Márwio Câmara é escritor, jornalista e crítico literário, autor de Solidão e outras companhias.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não costumo escrever quando acordo. A escrita no início da manhã é maravilhosa, embora eu prefira o período da noite. Quando não estou dando aula de manhã, certamente estou dormindo. Gosto de escrever à noite, sobretudo durante a madrugada. O silêncio acalma o meu estado de espírito.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
O período noturno é o meu preferido. Sou um notívago de carteirinha. Desde pequeno sou aficionado pela noite. Gosto do silêncio, de imaginar as pessoas dormindo e eu acordado. O período noturno me denota reflexão, embora eu reflita sobre tudo o tempo todo, inclusive agora enquanto respondo essa pergunta. Nos últimos anos, tenho notado que a música, de alguma forma, mexe com a minha criatividade durante o processo da escrita, sobretudo ouvindo jazz e música clássica. Então, estar em minha escrivaninha, sozinho, ao lado da minha estante de livros, ouvindo Chopin, Liszt, Chet Baker, Bebel Gilberto, entre outros, às duas ou três da manhã, é um momento mágico, ideal para escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Isso varia bastante. Não costumo produzir textos de ficção diariamente. Mas é muito raro que eu fique sem escrever por mais de uma semana. A escrita faz parte de quem eu sou. Durante a produção de Solidão e outras companhias, por exemplo, em muitos momentos cheguei a ficar mais de sete ou oito horas produzindo. Embora eu tenha consciência de que o número de horas não tem nada a ver com qualidade na escrita. Posso ficar dias, inclusive, mexendo numa única página. Já cansei de ver o dia amanhecer na frente do computador, obcecado por alguma passagem do meu texto, editando ou produzindo crítica literária ou artigos acadêmicos. Eu adoraria ter essa rotina que muitos escritores afirmam possuir, mas posso dizer que tenho períodos de grande concentração, com intervalos, quase sempre.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Olha, com os textos acadêmicos ou voltados para a imprensa o processo é bem tranquilo, porque me exige ter o mínimo de organização. Já com os textos literários, é um tanto caótico, porque, diferente da pesquisa acadêmica, o imprevisível o tempo todo me acontece. Não estou muito interessado em elaborar uma estória seguindo um modelo norte-americano ou qualquer coisa do tipo. Odeio roteirizar o que escrevo em termos de prosa. É um método que funciona, tenho consciência, mas não costumo trabalhar desta forma na literatura. É claro que, quando planejo escrever um livro, preciso ter uma ideia-base sobre o que eu quero narrar. Mas a própria experiência da escrita, o que eu tenho como mote inicial pode muito bem se esvair e tornar outra coisa. Pensando sobre isso, sinto que quando escrevo estou claramente fazendo uma pergunta. É como se deparar com o absurdo, que é a vida, e tentar, de alguma forma, compreender, dar nome ou forma para o incompreensível.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas e a procrastinação me ocorrem o tempo todo. E sei lidar muito bem com elas. Simplesmente não escrevo ou, ao menos, me esforço para produzir algo que seja relevante. Eu não me deixo dominar pela ansiedade, porque ela pode ser uma camisa de força para o autor. Escrita e ansiedade não devem nunca andar lado a lado, exceto se você precisa de um bloco para anotar uma ideia ou uma frase que lhe surge involuntariamente, e que, no momento, julga pertinente, ainda que amanhã ou depois não a utilize.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Estou sempre revisando tudo o que escrevo. Vivo uma inconstância flaubertiana nesse sentido. Minha opinião muda o tempo todo em termos textuais, dependendo do dia. Mas acho que a reescrita é um processo vital na vida de qualquer escritor que preza pela boa escrita. Estou sempre jogando fora muita coisa que escrevo, e acho um ótimo exercício. Sim, costumo compartilhar meu trabalho com alguns amigos, ainda no período do processo criativo, das primeiras versões do original. Geralmente, me comunico com amigos do meio literário que tenho grande confiança e estima, e que prezam, sobretudo, pelo bom senso, ou seja, a sinceridade.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Embora eu tenha o hábito de rascunhar muitas coisas no papel, escrevo mais pelo computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias surgem como uma pergunta ou uma espécie de autorreflexão. Desde cedo isso me ocorre. Pode parecer esquizofrênico o que irei dizer, mas eu escuto uma espécie de voz, e quase sempre sou guiado por ela ou através dela para escrever. Nem sempre essa voz aparece, mas quando ela, de fato, se faz presente, eu sinto que preciso prestar atenção e, o mais importante, materializar essa força incorpórea em forma de escrita. Sobre o conjunto de hábitos: ouvir música, ler outros livros e estar atento com a realidade no sentido da experiência humana, ou seja, observar as pessoas, a natureza e o mundo ao meu redor, creio que consubstancie muito a minha criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu acho que minha escrita vem mudando a cada dia. A própria experiência enquanto indivíduo, nossa evolução espiritual, tudo isso, de alguma forma, atravessa, de maneira ou de outra, o campo da linguagem, da escrita. Sou muito autocrítico com os meus textos. Não tenho o hábito de me reler, depois do texto já publicado. Tenho consciência do fracasso que é apreender a realidade através da escrita, porque, de alguma forma, sempre alguma coisa nos escapa no âmbito das palavras. O não dito ocupa sempre um grande espaço nas coisas que escrevo. E ele está lá, sempre muito consciente, porém nas entrelinhas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou sempre escrevendo muitas coisas. Tenho uma profunda obsessão pela escrita. Produzir literatura, artigos ou mesmo entrevistas me ajuda a compreender alguma coisa. Estou sempre me perguntando e perguntando às pessoas. E gosto de perguntar. Tenho curiosidade sobre o mundo. Engana-se quem acha que quem tudo sabe, realmente sabe das coisas. Toda a ciência foi construída à base de perguntas. Logo não deveríamos menosprezar a Filosofia, que prima justamente pelo pensamento autônomo. Pensar de verdade sempre é uma pergunta para si mesmo ou para o outro. Quanto a um projeto que eu gostaria de fazer, certamente é de escrever uma biografia. Há alguns meses essa ideia vem me perseguindo. O biografado seria um escritor já falecido, muito caro para mim e também para a literatura brasileira. Sobre a segunda pergunta, quando estou escrevendo um projeto literário, quero que ele seja exatamente esse livro que anseio e que ainda não foi escrito ou encontrado por mim.