uma materialidade ligada à escrita que me é muito cara. Há, de fato, um sofrimento físico ligado ao ato de escrever. Escrever é dolorido, e já o era para os copistas medievais e renascentistas (e também para os que vieram antes deles) que passavam horas a escrever de pé, a esmiuçar os detalhes e ornamentos das iluminuras, dentre outras coisas que hoje são feitas no computador. Mas, ainda assim, são os dedos que batem nas teclas, é a palma da mão que segura por horas a fio o mouse, levando a uma rigidez do braço, do antebraço e dos ombros. Tendinites, tensões musculares de toda ordem, dores de cabeça, dores de estômago, ardência e ressecamento dos olhos causados pela exposição prolongada à luz das telas de computador e dos celulares, dores e mais dores…Lembro agora do belíssimo e mais recente filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, “Dor e Glória”, que se suspende justamente entre desejo e dor. A certa altura, o protagonista do filme, que é também o próprio Almodóvar, interpretado por Antonio Banderas, diz que nos dias em que sente várias dores ao mesmo tempo, ele acredita em Deus, nos dias em que sente apenas uma dor, ele é ateu. É perturbador, como tantos outros momentos do filme.
O próprio Almodóvar, tão importante para a minha escrita quanto é Manuel Bandeira, me conduz a um segundo momento dessa resposta. Para mim, as obras de arte mais interessantes, sejam elas plásticas, literárias, arquitetônicas ou cinematográficas, são atravessadas pela dor (e aqui, além da inescapável dor física, há uma dor psíquica que se faz também uma dor social, em uma sutil contaminação do íntimo e do público, do individual e do histórico, que algumas das melhores obras de arte conseguem, com rara sutileza, alcançar). Essas obras de arte, no entanto, não se reduzem à dor, elas se fazem, se constroem, se pensam na dor, contra a dor e a partir dela. Não como meio de “superar” a dor (palavra que, a meu ver, tem muitas limitações; penso que as sobrevivências residuais e fragmentárias são bem mais interessantes ao pensamento que qualquer ideia de superação ou síntese), ou nos salvar, mas como forma de viver, de viver apesar de tudo, de desejar, ainda que esse desejo esteja, desde sempre, atravessado por violência e morte. Não estamos distantes, aqui, do universo poético de Manuel Bandeira, cuja poesia é, ao mesmo tempo, brisa e abismo.
Já que falei em Almodóvar, ele ainda é sugestivo para os caminhos que vem tomando essa resposta quando penso em um de seus filmes, que é o meu preferido, “Ata-me”, de 1989. Em poucas obras de arte, a relação entre desejo e violência, que podemos desdobrar na relação vida e morte, é explorada de forma tão contundente. Há uma cena no filme, curta, não deve durar nem dois minutos, na qual a personagem interpretada pela Victoria Abril, Marina, cuida dos ferimentos do seu sequestrador, Rick, interpretado pelo jovem Antonio Banderas. O gesto de Marina, ao refletir-se no espelho, faz Rick se lembrar do gesto de sua mãe barbeando seu pai no quintal, uma das poucas cenas que ele lembra de sua infância e a única memória que ele tem dos pais. Nesse momento, Marina passa a amá-lo. Muito mais do que um simples caso em que a sequestrada se apaixona pelo sequestrador, o que Almodóvar constrói nesse filme é uma sutil dialética entre a violência e o desejo erótico que encontramos maravilhosamente figurada em uma das minhas esculturas preferidas, O Rapto de Proserpina (1621-1622), de Bernini. O personagem de Rick, o sequestrador, é alguém que perdeu tudo, muito cedo, alguém que não tem nada, como ele mesmo diz; mas, há algo que ele nunca perdeu, e talvez seja essa a beleza do filme, algo que gosto de chamar uma “vontade de alegria” exposta tão bem na cena final na qual os personagens decidem “seguir vivendo”, o que eu poderia dizer, no contexto dessa entrevista, “seguir escrevendo”, porque escrever é, antes de tudo, um ato de desejo, que não exclui a violência ou a morte que o funda e o constitui, que não exclui, portanto, a dor.
