Matheus Bibiano Branco é escritor, autor de “Entre o beiral e o abismo”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Dos começos de dia aos finais de semana, prefiro não falar, pois há neles uma intimidade, mesmo que trágica, de um afeto partilhado. Já durante a semana, começo o dia mal-humorado, não há um só dia em que eu acorde assoviando ou cantando ao ir pro banho para posteriormente escovar os dentes; pelo contrário, é como se as memórias das desgraças me acordassem, me fizessem tirar o primeiro pé da cama. Talvez seja justamente por isso que não tenho uma rotina matinal, pelo caos que se adianta sobre mim quando acordo: há dias em que antes de ir ao banho trago meia caneca de café, há dias que ao contrário, e há dias que o vapor do banho quente é o suficiente para me levar até o trabalho pela manhã e me devolver esfomeado para casa. Do mais, o mais próximo da rotina mesmo é o primeiro cigarro que acendo com o bico do sol apontando meio-dia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há hora nenhuma, nem quero, como também não há e nem desejo ritual nenhum. Vivo todos os dias para a vida, para o choro do filho, para um amigo que reclama minha ausência ou para que eu reclame a dele, para o beijo no amor, enviar notícias para Pernambuco ou para uma amiga de outro bairro, e tudo que envolve a pragmática cotidiana. Mas é justamente aí que aparece a poesia pra mim: quando menos espero, no entremeio da vida. É engraçado que dia desses estavam os dois copos de cerveja na mesa, a conversa entre mim e minha companheira enquanto assistíamos a um senhor oriental, japonês se não me engano, que contava a sua relação com a cozinha, ao mesmo tempo em que falava de sua própria história, quando de repente, salta no movimento da imagem um cais e um extenso píer. Foi o suficiente para que eu pedisse licença e começasse a desenrolar um poema de 7 ou 8 estrofes em tercetos. Já levantei duas horas da manhã pra escrever, como também saí do “parabéns” para ir ao banheiro e anotar uma metáfora. Talvez a vez mais engraçada aconteceu durante uma missa, em que o padre disse uma palavra, e a partir dali acabou-se a missa, a benção, e no fim da manhã de domingo, lá ia eu em silêncio levando meu poema pra casa sem ouvir mais nada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Varia muito, justamente como há a variabilidade da vida. Tem momentos em que escrevo seis poemas por dia de boa qualidade, tem momentos em que escrevo meio poema, e é preciso colocá-lo em chamas de tão mal amanhado. Um exemplo do caos da produção é o meu primeiro livro, Entre o beiral e o abismo(que sairá pela Editora Patuá dia 21 de setembro de 2019): ele teve outro título e pelo menos oitenta por cento de poemas distintos do que possui hoje durante cerca de 3 ou 4 anos. No ano em que resolvi inscrevê-lo no Prêmio Maraã de poesia, ele mudou de título, foi a zero, e voltou com dezenas de poemas novos, o que lhe trouxe um segundo lugar no prêmio, e, posteriormente, a aprovação da Editora Patuá para a publicação. Não há, entretanto, um só dia em que eu medite, em que eu consiga anular a substância do pensamento, de modo que ele descambe, de um jeito ou de outro, em linguagem poética. Se não pudesse ou me impedissem de escrever, os exames do mundo e de meu próprio pensamento, continuariam comigo, nas voltagens da linguagem poética.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é a própria vida, não existe dissociação a meu ver, e é justamente por isso que levo, ao invés de olhos, lupa para ver o mundo de modo mais radical, mais aprofundado. Isso de um modo ou de outro, me dá certo privilégio, pois não me distancio de nenhuma experiência possível – desde que elas estejam ao meu alcance, é claro. Certa feita, recebi por rede social um vídeo de uma sucuri deglutindo um bezerro – se pensarmos, isso seria só mais um entre um milhão ou trilhão de vídeos que circulam, entretanto aquilo me comoveu de tal maneira que consiga me afastar do corpo do real, e projetar em língua um objeto de criação, de ficção, de fantasia, de catarse, afinal, pra quem puder me ler. Por isso, por esses acontecimentos, é que meu processo de escrita é prismático, me deixo de corpo inteiro à comoção do que a vida oferece, sempre sendo glutão com leituras, com artes plásticas, com música, até insanamente topar e negar os movimentos a que a vida me exige.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Atualmente, tenho 24 anos, estou próximo dos 25 anos, tenho em média (se a morte não se adiantar, ou se eu não buscá-la pra perto) mais 50 ou 60 anos de vida, e depois desse período, lá rumarei rumo ao nada, ao oco. É por isso que estou nem aí pra trava de escrita, nem tenho medo, nem expectativa ou ansiedade em relação a produzir texto, o que eu conseguir produzir, se for o caso, produzirei, sempre querendo repartir com as pessoas um modo de linguagem. Ansiedade, expectativa, esses sentidos todos eu tenho em relação a fazer novas amizades, passar um café para pessoas amadas… quando estou prestes a ir na casa de meu amigo Sávio, Jorge, da Vó Nelí, fico inquieto em casa, tomo logo um banho e me ajeito três horas antes. Com essas expectativas convivo frequentemente. Pronto: quando estou próximo de ir ao meu lugar, Garanhuns, em Pernambuco, não consigo nem cochilar sequer. Digo tudo isso, porque a minha escrita está nisso, no decorrer da vida, e se na vida não há trava, não há também para a escrita.