Georges Didi-Huberman diz algo muito bonito que vai também nesse sentido em um texto no qual ele revira do avesso justamente essa ideia de “superação”, ou, no caso, de “sublimação” como idealização e pacificação de todos os conflitos, mostrando que nossas dores, nossos traumas, nunca são sublimados totalmente, superados, o que não significa dizer que devemos sucumbir e nos entregar a eles. Temos certeza que vamos morrer, nem por isso nos entregamos à morte, nos rendemos a ela; trata-se de uma luta, em larga medida contra nós mesmos. Os filmes, os livros, os poemas, não nos salvam do mal, da barbárie, da dor, porque, definitivamente, não se trata de redenção. Eles os figuram, diz Didi-Huberman, lembrando que “o fato de as imagens da arte ou do espírito se afigurarem a nossos olhos como cristais admiráveis não impede que em seu âmago continuem a correr as linhas de suas clivagens, de suas fragilidades, de suas fraturas passadas ou vindouras”. Trata-se mais, no caso da obra de arte, de transformá-los (o mal, a dor, a barbárie) em outra coisa, de fazer algo com eles, de pensar a própria impossibilidade, as próprias sombras, as zonas de apagamento… e não é fácil. No entanto, quem escolhe fazer da escrita, do pensamento crítico, da arte de modo geral, a sua vida, cultiva secretamente o “duro desejo de durar”, como escreveu o poeta Donizete Galvão a partir de Paul Éluard, ainda que saibamos que tudo é provisório, que tudo há de passar sobre a terra. Para mim, há uma beleza em tudo isso, uma beleza possível justamente porque é feita de feridas, rasgos, cortes, manchas, “fissuras do cristal”. Em Ninfa dolorosa, livro recente de Didi-Huberman, toda a questão da dor que inquieta, implode e convulsiona as formas, está ali posta de maneira impressionante. Vemos, na densa e vasta rede de imagens, textos e citações tecida pelo autor, como a dor perpassa a história dos objetos artísticos, como ela se expressa na arte em gestos extremos, desmedidos, que atravessam o tempo. É de toda uma dramaticidade e um profundo sentido do trágico implícito às obras de arte desde a antiguidade que se trata. Um jogo fascinante e terrível entre dor e erotismo, entre grito e silêncio, entre lágrimas e luta, entre cultura e barbárie, ou, para recuperar a tensão cara ao historiador da arte alemão Aby Warburg, entre os astra e os monstra.
Para responder, enfim, de forma mais direta à sua pergunta, vou me permitir tomar emprestado algo que disse recentemente o Tiago Guilherme Pinheiro, ao responder a essa mesma pergunta, participando dessa mesma enquete. Ele disse algo que me emocionou profundamente quando li, e acho que, em certa medida, isso se aplica também no meu caso. Tiago escreveu: “busco como ato matinal me recordar porque continuo a fazer o que faço, e me perguntar o que estou disposto a fazer em confronto com aquilo que me foi imposto como dado. Essa ainda é a maneira imperfeita que arranjei para continuar: lembrando aquilo que quero escrever, que acho importante escrever, que deve ser escrito de qualquer maneira”.
O que deve ser escrito de qualquer maneira, o que temos que escrever. Para mim, isso é extremamente importante, é o que me dá força para fazer o que eu tenho que fazer, o que eu acredito que deva ser feito, o que eu acredito que possa ajudar as pessoas a viver, a conviver com suas dores, a transformá-las em outra coisa. Quando eu escrevo, sempre penso que alguém poderá ler o que escrevi e se sentir menos sozinho. Se um dia eu conseguir isso, já valeu toda minha vida.
Sobre a questão da rotina, qualquer rotina para mim é impensável. Alguns contextos nos obrigam a uma espécie de rotina forçada. Terminar uma tese de doutorado é um deles. Mas a rotina, como qualquer outra coisa na vida, está sujeita a mil e um acidentes. E eu adoro os acidentes, porque eles são mais perigosos e, por isso mesmo, mais interessantes, mais imprevistos, mais anarquizadores, mais emocionantes.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor pela manhã, e não tenho nenhum ritual de preparação para a escrita. A coisa sempre funciona um pouco de outro jeito. Não gosto de chamar o que faço – ler, escrever, ver, ouvir, pensar, pensar, pensar… – de trabalho, gosto de ver tudo isso como uma atividade, algo que é a minha própria vida. E não há nada de deslumbrante na minha vida, tampouco na forma como escrevo. Nas pausas, no entretempo da escrita, olho para uma parede. Uma parede na qual colei cópias de algumas imagens. Entre elas, um quadro da Tarsila do Amaral, o Academia n. 4 (1922), um nu feminino, feito em estúdio, um clássico estudo de mulher, provavelmente pintado pela artista nos anos em que esteve estudando em Paris; um fragmento das célebres e fluidas Nymphéas (1914-1926), de Monet, e dois cartões que comprei um na Grécia e outro em Florença, e que colei um acima do outro. O primeiro, que está em cima, traz um fragmento de um baixo relevo grego da antiguidade intitulado Duas Nikes levando animal para sacrifício, no qual chama atenção o exuberante drapeado, com muitas curvas e dobras, do vestido da figura feminina em movimento. O segundo, que se encontra logo abaixo, é um recorte do afresco O Nascimento de São João Batista (1486 – 1490), de Domenico Ghirlandaio, que traz a imagem de uma inquietante personagem feminina que passa apressada nas bordas da cena. Criada, serva florentina ou Ninfa, como a chamou Aby Warburg, cujo pregueado estilizado das vestes esvoaçantes, azuis e leves como o céu, encontra seu modelo no relevo pagão que colei logo acima. À minha direita, sobre a mesa em que escrevo, coloquei em um porta retrato preto um cartão que comprei em Paris, no Museu Picasso, no qual está impresso o Retrato de Françoise (1946), desenho feito a lápis de grafite, que me agrada pelo olhar suspenso entre melancolia e atenção e pela cabeleira ondulante e imensa da personagem feminina desenhada. Gosto de pensar que essas imagens são as minhas janelas.
Nessas aberturas encontro, no mesmo gesto em que perco, a palavra. Para mim, a escrita, assim como a leitura, é uma urgência, um abismo, e não há preparação possível diante do abismo, ou dançamos sobre ele ou não. Sempre fui uma pessoa excessivamente nervosa, desde criança. Ao longo dos anos, fui desenvolvendo muitos problemas sempre ocasionados por nervosismo, tensão, e outras coisas do gênero. Não lembro exatamente a frase, mas Proust escreveu em um dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido que os nervosos são aqueles que fazem as grandes coisas. Confesso que, ao ler isso, e pensando também no próprio Proust, fiquei feliz e ligeiramente confortada. A propósito, a Proust devo, mais particularmente às tantas horas seguidas que passei lendo seus livros, imaginando as ruas de Paris, os canais de Veneza, alguns dos momentos mais felizes da minha vida. Eu não viveria minha vida de novo, como uma vez falou Frida Kahlo, mas, em alguns momentos, vacilo, e fico em dúvida ao pensar que, se eu não vivesse tudo que vivi de novo, não conheceria e não amaria Proust.
Sou também metódica e organizada. Mas, sempre desconfiei que essa minha obsessão por “cada coisa em seu lugar”, como diz um dos poemas mais belos que já li na vida, pelo pouso tranquilo e quieto dos objetos, por certa calma e silêncio que encontro na noite, seja todo um ritual, aí sim, de espera da morte, ou, dizendo de outro modo, seja uma forma de lidar com ela, com toda a desordem, o caos e a dor que levo comigo.
Todos temos nossos monstros e fantasmas, mas algo que me comove imensamente é olhar para um poeta como João Cabral de Melo Neto, por exemplo, e ver seu imenso esforço de racionalidade para tentar entender, transformar e não sucumbir a eles, para perseguir qualquer espécie de beleza mortífera, talvez impossível, enfim… mas as coisas mais sedutoras são justamente as impossíveis.
É neste sentido que autores como Benjamin, Warburg e Freud são tão importantes para o pensamento que venho tentando construir. Os três, cada um a seu modo, nos ensinaram a importância de afirmar a razão contra todos os monstros produzidos pela própria cultura. Mesmo assim, como nos lembrou Didi-Huberman, sempre se sentiram atraídos por eles, por esses abismos, e é por isso que criaram um pensamento dos mais inquietantes, um pensamento dos limiares, esses lugares de deslizamentos, de possessões nínficas, suspensos entre razão e loucura, entre salvação e destruição, vida e morte. Não me parece ser outro o lugar da própria escrita, da própria literatura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Planejar e organizar é importante, embora eu não acredite em uma escrita totalmente ordenada, dividida em momentos, etapas, fases que devem vir uma após a outra. No meu caso, tudo acontece junto. Ler, para mim, é fundamental. E ler é, imediatamente, escrever. Quando se lê, se escreve, ainda que mentalmente, por imagens que depois tomam a forma de palavras sobre a página. Roberto Calasso escreveu que a imagem é a própria matéria da literatura. Essa frase, dentre outras coisas, foi uma das disparadoras da minha tese de doutorado na qual tentei, justamente, borrar as fronteiras entre imagem e palavra, mostrando que as palavras figuram, que elas fazem ver, e veem, são visionárias, elas nos lançam naquele território movediço dos sonhos, onde tudo e nada é igualmente possível.