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisão, assim como leitura e releitura, são inevitáveis. São fundamentais se se deseja alcançar uma linguagem mais próxima do que a subjetividade produziu. Então não deixo por menos: quando estou com um conjunto de poemas, leio e releio três ou mais vezes por dia, todo dia, sem falta. Isso colabora pra que cada vez mais eu vá encontrando o rumo para onde quero levar meu estilo, quais possibilidades posso encontrar nele, quais movimentos ainda não tentei nele, e assim por diante, de maneira que só os vejo pronto quando atinge o que mais próximo for do que a subjetividade me entregou como mote. Já mostrar para outras pessoas, não é tão constante, tenho um pouco de receio em ser a pessoa que mostra constantemente os próprios textos achando sempre maravilhosos, um replay narciso e incomodo. Entretanto tenho algumas pessoas, sim, para mostrar um poema ou outro, dizer uma imagem ou outra, saber o que acham, como viram, essas práticas mais comuns mesmo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tenho problemas com novas tecnologias, como não tenho grandes amores. Para escrever, qualquer lugar me satisfaz, o que estiver ao meu alcance na hora de dizer o que sinto a necessidade de que seja dito. Celular, bloco de notas, computador, papel de pão, o caramba a quatro. Já teve feita de encontrar uma frase difícil de lembrar, não encontrei papel, estava num ônibus madrugada adentro, voltando de Goiânia-GO para São Paulo-SP, sem bateria de celular, então arranquei a bolsa de debaixo do banco, alcancei uma caneta, liguei a luzinha do teto, e escrevi na perna mesmo. O poema chama-se “Primogênito”, está em Entre o beiral e o abismo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Antes de qualquer coisa, busco ser um leitor cada vez mais competente, um leitor de todos os gêneros literários, de filosofia, de sociologia, de crítica literária, até leitor das partes biológicas ou exatas do pensamento – ser um leitor de tudo que for possível, a fim de criar um universo de linguagem, também para extrair do mundo real o que preciso para levar para o mundo criado, estar sempre de olhos afiados para o que aparece. De outro modo, procuro sempre ativar cinco sentidos e o sexto também, ativá-los diretamente aos processos criativos, de modo que todo lugar em que eu estiver, eu possa estar com a poesia engatilhada. É claro que algumas coisas entrarão para o universo criado e outras farão parte da minha experiência de vida, logo ou eu posso receber para uma coisa ou para outra, como num vir a ser em repetição. No exemplo do vídeo que dei em uma das perguntas acima, consegui aproveitar e criar; já num encantamento que tive com placas de rua bem antigas na cidade do Recife, que levam o nome das próprias ruas junto a nomes de fábricas ou produtos, como uma espécie de comercial, não consegui levar para o mundo criado. Quem sabe um dia? Ou nunca? A criação está nas coisas, no portal em que elas abrem e me convidam a entrar, seja essa coisa uma frase de um desconhecido, uma frase de um livro, ou uma senhora sentada num sofá de couro na beira da BR-101 comovida com a velocidade dos caminhões, que surgiu da potência criativa, e que agora mora nesse texto.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo mudou em minha escrita, tudo muda constantemente, se não é semanticamente, é estruturalmente, e vice-versa, justamente pelo poder e pela qualidade de a língua ser tão flexiva, tão moldável… a língua, esse acordo perfeito de grupo, é o coração do ser humano. Se eu não mudar constantemente minha escrita, é como se desferisse um golpe de foice nesse coração. Agora dizer para o eu lá dos primeiros textos? Eu digo numa sala completamente espelhada, para o dos primeiros textos, como para o que escreveu ontem mesmo um poema: seja um leitor cada vez mais leitor de tudo, seja tão potente leitor pra que consiga, após ter aprendido no exercício da leitura, comover alguém sempre que dispuser um texto, um livro, uma frase, uma carta suicida sobre a mesa de alguém.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Romance, contos, qualquer gênero literário passa a ser um projeto se for passível de criação, fantasia. Já comecei um livro de contos, tenho um mote de um romance, tudo sem grandes expectativas, vou trabalhando aos poucos, como dá. Já o livro que gostaria de ter em mãos e que ainda não está escrito é este: o escrito por toda a elite brasileira, contando numa autobiografia como enganam o povo brasileiro, como o saqueia, como o maltrata, como o faz acreditar somente num estado corrupto, sem que se perceba a face de todos eles camufladas atrás do joguinho feito pra que toda população bata babando na tecla da corrupção no estado, ou no jeitinho brasileiro. Um grande livro, escrito por todos, desde os que restaram das árvores genealógicas da colônia escravocrata até esses velhos vivos do mercado financeiro, que não abandonaram o pensamento escravocrata, e que controlam e ganham com tudo, no feijão, no tomate, na especulação imobiliária, na cerveja, no dinheirinho da gente no banco… esse livro me faria morrer com um mínimo de dignidade. Seria um baita de um best seller.É só dar um googlecom os 10 mais ricos do Brasil, e solicitar essa autobiografia, e eles só não responderão… porque vão chorar só de olhar o convite, que, se dependesse de mim, viria acompanhado de uma imagem de crianças mergulhando nas bocas de esgoto do Recife. Talvez eles chorem como eu já choro todo dia.