Começar sempre é difícil, mas eu prefiro não pensar em termos de começo e fim que, aliás, não existem. Tudo é meio, travessia, essa palavra que encerra, apenas para abrir, a obra prima que é Grade Sertão: Veredas. Ela própria rasgada por uma dor do perdido que é também a dor da escrita, da linguagem fragmentada, experimentada, estilhaçada. Há uma violência muito grande no Grande Sertão, um fascínio pelo fluido, que eu também compartilho, e uma funda tristeza bandeiriana da “vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Mas, como escreveu Drummond, “de tudo fica um pouco”, e os tempos, as coisas perdidas, sempre estão a regressar, transformados em outra coisa, rasgados pela história, os mesmos e já outros, em um exercício de reconhecimento e estranhamento constante que está sempre no meio do caminho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Tudo que me move, que me coloca em movimento, é uma espécie de urgência, como eu já mencionei acima, que me faz escrever, fazer o que eu tenho que fazer. No caso de projetos longos, como a escrita de uma tese, que foi uma das coisas mais difíceis que eu já fiz, e que, a propósito, eu não considero acabada (penso nela como uma “obra sempre em obras”, como escreveu Didi-Huberman ao falar de Man Ray e Duchamp), o importante é não parar, estar sempre em movimento, como eu acredito que seja o estado mais interessante de todas as coisas: o estar em trânsito, em oscilação, em passagens, deslocamentos, danças… A escrita está muito próxima da dança, e a escrita de uma tese é uma grande dança, com saltos difíceis, equilíbrios instáveis, giros, quedas e saltos, muitas quedas, a propósito. As danças mais perturbadoras, me parece, são aquelas na qual o dançarino, ciente de toda coreografia, é fiel sobretudo a si mesmo. Saber escolher o que colocar e o que não colocar, saber seguir e ao mesmo tempo não seguir a coreografia. A desmesura tem uma medida difícil, talvez não se trate de alcançar nada, mas, ainda um vez, do percurso, do caminho, do fascínio da espera de que nos falava Barthes. A respeito da ansiedade, talvez não se faça nada sem um pouco de ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes, é algo obsessivo, e nunca sinto que eles estão prontos. Mas há um limite geralmente imposto pelo cansaço, pelo corpo, pelas dores de cabeça. Há um momento em que é preciso saber parar, para seguir em movimento. Mostro meus trabalhos apenas para o meu marido e, muitas vezes, nem para ele. Tenho certa dificuldade em mostrar meus próprios textos, ao mesmo tempo em que escrevo para mostrá-los. Tenho certa timidez em relação a alguns, talvez íntimos demais. Penso no Drummond e em todo conflito que ele viveu com alguns de seus textos, como é o caso de O Amor Natural, livro sequestrado, que, em uma pesquisa de pós-doutorado que estou desenvolvendo atualmente, tem me levado a pensar em todos os abismos que rondam o acidentado percurso poético desse que talvez seja o principal artista do século XX.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Ambígua, como quase tudo na minha vida. Nasci em 1989, portanto, cresci com os computadores e a internet. Nunca escrevi em uma máquina de escrever, apesar de ter um enorme fascínio por elas, que se estende às coisas antigas de modo geral, coisas que não são desse tempo. Adoro pensar em outros tempos infiltrados no tempo atual, e vice-versa, mesmo porque, não acredito que os tempos existam separados, um após o outro, como em uma linha homogênea. Os tempos descrevem um emaranhado. Além do próprio conceito de imagem dialética – essa constelação formada pelo choque do Outrora com o Agora – Benjamin possui duas imagens de que gosto bastante, das mais bonitas que conheço, a do redemoinho, quando ele fala do tempo, e a do caleidoscópio, quando ele fala da modernidade. Pensar o tempo como um caleidoscópio é torná-lo variado, múltiplo, fragmentado, feito de uma possibilidade quase infinita de combinações de cores e luzes que vão mudando a cada movimento, sempre mostrando um desenho novo, insuspeitado. Já o redemoinho deflagra uma vibração na qual as coisas antigas, jamais extintas e sim submersas, acorrem à superfície, tirando tudo do lugar. Todos os tempos, passado, presente e futuro, não são mais os mesmos, eles se convulsionam diante de nós.
Como um gesto que sempre volta, eu escrevo com frequência à mão. Anoto muito, em pedaços de papel, mil e um bloquinhos e cadernos, mas também escrevo no computador, não há como escapar disso. É como se à mão, na borda dos livros, onde vou encontrando espaço, eu escrevesse lampejos que depois migram para a tela do computador e lá vão crescendo, incandescentes, até a conquista de um tom, de um ritmo nem sempre fácil.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sou muito boa em cultivar hábitos, principalmente os considerados bons e saudáveis. Gosto muito de andar em um lago que há perto da minha casa. Caminhar e olhar para aquela massa de água cuja calma aparente disfarça sua agitação constante, me ajuda a pensar e me descansa. Mas, de modo geral, as ideias sempre surgem enquanto estou lendo e escrevendo, muitas vezes nas errâncias noturnas em que tento dormir ou em que simplesmente me agrada ficar acordada, e vêm também de tudo que eu li e que, conscientemente, eu às vezes sequer me lembro. De qualquer modo, acredito que todas as cenas, frases, as tristezas e as alegrias vividas em todos os romances que eu li e reli, estão ali, em algum lugar desse mar profundo que é a mente, sempre prontas a viver de novo em meus textos, trazendo-me algo da alegria que eu experimentei quando as li e as imaginei pela primeira vez. Nossas ideias se fazem das ideias de outros, nunca se fazem sozinhas, e também nunca existem sozinhas, existem para o Outro.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não gosto de reler nada que escrevi. Acho tudo muito excessivo, muito cheio de adjetivos, ornamental demais. Atualmente, tento conter um pouco tudo isso, conter algo desse ímpeto que também me faz escrever muito. Ao mesmo tempo, considero essa espécie de pathos desmesurado, esse impulso histérico da escrita, interessante, à medida que traz algo de selvagem e indomável. Acho que se trata, hoje, para mim, de pensar que o excesso tem também uma medida, delicada, difícil de atingir, mas hoje em dia é o que eu busco, esse lugar difícil, esse intervalo, esse entrelugar de que gosto tanto. Didi-Huberman disse certa vez que conquistar um estilo é uma das coisas mais difíceis que existem na vida. Concordo com ele. É tarefa de uma vida, certamente. Não tenho pudor em admitir que sou barroca em diversos aspectos, e sou incuravelmente romântica, “que hei de fazer”, mas o meu romantismo é aquele que busca ver as estrelas no chão, é aquele feito tanto de neve quanto de sangue, porque se mede a todo momento com a violência, com a dor, com certo desespero. É por isso que gosto tanto de Bandeira, do seu riso triste, daquela melancolia – o mais legítimo de todos os tons poéticos, como escreveu Edgar Allan Poe – que, no entanto, não é estática ou fechada em si mesma. É por isso que gosto tanto das Ninfas, e que posso tranquilamente passar a vida toda estudando as suas exuberantes, impuras e trágicas metamorfoses. As Ninfas são, em alguma medida, tudo que eu perdi, mas elas são também tudo que nunca está perdido para sempre, o que existe justamente na ausência, na falta, como imagem em sua potência de assombração e errância. As Ninfas – esse feminino terrível, em crise, nunca apaziguado – são o tempo perdido de todos nós que sempre pode ser reencontrado em nossa memória. Como tão bem diz um poema de Carlito Azevedo, são as coisas que deveriam existir, e existem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero voltar a escrever poesia e publicar. Tenho me dedicado mais à pesquisa e às atividades acadêmicas, ainda que nelas, a meu modo, eu continue fazendo poesia. Mas tenho muitos versos soltos anotados aqui e ali, algumas ideias e projetos para um próximo livro de poesia que quero montar, algo que gire em torno de mulheres mortas, lembranças, vapores, formas informes, matérias em desintegração, suspiros, Veneza, inundações, morte, moda e melancolia, espelhos, echarpes, belezas provisórias… que não se sabe se são belas por serem provisórias ou se são provisórias por serem tão belas.
Li muita coisa que eu gostaria de ler, que me fez feliz. Devo algumas de minhas melhores leituras a pessoas que eu admiro, como o Eduardo Sterzi, o próprio Tiago Pinheiro, que lembrei acima, a Veronica Stigger, o Roberto Zular, Georges Didi-Huberman, entre outros professores e amigos, mas ainda há tantas outras leituras por vir. Gosto de pensar que os livros que eu gostaria de ler já existem, que eles correm como um rio subterrâneo, à descobrir. Gosto de imaginar que eles estão ali, vivos, em algum lugar, e acharão um meio de chegar até mim.